domingo, 12 de outubro de 2014

As eleições e as contradições da mentalidade de São Paulo: Cantareira, Vidas e Democracia Secas



Por Reinaldo Melo

Do blog Inquietas Leituras


São Paulo secou-se. O que antes era um estado com viés progressista, onde a ideia de uma multiculturalidade era a amarra com o mundo contemporâneo, tornou-se um lugar em que o totalitarismo quase que monocrático nega a própria visão que o paulista tem de si.

A Semana da Arte Moderna, ocorrida em 1922, foi um grande passo dado rumo à modernização artística, econômica e  cultural do Brasil. Abriram-se as janelas para que se desenvolvesse uma visão de país fora da óticas das oligarquias rurais e da intelectualidade aristocrática, que produzia um pensamento que não coadunava com a nova sociedade que surgia.



A Semana de 22 foi movimento chave para SP se colocar como condutor do Brasil


Dentro do movimento, porém, havia um racha: de um lado, os escritores, como Oswald de Andrade, que defendiam uma Literatura que retratasse o Brasil literalmente, "como falamos, como somos"; do outro, artistas que defendiam uma postura nacionalista e xenofóbica cuja arte deveria retratar as glórias da pátria.

Muitos acadêmicos criticam a superestimação da Semana de 22, afirmando que o culto que se faz dela está muito mais ligado à visão de São Paulo como protagonista do desenvolvimento nacional, o bairrismo peculiar que o  estado tem, do que à suposta importância para o desenvolvimento das artes, visto que indícios de modernidade já eram encontrados em obras anteriores. Não é à toa que a parte patriótica e xenofóbica do movimento de 22 participará do Integralismo, que possui como um dos princípios a abolição de "Estados dentro do Estado" e de "partidos políticos fracionando a Nação".

O romance de 30 foi um foco de resistência a esse bairrismo. Escritores dos estados fora do eixo São Paulo/Rio de Janeiro construíram obras sobre um país que parte dos escritores da semana queriam esconder: o Brasil da miséria, da fome, da seca. Graciliano Ramos, injustamente rotulado de regionalista, compôs em Vidas Secas um mosaico pleno das agruras do sertão e de seus habitantes.

Mais de setenta anos depois e o estado de São Paulo, afora de não ter aprendido a lição de que há vários Brasis além da parte que ele ocupa, vive uma situação idêntica a dos personagens do escritor alagoano, condicionados pela ignorância e pela seca.

Nesta ano foi noticiada a queda do já então pífio ensino médio paulista. 40% dos alunos saem da escola com aprendizado insuficiente em Língua Portuguesa. Quase 60% não possuem conhecimento adequado em Matemática. Esses índices demonstram que São Paulo vem construindo uma população impossibilitada de ler gráficos, fazer cálculos ou interpretar índices e estatísticas e, ao mesmo tempo, incapaz de ler e entender textos. Uma fórmula magnífica para manter uma população mal informada, alienada de qualquer processo social, acrítica, uma massa de Fabianos a repetirem o mantra: "Governo é Governo".

Concomitantemente, o estado se deparou com uma crise hídrica. A iminente falta de água, que o governo diz ser consequência pela falta de chuvas, mas, na verdade, é em decorrência da privatização da SABESP e de falta de investimentos de manutenção e de captação de água, foi assunto totalmente explorado nas eleições. Há uma crise de proporções humanitárias vindo, mas maioria do povo paulista sequer quis se aprofundar no assunto e como "Governo é Governo", então o governador estava certo em suas premissas e mereceu a reeleição.


A Privatização da água em SP é uma das causas de sua crise hídrica


O estado que sempre se colocou como a locomotiva do país, o mais desenvolvido, industrializado e racional, sempre se comparando com o Norte/Nordeste, pontuando estas regiões como o retrato do atraso, sofre hoje das mesmas mazelas que um dia se orgulhou de não as ter: índice pífio de educação, falta de água e adoração por oligarquias solidificadas no poder.

Estima-se que a população de nordestinos de São Paulo gire em torno de 20%. Por conta da migração nordestina ocorrida a partir da industrialização na década de 50, pode-se afirmar que o povo nordestino contribuiu e muito para com o crescimento econômico do estado mais rico do país. Mas não apenas economicamente, já que as relações de povos não se fazem de forma monotemática. Houve também a contribuição cultural: artística, culinária, musical, etc. O Nordeste está em São Paulo e São Paulo está no Nordeste. Não é à toa que a capital do estado é chamada de maior cidade nordestina do Brasil.

HItler dizia que "Temos de matar o judeu dentro de nós". Há nessa fala dois pontos curiosos: o de que o judeu tem um espectro a invadir a identidade alemã e lhe dominar e de que o nazista se sentia parte ou originado do mundo judaico.

A ignorância é a base para o nazifascismo se instalar. E em decorrência à baixa formação educacional da população do Estado de São Paulo, atrelada à ideologia fascista do integralismo, assistimos na última semana a uma mostra de afirmações antidemocráticas (e por que não nazifascistas?) advindas de parte povo paulista.





Afirmações nazifascistas de paulistas na Net


Propostas como construir um muro separando Norte/Nordeste do resto do Brasil (não é mera coincidência com os muros que separavam os guetos judeus da população alemã), causar um holocausto ou jogar uma bomba atômica foram algumas das diversas pérolas de ódio destinadas a uma população que votou em maioria no partido oposto ao do governo do Estado de São Paulo.



Proposta idêntica ao guetos para judeus na Alemanha Nazista


Celso Furtado sempre denunciou as diferenças entre o Sudeste e o Nordeste, afirmando que a industrialização daquela região criaria o atraso desta, e criou, no governo Juscelino Kubitschek a Sudene, órgão que ajudou na modernização nordestina. Mas tal politica foi abortada no regime militar, mantendo-se o Nordeste nos índices de subdesenvolvimento.

Ao contrário de São Paulo, que agora possui mazelas de regiões subdesenvolvidas, parte do Nordeste vem acumulando benefícios por conta de uma política desenvolvimentista.  Entre 2002 e 2010, o PIB do Nordeste passou de R$ 190 bilhões para R$ 500 bilhões. O número de universitários praticamente dobrou nos últimos dez anos, da base de 4 milhões para 7,5 milhões. Em 2000, eram 4,3 milhões de trabalhadores nordestinos com carteira assinada. Hoje, ultrapassa a ordem de 13 milhões. Fora o fato da ONU estabelecer que o Brasil saiu da lista dos países com problemas com a fome, por conta da assistência que se dá aos habitantes miseráveis da região.



Celso Furtado:o grande idealizador do desenvolvimento no Nordeste

Como então julgar como burro e analfabeto um povo que predominantemente vota a favor de uma política que vem favorecendo a sua região? Não seria burrice e analfabetismo funcional e político votar a favor de um governo que vem patrocinando agruras como: o desmonte da educação básica, fundamental, média e superior do estado; a falta de investimento em captação de água, o que pode causar danos à saúde, ao comércio e à produção industrial; a matança de centenas de pessoas na baixada santista desde 2006, onde grupos de extermínio ligados a forças repressoras do estado declararam guerra às populações das periferias desta região?

Essa onda de ódio talvez seja um hitlerismo às avessas, enquanto que o austríaco defenderia matar o nordestino que está dentro dos paulistas, o povo de São Paulo quer matar o mito paulista que hoje o próprio paulista vê nos nordestinos, já que estes colhem números proporcionais aos da época do desenvolvimento paulista. Só essa inversão psicológica é base para explicar tamanho recalque.

E como cereja no bolo de tanto ódio e preconceito, até um ex-presidente da república faz coro com a turba nazifascista ao afirmar que o voto no governo atual é por falta de informação dos habitantes dos grotões do país. É de salientar o fato repugnante de um ex-presidente da república desconhecer  o próprio país que chegou a governar, chamando todo uma região de grotão e desmerecendo o processo democrático que um dia o fez chegar na cadeira de chefe de estado. Mas tal opinião é compreensível, já que o mesmo ex-presidente tem seu reduto, justamente, em São Paulo.


Fernando Henrique Cardoso: Ex-presidente e acadêmico que desconhece o país


A História mostra que os grandes impérios caíram por não se darem conta da realidade em que viviam. Roma mesmo adotou para si a imagem que não tinha diante dos próprios povos  que dominava, subestimando estes, que um dia viriam eles mesmos a derrubá-la. O Terceiro Reich, de Hitler, idem. Superestimou sua capacidade bélica. Não é de surpreender que quando Hitler se viu derrotado, uma das primeiras medidas foi destruir o suprimento de água do povo alemão, já que este não era superior a ponto de vencer uma guerra.

Talvez parte do povo paulista sinta hoje um narcisismo ás avessas. Não podendo ou não querendo ver a si mesmo, sentindo conscientemente ou inconscientemente que seu apogeu como protagonismo de desenvolvimento sucumbiu a uma nova lógica em que o capital não possui mais pátria ou regiões definidas, sente-se mais confortável a apontar para o suposto atraso dos outros quando na verdade é o seu próprio atraso que deveria estar em debate. Mas o que esperar de um povo que, em maioria, nunca quis ver o que há lá fora, para além das janelas do integralismo, não se preocupa com sua educação, não se preocupa com sua harmonia social, não se preocupa nem ao menos com um elemento vital para a vida: a água?

Não é à toa que em São Paulo se vive uma seca de democracia.

http://inquietasleituras.blogspot.com.br/2014/10/democracias-secas.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário