segunda-feira, 11 de abril de 2016

E quando o desejo e o sonho estão num apagão?

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Foto: David McEachan
De um lado, uma sociedade que condena nossos sonhos a um enclausuramento eterno. De outro, alguns grupos dessa mesma sociedade quase nos obrigam a sonhar e a realizar, como se essas fossem as novas métricas de uma velha ideia de sucesso. Será que há um caminho com menos peso nas costas?
Por Luísa Módena no Blog do Alex Bretas
“Busque o seu sonho!”
“O que faz seus olhos brilharem?”
“Trabalhe pelo que acredita!”
“Qual a sua maior vontade?”
“O que você realmente gosta de fazer?”
Quem já sentiu um gelo na espinha ao ouvir essas frases e perguntas (ainda que feitas internamente) levante a mão! Eu sim, algumas vezes. Chegava a sentir até o corpo paralisar nessa dificuldade de encontrar respostas reais, o que me causava um certo desânimo e sentimento de impotência. “Poxa, se não consigo nem identificar qual é o meu sonho, como posso ir atrás dele?”
Se agora estou escrevendo esse texto é porque há alguns meses fiz uma troca de cartas com o Alex Bretas exatamente sobre o quão potente é a nossa vontade e o nosso desejo, o quanto ele nos engravida de sonhos e faz nascer infinitas possibilidades. Mas aqui eu quero falar sobre um outro momento. E quando o sonho não é identificado? E quando não encontramos as fagulhas que despertam o nosso interesse, as pistas para perceber em que sentido vai a nossa vontade?
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É possível que, nessas ocasiões, respostas mais rápidas e prontas saiam da boca na tentativa de amenizarmos o desconforto. Mas ele costuma persistir quando as palavras ainda não reconhecem o que a nossa essência nos sussurra no coração. Que respostas prontas são essas? É delas que precisamos? De onde elas vêm?

“Essas perguntas, quando aparecem, são assustadoras, pois põem em dúvida a própria base em que se ergue toda a atividade do homem, seu conhecimento do que quer. Por isso, as pessoas procuram livrar-se o mais depressa possível desses pensamentos perturbadores. Elas acham que foram molestadas por essas perguntas porque estavam cansadas ou deprimidas – e continuam em busca das metas que acreditam ser suas.”

Erich Fromm é um autor da psicologia social que investigou as relações entre a liberdade e o processo de individuação, que reverberam tanto no processo interno de cada ser quanto nos processos sociais. Apresentando muito brevemente sua visão, temos que em muitos e diferentes momentos da história, indivíduos e grupos abriram mão de sua liberdade em troca de certa segurança e do sentido de pertencimento garantido por autoridades externas. À medida que a história avança, essa autoridade conformadora ganha diferentes contornos: desde muito definida e concreta até capilarizada e quase invisível, de modo que vai se instalando aos poucos o que Foucault chamaria de microfísica do poder.
Segundo Fromm, tal percepção não significa que essa escolha de caminho seja guiada pela essência da natureza humana; que seríamos, portanto, fadados a ter que escolher entre liberdade x segurança/pertencimento. Muito pelo contrário: esse caminho é uma rota de fuga quando o vigor do eu ainda não foi conquistado, como indivíduo e também como sociedade. Ou seja, enquanto ainda desconectado de si mesmo, enquanto ainda não protagonista de sua vida, o ser vincula-se ao mundo de forma não autêntica, recorrendo a mecanismos como o autoritarismo, a destrutividade e a conformação para, somente, tentar ser.
A base psicológica na qual os mundos moderno e contemporâneo foram construídos também foi pano de fundo para o surgimento dos nossos sistemas de ensino. “Em nossa cultura, […] a educação por demais amiúde tem como resultado a eliminação da espontaneidade e a substituição dos atos psíquicos originais por sentimentos, pensamentos e desejos sobrepostos àqueles”, afirma o autor, considerando que a originalidade neste caso não se refere ao ineditismo de algo no mundo, mas sim a um processo que tem origem no indivíduo, que é respeitoso com seus fluxos e com seus ritmos na construção de um pensamento.
Como parte de um paradigma, essa questão está impregnada consciente ou inconscientemente na forma como a realidade é construída, começando desde a mais tenra infância e passando por toda a educação.
Um recém-nascido, tendo sido alimentado e carregado ininterruptamente no útero, tem poucos “desejos” tão intensos e verdadeiros quanto o de continuar a ser embalado e nutrido, de leite e de vínculo. No entanto, uma linha de pensamento (que não surgiu por acaso) insiste em orientar uma rotina determinada de cuidados que não condiz com o ritmo, necessidades, e – por que não? – curiosidade daquele bebê. A amamentação com horários fixos e a oferta regulada de colo têm a intenção de criar uma ordem externa e artificial, para que haja um mínimo controle do entorno e para que a criança não fique, por exemplo, “mal-acostumada” (por trás desse raciocínio há ainda outro conceito: a essência é má e, por isso, manipuladora. Mas esse é um assunto para outra conversa).
Não atendido nessas necessidades básicas, esse bebê vai chorar, talvez por um bom tempo, talvez por dias. Até que ele se acostuma. Um dia, finalmente e infelizmente, ele para. Já entendeu, ainda que não de forma racional, que aquela curiosidade (um vazio no estômago e na pele) e aquele desejo de vínculo não são tão importantes assim, que são os outros que sabem reconhecer o que é melhor para ele.
O mesmo mecanismo ocorre na história do menino que é orientado pela professora a desenhar sempre a mesma imagem de flor, conforme o exemplo dela. Depois de algum tempo nessa prática, o menino muda de escola e outra educadora lhe pede apenas um desenho livre. E o menino espera que ela lhe dê um modelo para copiar, ao que ela responde que ele pode desenhar o que quiser, da forma que quiser. O que sai no papel? A primeira flor ensinada e repetidamente desenhada.
Essa forma de não escuta causa uma marca no indivíduo; esteja ele em qualquer fase da sua vida, mas principalmente na infância. Ele começa a assimilar que suas necessidades e quereres mais autênticos não são validados como reais; em outro momento passa ele mesmo a duvidar; e, por fim, não mais nem os reconhece.
Então, voltando à questão inicial, faz sentido compreender que a dificuldade em identificar um sonho está mais relacionada a uma espécie de enferrujamento na prática de perceber a si mesmo, do que a uma incapacidade de se encantar e de sentir curiosidade pelo mundo. Por princípio, todos somos capazes de fazer perguntas, de aprender, e de fazer novas perguntas. Nesse movimento, somos hábeis em construir nossos caminhos autônoma e autenticamente. Assim, a maneira com a qual o indivíduo se relaciona consigo mesmo, com o outro e com o mundo torna-se recheada e transbordante de sentido e espontaneidade.

“A atividade espontânea é a atividade livre do eu e implica, psicologicamente, o que significa literalmente o radical latino do termosponte: por sua própria vontade. Por atividade não temos em vista ‘fazer alguma coisa’, e sim a qualidade de atividade criadora que pode agir igualmente nas experiências emocionais, intelectuais e sensoriais da pessoa. Uma premissa dessa espontaneidade é a aceitação da personalidade total e a eliminação da repartição entre ‘razão’ e ‘natureza’.  Porque só se um homem não reprimir partes essenciais de seu ego, só se ele se tornar transparente para si mesmo e só se as diferentes esferas da vida lograrem uma integração fundamental é que será possível a atividade espontânea.”

Felizmente estamos vendo um novo paradigma nascer, permeando e transformando as relações e nossas escolhas de trabalho, estudo e estilo de vida. Mais e mais pessoas estão se conectando e criando realidades que têm mais ressonância com a natureza humana – que é de cooperação, partilha, colaboração – e com as buscas de cada um, a partir da sua história, da sua personalidade e dos caminhos já percorridos.
Como adultos, no entanto, às vezes precisamos de um processo de desintoxicação de ideias cristalizadas para então reencontrarmos as nossas maiores e mais motivadoras perguntas, aquelas que nos estimulam a caminhar, investigar, descobrir possibilidades. Fazer novas perguntas aos nossos pensamentos, sentimentos e quereres antigos – e observar como eles se relacionam – pode nos trazer novos aprendizados sobre nós mesmos.
A pergunta se faz necessária como prática constante: o que faço é realmente fruto da minha própria espontaneidade? Em caso afirmativo, o pulsar entre descobertas e novas curiosidades torna-se infinito. Viver esse processo pode ser mais leve e fluido quando o acolhemos com maturidade emocional e flexibilidade para lidar com suas diferentes etapas, percebendo a emergência das novas versões de mim mesma e dos mundos que sou capaz de criar. Eles serão mais belos e vívidos na medida da espontaneidade que em mim consigo acessar.
Luísa Módena é doula, educadora e aprendiz das relações entre nascimento e aprendizagem. É facilitadora do programa Desaprender e já trabalhou na Universidade Livre Pampédia.

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Resgatar as curiosidades e vontades é uma das bases do programa Desaprender, uma jornada de quatro meses em São Paulo-SP.
A Luísa, eu (Alex) e o restante da equipe do UnCollege estamos idealizando esse projeto desde o ano passado, e agora o programa está com inscrições abertas!
Para saber mais e se inscrever, acesse o site: www.desaprender.uncollegebrasil.org.
Vamos juntos?

Referências
Erich Fromm. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.
The Little Boy, de Helen Bukley. Disponível neste link.

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