sábado, 19 de março de 2016

Martha Costa: Tomemos as ruas não por Lula, mas contra o golpe à democracia


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Lula é apenas um símbolo que a direita pretende destruir (foto Luiz Carlos Azenha)
A força simbólica de Lula e dos setores sociais progressistas conseguirá deter o golpe?
por Martha Costa*, Mestre em Filosofia Política pela USP, em especial para o Viomundo
Ontem, dia 18 de março, em plena Avenida Paulista, tive a oportunidade de ver a figura do presidente Lula e ouvir seu discurso pela primeira vez em minha vida. Eu, atualmente com vinte e sete anos, e outros ainda mais jovens do que eu ali presentes não temos a experiência tampouco a lembrança nítida dos grandes movimentos de rua que agitaram o período da redemocratização ou que pressionaram pelo impeachment de Collor.
Daí o impacto que o discurso de Lula causou sobre toda essa nova geração que nasceu sob a democracia, mas que, talvez por falha dos nossos projetos educacionais, é pouco consciente da história de lutas que foi travada para que chegássemos até aqui.
Para muitos de nós a democracia é vivida como algo que simplesmente “se tem”, garantido e naturalizado, o nome de um regime formal expresso na obrigação de votar e cujo sentido mais profundo por vezes nos escapa.
As palavras proferidas por Lula ontem tiveram a função pedagógica e simbólica de testemunhar, para uns, e reacender, em outros, o valor da defesa da democracia.
Aquela multidão que coloriu a Avenida Paulista com a diversidade da cor de suas peles e de suas bandeiras não era uma massa amorfa tomada por um delírio raivoso, pregando “a morte da burguesia”.
O que dava sentido e unidade àquelas pessoas tão diferentes entre si era a força simbólica que o valor da democracia tem o poder de fazer despertar.
O povo, naquela ocasião, não correspondia a nenhuma definição econômica estrita (não eram exclusivamente os pobres de baixa renda beneficiados pelos programas sociais do PT); o povo presente naquele espaço era um povo definido pelo desejo de preservar a ordem democrática, tanto no seu aspecto legalista (constitucional) quanto no que se refere aos valores da convivência democrática.
Foi essa defesa comum da democracia que colocou, lado a lado, militantes dos movimentos sociais organizados, negros, brancos, nordestinos, professores, intelectuais, secundaristas, universitários, pessoas com deficiências físicas, homossexuais, mas também pessoas de terno (e gravatas vermelhas) e outras tantas que, pela cor e figurino, julgaríamos, à primeira vista, como os representantes legítimos da “burguesia”.
Todos ali compartilhavam, de maneira mais ou menos consciente, que apenas a manutenção da democracia e o seu aprofundamento seriam capazes de permitir a própria existência da diversidade (crenças, comportamentos, opiniões) nos espaços públicos, assim como a defesa e criação de direitos.
Lula falou a essa gente, sem distinção.
Nesse momento, a força simbólica de Lula nunca se tornou tão evidente.
Enfrentando os efeitos do tempo que separam gerações, carregando nas costas o peso dos desgastes por ter sido duas vezes presidente e, mais recentemente, por ter se tornado o alvo predileto das operações jurídicas e midiáticas que tentam minar a sua figura, Lula mostrou um surpreendente poder de inspirar e aglutinar os desejos sociais.
Ele sabe como ninguém falar a língua do povo: pelas suas imagens e metáforas, fala ao coração das pessoas, mas sem subestimar sua capacidade de compreensão sobre aquilo que está em jogo na situação atual.
A fala de Lula veio dar força e compreensão à luta que precisamos travar em nome da democracia.
Por um lado, encontramos nela elementos para uma defesa da legalidade democrática, por exemplo, o respeito pelo voto da maioria (nunca é demais lembrar que a força numérica das manifestações do dia 13 de março não é superior aos 54 milhões de votos que elegeram a presidenta Dilma em 2014 e sustentam a legitimidade do seu mandato até 2018) e a obrigação de que cada instância do poder atue em conformidade aos princípios básicos da Constituição (princípio diretamente afrontado quando segmentos do Poder Judiciário quebram o sigilo dos processos, fazem vazamentos seletivos a uma imprensa historicamente golpista, determinam conduções coercitivas, obtêm depoimentos de delatores por meio de prisões preventivas, o que quebra o princípio da voluntariedade do depoimento e o torna semelhante a uma extorsão).
Por outro lado, a fala de Lula nos coloca diante da necessidade de fazer da democracia uma convivência social democrática.
Para além da defesa dos princípios constitucionais e da legalidade que deve reger nossas instituições, Lula ressaltou que a democracia é também – e talvez fundamentalmente – uma forma da coexistência humana e que, nesse sentido, é urgente que nos tornemos uma sociedade democrática, ou seja, uma sociedade que saiba conviver com suas divisões e conflitos, diferenças de pontos de vista e comportamentos, fazendo disso ocasião para o debate e o diálogo, não para a violência e a eliminação do outro.
Com sua fala metafórica, Lula faz um apelo para que nossas diferenças sejam debatidas e sustentadas racionalmente nos espaços públicos, sem que o seu agravamento nos conduza ao império do ódio e da violência.
Uma sociedade democrática precisa atingir a consciência de que suas divisões são a sua força, que as suas diferenças impedem que se torne o regime da homogeneidade de opiniões, mas, ao mesmo tempo, ela precisa ganhar clareza de que essas divisões precisam se resolver no âmbito político e institucional, amparadas pela força popular que o sustenta.
A manifestação de ontem abriu esse campo de significados para todos nós, colocando-nos diante da necessidade de resistir.
Ela configurou um espaço de encontro onde reconhecemos afinidades de ideias e valores e nos forneceu a certeza de que não estamos sozinhos, como querem fazer crer diariamente os meios de comunicações nesse país. Não somos nós os loucos, iludidos, defensores de criminosos.
Somos uma força de luta e resistência que nos reconhecemos nos mesmos valores e, por isso mesmo, crescemos numa proporção que assusta as forças golpistas em curso.
Contra nós, essas forças precisarão acelerar seu passo.
Curioso observar que quase não encontramos quem questione a pressa com que Eduardo Cunha abriu ontem as sessões da comissão de impeachment, cujo andamento será acelerado, assim como não se questiona a rapidez com que Gilmar Mendes decidiu sozinho sobre o retorno do processo de Lula para as mãos de Sergio Moro.
É quando a pergunta desse texto finalmente se impõe: a força simbólica de Lula e dos setores sociais progressistas conseguirá deter o golpe?
Essa jogada de Gilmar Mendes horas depois do fim da manifestação revela que eles têm pressa para acabar com tudo aquilo que a figura de Lula pode inspirar e, portanto, eles sabem que é preciso linchá-lo publicamente por meio de uma prisão preventiva cujas “razões” são um atentado ao bom senso.
Por outro lado, no Painel de hoje da Folha de São Paulo foi publicado que a “Câmara exigiu que Jovair Arantes fizesse relatório a favor de impeachment para colocá-lo em relatoria”.
Haveria, assim, um acordo tácito previamente firmado entre a cúpula do PMDB e o relator da comissão de impeachment Jovair Rosso (PTB-GO) para que este fizesse um parecer favorável à cassação da presidenta Dilma, sem que ele seja acusado de partidarismo, uma vez que seu partido é da base do governo.
Há, assim, grandes chances de que o impeachment prevaleça e isso porque nossa sorte está nas mãos daqueles que foram democraticamente eleitos em 2014.
Paradoxos da democracia?
O impeachment pode ocorrer dentro das “regras do jogo”, de forma perfeitamente democrática por uma Câmara e por um Senado de perfil conservador e antidemocrático, formado pela extraordinária força da bancada do boi, da bala e da Bíblia (para empregar uma expressão de Marilena Chaui), sedenta por fazer retroceder os direitos sociais efetivados pelos governos do PT nos últimos anos.
Eles darão ouvido aos nossos gritos de “não vai ter golpe”?
Para eles não há outro momento: ou viram a mesa agora pelo Golpe ou perdem novamente, nas urnas em 2018, a chance de fazer esse país voltar ao controle das suas velhas elites, saudosas de ver o povo no lugar em que ele sempre esteve, na senzala.
Precisamos, mais do que nunca, mostrar que a força da democracia é também uma força simbólica, que não se desvincula do povo e que não cessa de se exercer quando os representantes são eleitos e se encastelam em seus gabinetes, fechando os olhos e os ouvidos àqueles que os elegeram.
Eles creem que possuem um poder que provém deles e é deles, como propriedade particular. Por ora, nós precisamos crer que a nossa força simbólica, gestada e expressa nas ruas, poderá exercer alguma influência.
Do contrário, apenas assistiremos, sem resistência, ao golpe que se processa nos bastidores do poder por aqueles elegemos e juram agir em nosso nome observando a Constituição.
Nunca foi tão necessário defender a voz e a participação popular direta nos espaços públicos, ainda que o peso e os vícios da nossa democracia representativa busque, por todos os meios, enfraquecer e emudecer a nossa voz, os nossos desejos de liberdade e a nossa recusa da opressão.
Tomemos as ruas. Se sucumbirmos, que seja lutando, pelo coro das nossas vozes e pela reunião dos nossos corpos.
*Mestra em Filosofia Política pela USP

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