sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Ataque às liberdades públicas marcou 2015, por Paulo Moreira Leite

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Texto de Paulo Moreira Leite

A maioria das retrospectivas de cada ano costuma ser puro exercício burocrático, num esforço típico para esconder a falta de notícias relevantes. Não acho que seja assim desta vez. Em 2015 ocorreu um fato grave, que aguarda uma boa reflexão. 
Estou me referindo a um ataque impensável às garantias fundamentais asseguradas pela carta de 1988, naquele ponto em que os direitos individuais se encontram com as liberdades públicas para alimentar um regime político que aprendemos a chamar de democracia.
Num país onde 120 milhões de pessoas têm acesso à internet, das quais 93% utilizam o WhatsApp, em 16 de dezembro de 2015 uma juíza da 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo assinou uma ordem que bloqueou o uso do aplicativo por 48 horas em todo território nacional.
O argumento é que os administradores do WhatsApp se recusaram a autorizar a interceptação em três linhas do aplicativo que poderiam ser úteis numa investigação sobre tráfico de drogas. Duas dessas linhas, soubemos depois, estão fora de uso e apenas uma delas se encontra em território brasileiro.
Mesmo assim, atendendo a um pedido do Ministério Público, uma magistrada de primeira instância, que responde por fatos ocorridos numa região da Grande São Paulo, tomou uma medida que afetou os direitos dos moradores de mais de 5 000 municípios brasileiros.
Na prática o bloqueio atingiu os direitos do professor e da operária, da dona de casa e do estudante, do empresário rico e do cidadão que procura emprego.
Num aspecto que dá um caráter inacreditável ao caso, a decisão foi tomada em "Segredo de Justiça." Quer dizer: presumidamente inocentes, milhões de pessoas foram punidas em seus direitos, sem que ao menos pudessem saber por quê. 
Num país que se orgulha de viver sob o mais amplo regime de liberdades públicas de sua história, a decisão teve vida curta, felizmente. Foi suspensa, através de mandado de segurança, pelo desembargador Xavier de Souza, do Tribunal de Justiça de São Paulo. A decisão do desembargador merece aplauso. 
Não permite, porém, que se esqueça uma situação preocupante e vergonhosa.
A decisão judicial questionava, com um só autógrafo, um dos pontos essenciais do regime construído pela derrota da ditadura de 1964, definido de forma exemplar, exaustiva e sem retoques pelo artigo 5º da Constituição, um dos mais amplos da carta de 1988.
Ali se informa, no parágrafo IV, que vivemos num país onde “é livre a manifestação do pensamento”. É difícil negar que é exatamente isso que acontece quando um cidadão zapeia para outro – mesmo que esteja exercitando o inalienável direito de comunicar besteiras de todo tipo. (As pesquisas indicam também que mais de 90% dos usuários de WhatsApp o utilizam para assuntos de trabalho, mas vamos em frente).  
No mesmo artigo 5, o parágrafo IX reforça a ideia central. Sublinha que a “livre expressão” deve ser assegurada “independente de censura ou licença.” Deu para entender, certo?
Não é só.
Contra a alegação de que um público estimado em 100 milhões de brasileiros deveria ser impedido de usar o WhatsApp porque o aplicativo se recusou a cumprir uma ordem judicial de fornecer dados sobre um possível usuário, a Constituição ainda fez questão de estabelecer a necessária distinção entre cidadãos livres e condenados.
“Nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, diz o parágrafo XLV do mesmo artigo 5º.
Isto quer dizer o seguinte: se uma lei ordinária, número 9.296, garante à Justiça o direito de exigir dados telefônicos ou equivalentes sobre uma pessoa contra a qual possa apontar “indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal”, a Carta de 1988 protege as garantias de quem se supõe inocente.
Se a garantia já vale para amigos e familiares, imagine para um país inteiro.
Ainda há outro aspecto. Obra do governo Dilma Rousseff, o Marco Civil da Internet é considerado uma referência civilizatória em várias partes do mundo. Isso porque, ao assegurar a neutralidade da rede, veda qualquer esforço para selecionar o conteúdo que trafega pela rede, o que permite questionar que mesmo as operadoras sejam punidas por crimes cometidos por terceiros.    
Cabe perguntar como e por que um fato dessa gravidade pode ter acontecido um quarto de século depois da entrada em vigor da Carta de 1988.
Em parte, isso se explica pela judicialização de nossa vida pública, um comportamento que os estudiosos definem como “fazer política por outros meios”.
Em geral, atos de truculência costumam ser condenados na teoria, mas justificados por seus aspectos práticos. Alega-se que o respeito aos direitos constitucionais pode envolver um processo mais demorado, mais complicado, talvez – ainda que seja o correto do ponto de vista dos valores do Estado Democrático de Direito.
Em 1968, quando foi o único voto solitário no lamentável colegiado de ministros que aprovou o AI-5, que jogou o país no pior período de treva do golpe militar, o vice-presidente Pedro Aleixo registrou uma frase memorável. Disse que não temia os altos oficiais, mas o “guarda da esquina.”
Há uma visão preconceituosa nessa afirmação. A experiência mostrou, antes e depois, que altos oficiais eram capazes de envolver-se a fundo em aos de crueldade criminosa nos porões do regime – não só para dar ordens, mas até para acompanhar tudo pessoalmente. Mas a frase advertia para um fato real. Ao liberar abusos no alto da hierarquia, a ditadura não seria capaz de controlar o que aconteceria em baixo.
E isso aconteceu na democracia brasileira em 2015. No mesmo país onde o whatsapp foi proibido para mais de 90 milhões de usuários, cidadãos foram as ruas pedir golpe militar. Chico Buarque de Holanda foi alvo de um assédio em estilo fascista no Rio de Janeiro. Eduardo Suplicy, Guido Mantega e Alexandre Padilha sofreram agressões semelhantes em São Paulo.
Como assinalou Pedro Aleixo, o exemplo vem de cima e sempre chega aos direitos do cidadão comum. Na cúpula do sistema político, os derrotados pelas urnas de 2014 empenharam-se num movimento para afastar Dilma Rousseff de qualquer maneira, sem apontar para um crime de responsabilidade, como exige a Constituição. Com apoio dos grandes grupos de comunicação, paralisaram o Congresso, intimidaram o Judiciário.
Aplicando com rigor inaudito uma súmula destinada a limitar o uso de habeas-corpus, que são uma garantia contra prisões sem justificativa, os tribunais deram livre curso as prisões temporárias, de grande utilidade para delações premiadas. 
A escancarada utilização da Lava Jato pela oposição criou um ambiente de sufoco político.
O que se viu depois é consequência.
Não custa reparar – sem que seja necessário elaborar teorias conspiratórias -- que a proibição contra um instrumento de comunicação e contato direto entre 90 milhões de brasileiros tenha sido divulgada em 16 de dezembro, no final daquelo dia em que ocorreu uma gigantesca mobilização popular em defesa do mandato de Dilma Rousseff.
Também é significativo que o cidadão acusado de envolvimento com tráfico de drogas, protagonista de todo o caso, tenha passado dois anos em regime de prisão temporária, sem julgamento – até que conseguiu ser liberado em novembro de 2015, por decisão do Supremo.
Alguma dúvida?

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