quarta-feira, 18 de março de 2015

O dia da Ficção: em 15 de março usaram da Liberdade para pedir novamente a Falta de Liberdade




  "Eu tenho dito que o aspecto mais ironicamente trágico das manifestações de 15 de março, é que os manifestantes utilizam um espaço democrático, a liberdade de manifestação e o direito de protestar contra o Governo, que são próprios da democracia e que foram conquistas pós-ditadura, para atacar o Estado democrático e as instituições políticas, pedindo a volta dos militares ao poder, e da ditadura. Portanto, a volta das restrições às liberdades individuais, ao direito de protestar, inclusive ao direito deles estarem ali bradando contra o atual Governo e contra o sistema político democrático."

15 de março de 2015: a ficção da vida real

Por Renato Souza
  Às vezes custo a acreditar no que vejo e ouço vindo das manifestações do dia 15; parecem obra de ficção.
  Parecem mesmo, ficção científica! Senão vejamos.
  No delicioso filme oitentista De volta Para o Futuro, o viajante do tempo Martin MacFly viaja ao passado, à época em que seus pais se conheceram, e interfere desastrosamente no evento em que eles deveriam se encontrar, correndo o risco de provocar um “paradoxo temporal”, paradoxo lógico segundo o qual uma intervenção no passado altera o futuro e, portanto, altera a própria condição futura daquele que viajou ao passado, fazendo com que a viagem mesma não pudesse existir. E não existindo, ele não poderia ter voltado no tempo para alterar o passado.
  Por isto, viagens no tempo são refutadas do ponto de vista lógico. O tempo só anda para frente; ou, como disse aquele famoso alemão barbudo, a história só se repete como tragédia ou como farsa.
  O drama de MacFly é que, se seus pais não se conhecessem, eles não namorariam, não casariam, e não o teriam como filho: ele não existiria e não poderia estar ali para alterar o próprio passado. Este paradoxo é tão complexamente ilógico que faria ruir toda a organização espaço-tempo sobre a qual sua realidade se assentava. Não só ele, mas o seu pequeno mundo desapareceriam.
  Eu tenho dito que o aspecto mais ironicamente trágico das manifestações de 15 de março, é que os manifestantes utilizam um espaço democrático, a liberdade de manifestação e o direito de protestar contra o Governo, que são próprios da democracia e que foram conquistas pós-ditadura, para atacar o Estado democrático e as instituições políticas, pedindo a volta dos militares ao poder, e da ditadura. Portanto, a volta das restrições às liberdades individuais, ao direito de protestar, inclusive ao direito deles estarem ali bradando contra o atual Governo e contra o sistema político democrático.
  Isto não é pouca coisa, não é só ironicamente trágico, é um paradoxo lógico temporal. Como no dilema do MacFly, os manifestantes reivindicam uma volta ao passado (metaforicamente falando), que se acontecesse os impediria de estarem ali, reivindicando-a. O mundo que eles reivindicam pelo golpe, se se tornasse real, os impediria de reivindicá-lo. Estariam todos nas prisões do Doi-Codi ou do Dops, e por isto não poderiam levar a cabo seus próprios intentos golpistas.
  Analogamente, eles reivindicam a destruição do espaço-tempo (o espaço da política civil e o tempo agora da democracia) que sustentou a democrática realidade das ruas que eles mesmos desfrutaram dia 15. São viajantes do tempo que, diferentemente do MacFly, não avaliam o risco de sua volta ao passado. Mas, como a vida não é ficção, aqui não tem máquina do tempo: quem viaja ao passado no mundo real, não tem um “de volta para o futuro”.
  Aliás, o período da ditadura militar deixou entulhos legais que, ainda hoje, em plena democracia, criminalizariam as próprias manifestações do dia 15, manifestações estas que, dentre outras coisas, incitavam os militares contra instituições civis conclamando-os a tomarem o poder, e xingavam violentamente a principal autoridade política do país.
  Diz o Art. 22 da Lei de Segurança Nacional de 1983 - um resquício daqueles tempos - que “é considerado crime fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social, incitar a animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis, e caluniar ou difamar o Presidente da República... imputando-lhe fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.
 Nada mais claro, pelas leis do regime militar, as manifestações do dia 15 seriam ilegais e muitos manifestantes seriam apreendidos como criminosos. Faltaria cadeia para tantos.
 Como esta Lei jamais foi revogada, poderia perfeitamente ser utilizada para prender aqueles que defendem publicamente o Golpe Militar atualmente. Ela só não é aplicada porque é um resquício legislativo da época da Ditadura, que constrange os operadores do direito de agora, afinal, estamos em um regime democrático.
 Mas é uma destas armadilhas do espaço-tempo, um buraco negro, para pegar os distraídos que se aventuram em viagens ao passado sem ler o manual de instruções nem buscar conhecer melhor o destino escolhido.
 Nos inúmeros registros das manifestações do dia 15, um me chamou a atenção: um rapaz defendendo a intervenção militar dizia, “eu não sou bandido, não sou maconheiro, então eu não tenho medo do exército”. E segurava seu cartaz pela volta dos militares ao poder.
Mal sabe ele que as pessoas eram presas, torturadas e mortas no regime militar, com base nesta Lei de Segurança Nacional aí - e na de 1969, que era bem mais dura -, não por serem bandidas ou maconheiras, mas por fazerem exatamente o que ele e tantos outros estão fazendo hoje, protestar contra o Governo e pregar a subversão da ordem constitucional e/ou do regime político. Só isto, na época do regime que tantos defenderam no dia das manifestações, já garantiria uma incômoda incursão pelos porões da ditadura.
 Esta é a suprema ironia das manifestações de 15 de março: se fossem aplicadas as leis e as práticas do regime que os manifestantes reivindicam, todos os que bradaram pelo impeachment ou pela intervenção militar estariam presos, e provavelmente acabariam nas mãos daquele agente do Dops que foi tratado como herói na Avenida Paulista por eles mesmos.
 Não fossem tão contundentes em tamanho e agressividade, as manifestações do dia 15 figurariam bem como obra de ficção, como uma aplicação política do paradoxo temporal, uma figura metafórica a evidenciar a ilogicidade de reivindicar a volta ao passado, sustentando-se num presente que só existe porque aquele foi superado.
 Sorte que eles não têm uma máquina do tempo, senão estaríamos todos fritos. Talvez o mundo como conhecemos não existisse mais.

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