domingo, 6 de março de 2016

A “morosidade” da Justiça, o linchamento judicial de Moro e a lição de Montesquieu, por Fernando Brito



A um juiz, pela importância da função que exerce, exige-se, antes de tudo, decoro, prudência e discrição.

O Dr. Sérgio Moro não cansa de — elevado ao estrelato de Juiz Supremo do Brasil — expor ao país a boa razão de esperarem-se tais coisas de um magistrado.

Ontem, está no Estadão, não perdeu a chance de usurpar as funções que não são suas e proclamar-se juiz dos desejos do povo, no mais deslavado populismo judicial.

“A população quer saber o ‘efeito final’ dos processos criminais, ‘saber se a Justiça funciona ou não’. Não podemos ter a Operação Lava Jato como um soluço que não gere frutos para o futuro”.

Não, Dr. Moro, o papel de Justiça é ser justa, equilibrada, garantidora não apenas do cumprimento da lei, mas da universalidade dos direitos, não importa a quem.

Não é a de se substituir ao linchamento popular dizendo: “podem deixar que eu espanco ele”…

“No Brasil, existem casos criminais em que a prova incriminatória é esmagadora, mastodôntica, com a responsabilidade demonstrada, e o réu insiste em ir até o final do processo, apostando na impunidade.”

É direito do réu, de qualquer réu, esgotar suas possibilidades de defesa.

O que compete ao Judiciário é fazer com que este processo de garantia do reexame de decisões — quase todas de um só homem — seja rápido, não o de eliminar esta garantia.

Garantia, inclusive, do poder persecutório do Estado, que pode e deve recorrer de decisões que não considerem “esmagadoras e mastodônticas” as decisões do juiz ou as penas aplicadas, porque não há proibição, quando não é apenas a defesa quem recorre, de agravarem-se as penas. Só no caso de recurso exclusivo da defesa há a vedação do aumento de pena, o tal “reformatio in pejus” de que falam os advogados.

Mas vai-se adiante no estilo judicial que não busca apenas ternos em Miami, mas modelos de Justiça, ao arreppio da Constituição brasileira que diz, em seu o art. 5º, LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Sérgio Moro verbaliza aquilo que, há dias um colega seu, o juiz Alexandre Morais da Rosa, adverte da ideia de copiar o sistema americano de transformar a aplicação da lei ao um mero “negócio entre partes”, o acusador e o acusado, chegando ao “extremo de termos uma pena sem processo e sem juiz”.

O acusado, assim, praticamente se transforma num sequestrado, que deve pagar com algo — ou a delação de terceiros ou a assunção de uma pena “vantajosa” — pelo direito de ser condenado com “limite” de pena e sem a chance de lutar por sua eventual inocência.

Não há mais inocentes, há apenas os que não quiseram confessar e que, por isso, já estão condenados.

Escreve o Dr. Morais da Rosa:
“A negotiation viola desde logo o pressuposto fundamental da jurisdição, pois a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional e tampouco se submete aos limites da legalidade, senão que está nas mãos do Ministério Público e submetida à sua discricionariedade. Isso significa uma inequívoca incursão do Ministério Público em uma área que deveria ser dominada pelo tribunal, que erroneamente limita­-se a homologar o resultado do acordo entre o acusado e o promotor. Não sem razão, afirma-se que o promotor é o juiz às portas do tribunal. O pacto no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança. O furor negociador da acusação pode levar à perversão burocrática, em que a parte passiva não disposta ao “acordo” vê o processo penal transformar‑se em uma complexa e burocrática guerra”.
Aliás, a condenação precede mesmo o julgamento, porque o Dr. Moro provou que é possível — e triste — que se mantenha alguém preso por meses a fio sem que nada haja contra si, senão a versão unilateral de um delator que aponta o dedo a alguém para se safar, no possível, de seus próprios delitos.

Alem do mais, a banalização da transação penal tem efeitos pra lá de discutíveis sobre a eficácia do sistema judicial em si, quando não se considera o interesse — ou, quem sabe, o desejo — de envolver e culpabilizar terceiros. Qualquer pessoa do povo sabe que, nos crimes de menor poder ofensivo, o “pagamento de cestas básicas” tornou-se uma espécie de garantia de impunidade de fato, como pode se tornar o pagamento de multas e a “deduração” de outrem.

O discurso do Dr. Sergio Moro não é o da elevação do papel do Juiz, mas o seu rebaixamento à condição de “justiceiro”, como se a punição e não a justiça fosse o cerne de sua ação.

Há, contudo, um aspecto de imensa perversidade quando se nega a presunção da inocência até a apreciação de recursos e a condenação transitada em julgado, pretendendo a execução prévia de pena e recusando o que disse Montesquieu há mais de 250 anos, em seu Espírito das Leis: quando a (presunção da) inocência dos cidadãos não é assegurada, a liberdade também não o é”.

Porque a lei é feita para todos os homens e mulheres, não para os criminosos e, portanto, deve cuidar antes de proteger o inocente que de castigar o transgressor.

É, dizia dizia o velho pensador, em que se funda boa parte da ideia moderna de estado, uma regra que vale tanto para o indivíduo quanto para a sociedade:
“Quando uma república conseguiu destruir aqueles que queriam derrubá-la, deve-se apressar em pôr fim às vinganças, às penas e até mesmo às recompensas. Não se podem realizar grandes punições, e por conseguinte, grandes mudanças, sem colocar entre as mãos de alguns cidadãos um grande poder. Logo, é melhor, neste caso, muito perdoar do que muito punir; pouco exilar do que muito exilar; deixar os bens do que multiplicar os confiscos. Sob pretexto da vingança da república, seria estabelecida a tirania dos vingadores. Não se trata de destruir aquele que domina, e sim a dominação. Deve-se voltar o mais rápido possível para o andamento normal do governo, onde as leis protegem tudo e não se armam contra ninguém.”
Nem Stálin nem Hitler pensavam assim.

Fernando Brito
No Tijolaço

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