sexta-feira, 1 de abril de 2016

Violência e ilegalidade no Brasil são frutos da mesma árvore, afirma o historiador Luiz Felipe de Alencastro


Séculos de escravidão deixaram marcas que definem as características que mais envergonham hoje o país. "O escravismo é uma violência cotidiana. No fundo da casa tem alguém gemendo porque está apanhando, porque foi punido"
 
 
Jornal GGN – O Brasil só vira uma nação integrada, de fato, com a descoberta do ouro em Minas Gerais. Antes disso era um conjunto de feitorias que corria o risco de se subdividir em vários países, assim como aconteceu com as outras colônias europeias nas Américas.
 
A conclusão é de Luiz Felipe de Alencastro, historiador e cientista político com extensa carreira acadêmica no Brasil e na França, como livre-docente na Unicamp, titular na Fundação Getúlio Vargas e na Sorbonne (Paris), uma das mais prestigiadas universidades do mundo. Ele lembra, por exemplo, que a América britânica foi subdividida em Estados Unidos, Canadá, Antilhas e Jamaica. A América francesa teve o território da Louisiana vendido para os Estados Unidos e perdeu São Domingos que virou o Haiti, primeira nação independente das Américas. Já a América espanhola se transformou em 20 países.
 
O que impediu a fragmentação do Brasil, após a descoberta das Minas Gerais, foi a escravidão. Praticamente todos os territórios brasileiros eram dependentes do tráfico de seres humanos africanos para sua economia, e com a descoberta do ouro (por volta de 1697) isso se tornou ainda mais forte. 
 
Assim, a formação do império brasileiro, em 1822, ocorre em um equilíbrio perverso, explica Alencastro. O Brasil era a única nação onde a economia era altamente dependente do tráfico de africanos. O professor destaca que, entre 1550 e 1850, entraram no país seis vezes mais homens e mulheres negros (sobretudo angolanos) do que portugueses.

Tamanha dependência econômica levou brasileiros e portugueses a não quererem o fim da escravidão, mesmo quando a maior potência militar da época – a Inglaterra -, determinou a proibição o tráfico de negros, em 1826.
 
"Então, a unidade nacional é feita em torno da prolongação do tráfico além do bom senso. Isso já vai botar o país todo na ilegalidade, porque toda essa propriedade escrava era ilegal", pontuou Alencastro.  As bases da ilegalidade são fincadas antes mesmo do Brasil império, porque Portugal e Inglaterra adotaram o primeiro tratado comercial conjunto para abolir o tráfico de escravos africanos em 1810. 
 
Um pacto com o sangue de negros
 
O pacto social brasileiro que permitiu que a escravidão perdurasse por tanto tempo tinha ainda mais um importante aliado: a Igreja Católica. Felipe de Alencastro revela que o preço da liberdade do índio no Brasil foi a escravidão do negro. E o apoio do clero ao tráfico se seres humanos não teve nada a ver com religião. 
 
"A igreja portuguesa, e os jesuítas, em particular, eram os únicos que estavam dos dois lados da zona negreira, em Angola e aqui. Eles tinham missões lá e se aproveitavam do tráfico negreiro [porque] tinham isenção [fiscal] pra mandar escravos do colégio de Luanda para o colégio da Bahia".
 
Claro que os tais colégios não serviam para a formação dos homens negros, era apenas para prepará-los aos serviços que viriam prestar, compulsoriamente, além do Atlântico. Neste momento da entrevista o professor faz uma crítica ao grande orador do século XVIII, Padre Antônio Vieira. 
 
"[Ele], sabendo das coisas, faz o discurso mais audacioso sobre isso - o Sermão do Rosário - onde diz pra irmandade do Rosário, que era de pretos na Bahia, 'vocês acham que é uma dor imensa, mas é uma grande sorte ter saído do paganismo e vir pro Brasil que é terra católica. Porque a primeira transmigração da África pro Brasil abre a via pra segunda transmigração do Brasil para o céu'. Ele é um justificador do tráfico negreiro", conclui Alencastro.
 
O pacto social pela manutenção da escravidão no país trouxe consequências vergonhosas à nossa história. O Brasil, como nação independente, manteve o regime escravista por 127 anos, e foi o último país do mundo a abolir oficialmente a exploração compulsória de seres humanos. 
 
Em 1850, a então capital do Brasil, Rio de Janeiro, tinha 42% da população escrava. "Era a maior concentração urbana de escravos desde o fim do império romano", pondera Alencastro. 
 
"O escravismo é uma violência cotidiana. No fundo da casa tem alguém gemendo porque está apanhando, porque foi punido", por isso, conclui o professor, aprendemos como sociedade a não nos impressionar com crianças de rua, e até nos parece normal o sofrimento cotidiano.
 
"Você se habitua quando chove [a ponto de causar enchentes] dizer 'não houve dano nenhum'? Como não houve dano nenhum? Gente com água no pescoço, gente morando em lugar precário?! Esse tipo de noticiário que nos parece normal é uma coisa que vem dessa insensibilidade social", completa o cientista.
 
Veja a seguir a transcrição da entrevista completa que Luiz Felipe de Alencastro concedeu ao apresentador do programa Brasilianas.org, Luis Nassif.
 
Na conversa, de mais de 50 minutos, o professor fala ainda do empoderamento da população negra dos últimos anos, se aprofunda nas raízes da contravenção hoje vistas na política brasileira e o crescimento da extrema direita no país - quanto a esse último ponto, Felipe de Alencastro apoia a existência de um partido que se assuma de direita. "Não é ruim ter um partido de extrema direita organizado. Acho que todo o mundo que jogar o jogo institucional, ajuda a democratizar o país", justificou.
 
Luis Nassif - Como é que se explica esse rolo político institucional-midiático-jurídico brasileiro a luz da formação histórica do país? 
 
Luiz Felipe de Alencastro - Você tem dois caminhos: dizer que é um desastre da colonização, ou dizer que o rolo é responsabilidade nossa e não descarregar nas costas de ninguém. 
 
LN - Uma vez em um seminário, um conhecido comentarista falou da herança portuguesa e tinha um português na plateia que disse "queria informar ao senhor que desde 1822 nós não temos nada a ver" [risos].
 
LFA - Primeiro vamos falar de performance. O Brasil é a única colômia europeia das Américas que não se fragmentou. A América britânica virou várias coisas. Está lá os Estados Unidos, o Canadá, mas também as Antilhas e a Jamaica. [No caso da] America francesa, venderam a Luiziânia - tinham já perdido São Domingos que virou o Haiti, e a Martinica, Guadalupe e a Guiana foram assimiladas pelo território francês em 1946.
 
Na América espanhola, os quatro vice-reinos se transformaram em 20 países. 
 
Então isso é muito mal explicado já para começar. E aí tem uma dinâmica perversa um pouco... A explicação que dou, aí é a historiografia, [é] como você já acha que começa direto como colônia, e até escrevem Colômia com C maiúsculo, já está [o termo] nação embutido lá na carta de Pero Vaz de Caminha, na chegada do [Pedro Alvares] Cabral.
 
Mas não é bem assim, o Brasil era um monte de feitorias. Quando veio o ouro de Minas Gerais e o acesso aos mercados negreiros é que aí vira um país. Isso está no Celso Furtado - em Formação Econômica de 1959 - e do mesmo ano sai o livro de Antônio Cândido. Só que Antônio Cândido diz que só tem literatura no Brasil quando se escreve sobre motivo brasileiro para o leitor brasileiro. Antes os caras escreviam no Brasil sobre temas europeus.
 
LN - Por que que o elemento negro, [que] tem toda sua influência econômica, impede a fragmentação?
 
LFA - Quando o império se forma, se forma em um equilíbrio perverso. A Inglaterra era a potência mais importante do mundo porque era a ONU e os Estados Unidos juntos [da época]. Ela fazia a lei e o FMI juntos. Ela era o banqueiro, dava nome internacional e tinha força militar. Concretamente é a dominação marítima. A Inglaterra tinha acabado com o tráfico [de seres humanos negros] e disse 'agora todo mundo tem que acabar'. 
 
E o Brasil, que era o único país independente que dependia disso pesadamente, porque estava com as raízes na África, um pulmão ali em Angola... [Para se ter ideia] entre 1550 e 1850, o número de africanos que entraram no Brasil representa 6 vezes e meio o número de portugueses. 
 
LN - E fundamentalmente Angola?
 
LFA - Fundamentalmente Angola. E isso faz com que todas as zonas escravistas, quer dizer, o Brasil inteiro, todas as oligarquias, Rio de Janeiro, São Paulo - que era o Vale do Paraíba nesta época - Bahia, Pernambuco, todo o Nordeste, estava querendo manter o tráfico. 
 
Eles não queriam que acabasse nunca, e a Inglaterra queria que acabasse logo. E o imperador ia empurrando com a barriga, por quê? Ele era o único que podia empurrar com a barriga, porque é uma monarquia que tem rede dinástica na Europa. Aí ele se legitima. 
 
A contra-prova disso é [que] de onde que vem a insurreição mais violenta da regência? Rio Grande do Sul, porque lá dependia pouco do escravismo. Tinha cavalaria, era criação de gado, o tráfico pra eles era secundário então foram pro pau. E, no Maranhão a balaiada, [revolta que ecloriu naquela região entre 1838 e 1841, entre os partidos dos liberais e dos conservadores].
 
Então a unidade nacional é feita em torno da prolongação do tráfico além do bom senso. Isso já vai botar o país todo na ilegalidade, porque toda essa propriedade escrava era ilegal. Aí vem um problema muito específico, e o português que te fez a observação tem razão, que é o problema do Brasil império, até 1850.
 
LN - Tem alguns historiadores que criticam muito essa questão da herança portuguesa porque diz que Portugal tinha formas de controle que você não tinha na colônia.
 
LFA - Inclusive os dois elementos fundamentais do Brasil hoje não tinham em Portugal que era o escravismo - não a propriedade escrava que é o direito de ter escravo, isso tinha até em Paris, os franceses traziam da Martinica [escravos], mas isso não tornava a economia francesa escravista. 
 
O escravismo é quando a propriedade escrava é o modo [econômico] dominante. Portugal tinha escravos, mas não tinha escravismo. Era uma economia camponesa como na época dos Romanos: vinho e trigo. 
 
Então o escravismo que teve aqui não tinha lá. Outra coisa que não tinha em Portugal e que é até palavrão quando você fala, e que é fundamental para entender o Brasil, é o federalismo. Portugal é um estado unitário. Aliás um dos únicos países europeus que tem uma fundação de estado-nação muito homogênea e muito antiga. E a questão da autonomia regional lá derruba qualquer político que chegar com essa conversa.
 
LN - Essa visão, acho que foi de Sérgio Buarque, do português como elemento de integração, mesmo...
 
LFA - Não, acho que é o africano. E isso está vindo de novo pra cima da gente, porque essa população africana fundamental, que formou o país, foi sobrepujada pela imigração maciça europeia, do Oriente Médio, do Japão... Daí quando começou a haver o declínio demográfico da população brasileira inteira, da população branca a taxa de fecundidade começou a cair mais rápido, e da negra mais devagar, do período de 1980 para cá.
 
LN - Nas estruturas de poder, por exemplo, tem o escravismo que você colocou bem, e a questão da igreja e da imprensa, principalmente, que é um desafio para a gente entender melhor?
 
LFA - A igreja... esse é o grande cadáver que ela tem no armário, porque a Igreja portuguesa, e os jesuítas, em particular, eram os únicos que estavam dos dois lados da zona negreira: em Angola e aqui. Tinha um bispado no Congo e Angola desde 1596. Eles tinham missões lá, tinham colégios, e eles se aproveitavam do tráfico negreiro. Eles tinham isenção pra mandar escravos do colégio de Luanda pro colégio da Bahia. 
 
LN - Eles davam formação para os escravos?
 
LFA - Não, eles vendiam. Tinham isenção fiscal da Coroa pra financiar a missão. E o Padre Antônio Vieira, que sabia das coisas, faz o discurso mais audacioso sobre isso - o Sermão do Rosário, aliás são dois, o sermão 14 e o 27 - onde ele diz pra irmandade do Rosário, que era de pretos na Bahia, "vocês acham que é uma dor imensa, mas é uma grande sorte ter saído do paganismo e vir pro Brasil que é terra católica. Porque a primeira transmigração da África pro Brasil abre a via pra segunda transmigração do Brasil para o céu". 
 
Ele é um justificador do tráfico negreiro, e só quem pegou  ele no pulo foi o João Francisco Lisboa que era o liberal laico do Maranhão [da cidade de] Timam, no século 17, e que criticou isso.
 
Porque a coisa parece como uma contradição, porque eles protegeram os índios. Mas não é "mais" é "e". Eles eram a favor da liberdade dos índios "e" a favor da escravidão "e" do tráfico negreiro.
 
LN - Alguma visão religiosa nisso?
 
LFA - Não, não, não. Os negros iriam virar cristãos aqui, porque era difícil fazer missão lá. E a pressão das autoridades régias dos plantadores sobre os índios relaxava e permitia que eles controlassem totalmente a população indígena. O preço da liberdade do índio é a escravidão do negro. 
 
LN - E quando a gente pega os liberais do século 19, tanto André Rebouças, [José do ] Patrocínio, Joaquim Nabuco...
 
LFA - Luiz Gama.
 
LN - Luiz Gama! De que forma que eles conseguem, dentro daquele modelo, espaço político?
 
LFA - É que a coisa ficou muito escandalosa depois da guerra civil americana. Porque todo mundo começou a se assustar que aquilo poderia incendiar o país, da mesma maneira que lá, porque tinham regiões que dependiam mais do que as outras [da escravidão]. Embora aqui a escravidão nacional não tinha uma ruptura tão grande, o Ceará, por exemplo, [foi] o primeiro estado que aboliu porque não tinha dependência [de negros para a economia], quer dizer, já tinha vendido [seus escravos] 
 
O pessoal do Nordeste e do Norte, sobretudo do Maranhão, que estava com a agricultura meio estagnada, vendeu os escravos pra cá [Sudeste], pro pessoal do café que podia pagar caro. 
 
LN - Nos Estados Unidos, um dos fatores que leva a abolição foi a pressão da indústria do lado do Atlântico, querendo aumentar mercado de consumo. Quer dizer, você tinha uma motivação econômica. Aqui quando você tem abolição, em vez de preparar a população escrava para virar cidadão, você tem o abandono geral.
 
LFA - É. Houve uma trapassa aqui.. Mas nos Estados Unidos uma guerra violentíssima, 710 mil mortos, e que até hoje eles põem bandeira no 4 de julho porque aquilo...
 
LN - Mas a motivação foi fundamentalmente econômica.
 
LFA - Foi econômica e também a disputa dos territórios novos que eles tinham comprado. Aí tinha que se decidir se eles permitiam escravidão também lá ou não. Quando eles roubaram a Califórnia do México, por exemplo, na Califórnia diziam 'aqui pode ter escravo'. Desequilibrava o jogo em Washington. Porque quando (...) eram só 8 lá e do outro lado eram 5. Mas a medida que você vai incorporando território novo tem que saber pra que lado ele vai. Porque aí são mais senadores e deputados representantes do congresso e aí o jogo ficou mais pesado.
 
Mas aqui, o que houve foi o seguinte, depois da guerra civil [nos Estados Unidos] ficou uma coisa escandalosa e depois da guerra do Paraguai mais escandaloso ainda. Porque no Paraguai tinha escravidão, eles [da elite brasileira] aboliram lá para fingir que eram civilizadores e continuaram aqui. Você aboli a escravidão no inimigo, na sua [terra] não.
 
LN - Qual é o papel real do [Marquês de] Caxias? Era civilizador ou meramente um guerreiro?
 
LFA - O irmão dele era da associação comercial do Rio, era a Fiesp [Federação das Indústrias de São Paulo] da época, porque era as redes mercantis inteiras. Ele tinha então uma noção da necessidade desse poder imperial e da centralidade do Rio de Janeiro, [que] eram um grande Hub mundial. Não tinha ainda o canal do Panamá. Todo o mundo que ia pro Pacífico ou que ia pro extremo Oriente passava no Rio, pelo cabo Horn, depois. 
 
O Brasil se provincianiza um pouco quando abre o Canal do Panamá. O Campos de Sales e a República Velha é um pouco essa consequência de uma provincianização.
 
LN - Um capítulo muito interessante quando, digamos, vem aquele vácuo político da República Velha, é a maneira como os liberais gauchos se formam. De onde que surge aquela legião que vem mudar o país?
 
LFA - Eles sempre tiveram um lado mais transfronteiriço por causa do Rio da Prata que era o outro grande polo. O que aconteceu no final do século 19 é que de repente a Argentina bombou. O Rio de Janeiro tomou um susto, porque a população [argentina] aumentou por cinco, a exportação por oito.
 
LN - Virou uma das cinco maiores economias do mundo...
 
LFA - Bombou, por volta de 1900, e começou a atrair capitais e imigrantes, até imigrantes portugueses, que era reserva de mercado do Rio, pra Buenos Aires, daí é que vem a luta contra a febre amarela e a urbanização do Rio. 
 
O negócio do Pereira Passos [engenheiro responsável pela reforma no Rio], todo mundo estuda como se fosse imitando [Georges-Eugène] Haussmann, em Paris, mas foi também a reforma de Santos...
 
LN - Em Santos você fala da reforma do [sanitarista e engenheiro] Saturnino de Brito, os canais?
 
LFA - Os canais. Santos também era uma zona epidemiológica que espantava os imigrantes. O Brasil sempre era o primeiro pior país para se ir. O first worst. Porque quando não iam para lugar nenhum, porque eram barrados, vinham para cá. [Com] os japoneses foi assim. 
 
LN - Tem um dos autores, Manoel Bomfim, ele é gozado porque ele mostrava que quem conseguiu fazer a união do país foram os bardos, e a elite fez a Guerra do Paraguai. Mas quando começa a imigração ele fica com o maior medo, porque o Brasil ainda não era uma nação formada, [na cabeça dele] os imigrantes iriam criar clusters... De que forma se dá essa assimilação? 
 
LFA - O [Joaqum] Nabuco também tinha essa posição na época em que ele era progressista.
 
LN - Me fale um pouco de Nabuco antes...
 
LFA - O Nabuco escreveu O Abolicionismo fora do Brasil, ele estava em Londres, e até você pode fazer uma explicação global. A coisa no Brasil era tão vergonhosa que atrapalhava a inserção da elite brasileira nos lugares lá [na Europa].
 
Ele então escreveu aquele livro, que é o melhor livro político do país. O prefácio de O Abolicionismo é um texto que deveria ser lido sempre, é um livro muito importante, e onde ele diz em resumo 'no Brasil um homem de bem não pode se sentir bem'. Que é uma frase essencial da nossa identidade.
 
E ele vem pra cá, se misturou com um movimento que já estava radicalizado, porque tinha o Antônio Bento aqui em São Paulo, gente que dava fuga pra escravo, que saia de noite armado e tal, estava começando a coisa radical. E ele [Nabuco] foi nesse movimento.
 
Mas ele, de repente, viu que o pessoal de Itu, os republicanos, fez um conchavo com os fazendeiros de café pra não fazer a reforma agrária, que era o programa do [André] Rebouças, o imposto territorial. A terra que está improdutiva tem um imposto crescente... E aí veio os republicamos e fizeram o conchavo. 'Não vai mexer na propriedade rural'.
 
O Nabuco entra em parafusos, o Rebouças também. Eles entram numa crise de depressão e sai [disso] um [Nabuco] conservador, pai da pátria, dizendo que agora era pra defender o estado brasileiro. [Nabuco] escreveu Um estadista do Império, onde ele recupera o país dele, a biografia, e depois escreve Minha Formação, onde ele escreve a frase mais vergonhosa.
 
Eu elogiei O Abolicionismo, dizendo que é o melhor texto político do Brasil, agora vou dizer um pedaço do Minha Formação que é a frase mais abominável da histórica política brasileira. Ele diz assim: 'se os negros soubessem que o 13 de maio ia desembocar no 15 novembro, ou seja, que a abolição deles fosse causar a queda da monarquia, eles talvez tivessem aguentado mais...'  
 
Segundo Bloco 19"24' 
 
LN - Antes de continuarmos o segundo bloco, quero fazer duas perguntas que chegaram de internautas. [Uma do] Yuri Mercaldo Coelho, de São Paulo: É possível distinguir entre as causas de nossa atual crise social/política/econômica o que advém de nossa herança escravocrata e o que decorre dos problemas contemporâneos do capitalismo?
 
LFA - É difícil, é uma pergunta complicada. Mas eu acho que houve um hábito no Brasil de você naturalizar a miséria. Ver criança na rua é... o escravismo é uma violência cotidiana. No fundo da casa tem alguém gemendo porque está apanhando, porque foi punido. Então a escravidão urbana no Brasil era muito importante. 
 
O Rio de Janeiro que era a capital do império em 1850, tinha 42% da população era escrava. Era a maior concentração urbana de escravos desde o fim do império Romano. 
 
As pessoas se acostumavam a essa situação, está nas gravuras, fotografias e tudo. Isso é uma coisa que marca muito o país, porque [a naturalização da violência] aconteceu nos Estados Unidos também com a imigração maciça, no regime escravista, aconteceu na Europa, durante a guerra, em vários momentos críticos. 
 
Mas realmente você não se habitua quando chove dizer 'não houve dano nenhum'? Como não houve dano nenhum? Gente com água pelo pescoço, gente morando no lugar precário. Esse tipo de noticiário que nos parece normal é uma coisa que vem dessa insensibilidade social, eu acho.
 
LN - Outra pergunta é da Débora Garcia, do Rio de Janeiro: Como o professor analisa a influência da população negra nas decisões políticas da história do país? A participação e o empoderamento do negro na política melhorou nos últimos anos? 
 
LFA - Não, eu acho que não. É uma coisa que está por vir ainda. Quando houve o debate da audiência pública, organizada pelo Ministro [Ricardo] Lewandowski, que era o relator, da questão da constitucionalidade ou não das cotas [para negros nas universidades públicas], em 2010, tinha alguém lá que deu um dado [de que] 15% dos jovens em idade universitária, que é 18 e 25 anos, nas universidades eram negros. Agora tem 40%. 
 
Então você tem uma dinâmica que não é só por causa das cotas, porque houve uma difusão de universidades pelo Brasil afora. Então isso vai ter efeitos a médio prazo. Mas eu acho que o Brasil está preparado para essa mudança, o Brasil quer essa mudança. 
 
LN - A questão das cotas, como foi essa guerra no Supremo [Tribunal Federal]?
 
LFA - É bom falar sempre das histórias bem sucedidas. É bom falar delas sempre, porque há esse catastrofismo. Essa história começou na realidade, pra não ir muito longe, pego a transição democrática. Quando ela veio o movimento negro unificado era um componente da transição, ao lado MDB e outras coisas e outros movimentos. E a questão de uma política afirmativa, globalmente, estava colocada já. Eu tava num debate uma vez, nos anos 1970, onde estava o Fernando Henrique [Cardoso], e ele fez essa declaração favorável [a ações afirmativas para a população negra]. Ele ainda não era senador nem nada. 
 
LN - Era o velho Fernando Henrique...
 
LFA - É. Era o pesquisador do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento]. Eu até citei num livro em homenagem ao Celso Furtado que nós discutimos aqui, há pouco tempo, essa frase dele. 
 
Isso então foi encaminhando. O Brizola tomou várias iniciativas e as universidades estaduais do Rio de Janeiro criaram um sistema de cota, porque isso era uma tradição do Varguismo. O Getúlio com o DASP [Departamento Administrativo do Serviço Público] e a criação de concursos pra órgãos federais importantes, essencialmente Correio, Banco do Brasil e Rede Ferroviária Federal, abriu um concurso não discriminatório.
 
Então você tem uma pequena parcela de negros que conseguiram emprego estável e uma aposentadoria.
 
LN - Mas sem cota?
 
LFA - Sem cota, na própria dinâmica da época. E aquilo criou um pequeno embrião. [Por] que eles foram sempre muito sensíveis, e o Brizola chegou e foi a primeira coisa que fez. Montou em seguida secretarias... [Brizola foi o primeiro governador a nomear representantes da comunidade negra para secretarias importantes como a médica Edialeda do Nascimento, que ocupou a Secretaria de Estado da Promoção Social, no primeiro governo de Brizola no Rio de Janeiro; o Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, secretário e comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro; Carlos Alberto de Oliveira – Caó, secretário de Trabalho e da Habitação em 1982].  O assunto foi pra frente. 
 
Quando houve a questão da inconstitucionalidade da cota levantada pelo DEM...
 
LN - Senador Demóstenes Torres...
 
LFA - Era o Demóstenes Torres que era o grande representante, que era também procurador e articulado no que falava, na maneira dele, pra exprimir seu ponto de vista, que veio ao Supremo.
 
Houve [então] uma audiência pública, e o Supremo em 2012 votou por unanimidade, inclusive o ministro Gilmar Mendes [votou pelas contas], porque a procuradora que fez a defesa de inconstitucionalidade das cotas, era uma discípula dele. 
 
LN - Uma procuradora?
 
LFA - É, uma procuradora federal. 
 
LN - Porque  é o ministério público quem tem mais batalhado por essas políticas inclusivas...
 
LFA - Ela que foi a porta-voz naquele momento. Mas foi tudo muito bem conduzido naquele momento e, na realidade, todos votaram por unanimidade. O ministro [Dias] Toffoli tinha sido impedido porque tinha sido Advogado-Geral da União, antes, e tinha defendido [as cotas], porque as universidades atacadas [por aplicar as cotas] eram federais. 
 
E a coisa foi em frente. Depois foi votado no Congresso, por uma maioria de votos na Câmara e por uma unanimidade, menos um voto, no Senado. E foi em frente. E o país e os estudantes assimilaram e a coisa andou. Ao contrário do que dizia o pessoal contra a cota que previa as maiores catástrofes de um país racista e tal.
 
Então isso está andando, está mudando o país e eu sou a favor,  no meu argumento no Supremo, fui um dos 15 que eram a favor, e tinham 15 contra. Eu disse 'isso não é uma coisa de resgate, de dívida histórica? Não. Essa política de dívida histórica e de resgate concerne os índios que são a minoria. Os negros são uma maioria. Se eles são a maioria e está havendo a discriminação, é importante [as cotas] para a democracia brasileira. Não é só pros negros em si. É para os brasileiros todos a presença deles nas instituições nacionais'. Isso que é particular. 
 
LN - O que explica esse avanço maluco de BBB, bancada da bala [boi e Bíblia]... essa regressão, isso é um fenômeno que está ligado, digamos, a essa luta contra a corrupção que acaba se desvirtuando também?
 
LFA - [É] Esse Congresso que foi eleito já foi muito mais conservação do que o anterior. Uma coisa curiosa é que no Brasil nunca teve uma extrema direita organizada. Muitos países tem. Na França, é o partido mais forte. Ele não chega nunca a ganhar porque ninguém quer se alinhar com eles no segundo turno. Mas ele assusta o tempo todo. Tem na Hungria, tem na própria Holanda, que é um país aberto. A Polônia tem um governo de direita muito radical. Tem em vários pontos. E no Reino Unido também. 
 
Nos Estados Unidos tem o Tea Party, e há toda essa gente que está atrás do [Donald] Trump que não é uma gente rica não, é pobre também, que se sente abandonado e que não compreende essa modernidade que querem enfiar pra cima deles. Isso é importante. O candidato da luta de classe não é só Bernie Sanders, e o Trump também. 
 
Mas o fato é que aqui [no Brasil] nunca houve uma polarização dessa e ela é difusa. Então é normal que ela apareça também. Eu me preocupo com um polo ligado aos evangélicos, não todos, porque a maioria deles, por exemplo, é contra a pena de morte e na Constituinte eles barraram qualquer iniciativa nesse ponto. Mas há um núcleo bastante intolerante, como a gente viu em algum momento, e um núcleo inclusive que ataca inclusive terreiros de Candomblé e Umbanda.
 
LN - Isso aí desde os anos 1980 eles tinham meta de acabar com terreiros.
 
LFA - O que é um absurdo, porque a religião afro-brasileira é um dos elementos mais antigos da identidade brasileira. Ela começou imediatamente [com a chegada de africanos]. Ela encarou a inquisição, encarou o poder da Igreja Católica, que era a religião oficial, e sobreviveu a isso tudo, e não pode ser agredida dessa maneira.
 
LN - Aqui uma brava procuradora da república conseguiu entrar com uma ação pra obrigar uma emissora de televisão a reparar os danos à imagem das religiões afro, passando um programa de uma hora sobre as religiões afros. Conseguiu passar na primeira instância e na segunda cai. E daí a gente entra nessa questão do mercado de opinião, e o papel que a mídia desempenhou nesse período todo, e agora esta dissipação de centros de informação de opinião que acaba resultado nesses partidos de ultra-direita. Como você está vendo o ambiente brasileiro a luz do que está acontecendo no mundo hoje com esse mercado de opinião?
 
LFA - Só pra ser mais preciso, não é ruim ter um partido de extrema direita organizado. Acho que todo o mundo que jogar o jogo institucional, ajuda a democratizar o país. Tem que ter um partido conservador, que se assuma como tal.
 
LN - A guerra se dá nos votos e não nas ruas...
 
LFA - Não na mídia, ou na agressão, no que for. Há um desgaste muito grande, uma agressividade muito grande. E, se se quiser se arriscar a um ponto de saída, os historiadores do futuro dirão: 'eu acho que a responsabilidade da elite é muito grande, porque foi aquele primeiro insulto coletivo à Dilma, na copa do mundo, que escancarou a grosseria da elite porque veio da parte vip do estádio'. Isso está documentado, é só procurar. E foi um palavrão de uma vulgaridade que até o [Joseph] Blatter que não é um homem de ficar chocado, quando traduziram..., o próprio Maradona, todo o mundo ficou chocadíssimo. E uma coisa machista.
 
Isto então acho que abriu espaço no país pra essa coisa...
 
LN - Mas você teve antes disso uma profusão de colunistas exercitando um jornalista de esgoto, de virulência, muito grande.
 
LFA - Exatamente. Então houve uma preparação. Outro dia tinha um artigo do Martin Wolf [do Financial Times] dizendo que o Trump pode destruir o partido Republicano e causar um drama internacional, porque é o país mais poderoso - Trump está se candidatando ao emprego mais importante do mundo -  e ele [Wolf] responsabiliza o Partido Republicando por causa do assanhamento reacionário dele [do Trump] desde os anos 60.
 
LN- Desde os anos 60?
 
LFA - É, um artigo muito duro do Martin Wolf. 
 
LN - Você tinha aquele ultra direita...Goldo Whater?
 
LFA - Não, aqui foi quando houve a política dos direitos civis. Aqui você tem razão ao ver essa preparação. Tem uma coisa que acho muito esquisita. Não tem moderador nos sites. Você pode escrever qualquer barbaridade.
 
LN - No nosso tem.
 
LFA - Eu sei [risos], eu digo no site dos jornais. Sujeito escreve uma barbaridade, uma incitação ao crime e aquilo fica horas lá até que alguém começa a bombardear e desaparece. 
 
LN - Aqui tem uma pergunta do Edcliff Santos, de Salvador-BA: Quais são os instrumentos de controle legais exercidos pelos Estados francês e inglês quanto a eventuais abusos da mídia?
 
LFA - Isso é muito severo lá. Inclusive há uma alto autoridade do audiovisual que vai em cima, e aplica advertências e multas. 
 
LN - Você tem uma Constituição pública, vem um apresentador que comete crimes de incitação a violência, e se joga tudo debaixo do conceito de liberdade de imprensa. Lá tem essa diferenciação?
 
LFA - Não eles vão pra cima, aliás, por várias razões, se os anúncios estão utilizando criança, bebê... Esse negócio de que hora passa o anúncio tem uma campanha lá, pra barrar os anúncios.
 
LN - cigarro e bebida?
 
LFA - Não pode, tem legislação proibindo. 
 
LN - Publicidade?
 
LFA - Não, inclusive chegam a modificar fotos antigas. Tem foto do [Jean-Paul] Sartre fumando que eles tiram [o cigarro]. Dão foto shop em cima. [risos]
 
LN - A gente tava falando da imagem do Brasil lá fora. Durante muito tempo tinha aquela imagem do brasileira à la Gilberto Freire, da sensualidade, amizade. De que forma que, antes da crise, o Brasil estava sendo visto?
 
LFA - Vou começar bem lá atrás. Primeiro eu queria dizer que a gente esquece isso, mas é muito importante lembrar, antes da ditadura no Brasil, tinha uma política muito audaciosa. Quando houve a renúncia do Jânio [Quadros], onde estava o Jango [João Goulart] como missão? Estava na China! Naquela época China era Belzebu. O Brasil estava se abrindo pra China. Só em 63, dois anos depois, que o [Charles] de Gaulle, numa coisa pioneira que lhe deu dividendo político, 10 anos depois, foi reconhecer a China. E o Richard [Nixon], só foi em 73 lá. 
 
Nessa época China valia pinouts, estavam passando fome. Ninguém ia à China. Mas porque França e Estados Unidos fizeram essa política? Estados Unidos por um presidente republicando anti-comunista? Porque eles tinham uma visão geopolítica da inserção do país deles. 
 
Em 63/64 também o Brasil na ONU votou a favor do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola] e FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique], para que a questão fosse examinada. Veio o Golpe e destruiu isso. A missão comercial chinesa que tinha um estatuto diplomático, foi presa e torturada pela política da época...
[Foram nove chineses presos e torturados pela ditadura militar brasileira em 1964. Este foi considerado o primeiro escândalo internacional praticado pela polícia política do regime] 
 
LN - Matéria do Cruzeiro dizendo que eram maoistas, os chineses [risos]
 
LFA - A polícia do [Carlos] Lacerda [quando governador do Estado da Guanabara] torturou brutalmente eles. Criou um incidente que dura até hoje. Pediram desculpa muito tarde. [Antonio] Houaiss que era o contato e diplomata da época do IPM [Inquérito Policial Militar] na ONU foi expulso do Itamaraty a pedido do[ditador de Portugal, Antônio de Oliveira] Salazar. Isto está no livro do Ovídio [de Andrade] Melo, que foi o primeiro embaixador do Brasil em Luanda [capital da Angola]
 
Então quando o [Ernesto] Geisel reconheceu [a independência de Angola, em 1975] o pessoal põe isso no lado positivo da ditadura. Não! [Isso] tem que estar do lado negativo. Se o Brasil tivesse continuado naquela política favorável a independência dos países africanos... Porque o mundo inteiro sabia que Portugal, um país pobre, não ia aguentar três guerras coloniais - Moçambique, Angola e Guiné Bissau. Onde a França já tinha largado a Argélia, e todo mundo estava puxando o carro da África. 
 
Isso então foi um atraso muito grande. As universidades [brasileiras] se desinteressaram disso [da independência dos paísses africanos]. O livro do Zé Honório Rodriguez - Brasil e a África - de 1961, que é um livro pioneiro, porque ele dava uma visão a favor da África independente...
 
Terceiro Bloco 37"21' 
 
LN - Vamos voltar para essa questão diplomática. Você teve outras tentativas, em alguns momentos, com a Operação Pan-americana... Qual é a diferença desse período Lula sobre os anteriores?
 
LFA - Na realidade já havia uma percepção no Itamaraty antes, que a abertura pra África era prejudicada pela proeminência branca dos diplomatas. '[Vocês] se dizem que é uma democracia racial, e até o garçom ou o chofer aqui é branco'. Conheço vários incidentes assim. 
 
Quando puseram o primeiro embaixador [negro] brasileiro em Gana, que foi o Jânio Quadros que mandou, o Raimundo Sousa Dantas. Era um procurador. Ele narra como o Itamaraty, o sabotou praticamente. E isso, então era um problema, tanto assim que, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, foi criada uma bolsa para negros que se preparassem pra entrar no Itamaraty. Vem lá de trás isso, embrionariamente, digamos.
 
Lula e o Fernando Henrique, os dois, tinham uma visão do mundo. O resto é uma política provinciana e nós caímos nela de novo. Não é culpa dela, mas a presidente Dilma é desconectada disso, não tem conhecimento do mundo. Ela estava no Rio Grande do Sul, perseguida, ela esteve na cadeia, era jovem, ela não andou. Mas em volta dela ela tem gente que andou muito, e o Lula andou muito com os sindicalistas. 
 
O Lula foi ao Japão em 1974 ou 75, porque os sindicalistas das matrizes montadoras de lá queriam saber se não estavam explorando os trabalhadores daqui pra fechar lá. É a competição. Então ele tem uma rede de contatos sindicais muito grande, desde essa época. E o Fernando Henrique tinha uma outra rede, que era uma rede de intelectuais, de universitários e tal. Tinha vivido no Chile. Toda essa rede que passou pela CEPAL [Comissão Econômica para a América Latina]. 
 
O livro de Manoel Bomfim, que foi escrito em 1905, desapareceu. Foi Darcy Ribeiro que comprou numa livraria em Montevidéu [Argentina]. É o exílio! E ressuscitou Manoel Bomfim. Nós não estaríamos falando de Manoel Bomfim...
 
LN - Eu li aquela edição de 1994. 
 
LFA - É a do Darcy. Então você tem dos dois lados essa experiência que se criou do Brasil e o Lula abriu a coisa pra África. 
 
Hoje a gente tem 37 embaixadas na África e 32 na América Latina. Mas isso agora teve uma eclipse muito grande, porque há um desinteresse da presidente sobre esse ponto. Havia uma combinação do Lula com o [Celso] Amorim [diplomata, ex-ministro das Relações Exteriores], que foi uma coisa que teve efeitos exponenciais. 
 
Hoje a gente nem mais sabe direito os nomes dos chanceleres do Brasil. O Amorim ficou dois mandatos e era, um americano escreveu, o melhor chanceler do mundo. O Amorim estava atrás do G20, que esvaziou o G8, fez essa abertura toda pra África.
 
Ai veja só o desastre. O governo Lula criou uma sede da Embrapa em Acra, a capital de Gana, que era porque eles viram lá que a Savana tem semelhanças com o Serrado brasileiro. Agora ouvi dizer que fechou. Então essas embaixadas, as 37, o pessoal do Itamaraty não está muito animado para ir, porque prefere ir para Paris, ou Nova York, outros lugares. 
 
Isso precisa de uma dinâmica da presidência. Quando ela não existe... Você vê que a ambição de todo o político brasileiro que quer um cabide é ser embaixador em Portugal, porque são monoglotas, ou nem se interessam de ler o jornal do outro lado. A Argentina, não. Ela tem um corpo de embaixadores que até a prejuízo do seu próprio corpo diplomático, vai capitando os postos importantes.
 
Nos Estados Unidos é um prêmio pros melhores financiadores do partido. Embaixadores pelo mundo inteiro, inclusive no Brasil são grandes doadores do partido que ganhou a eleição. Isso porque eles têm diplomatas profissionais atrás. 
 
LN - E tem também a diplomacia comercial...
 
LFA - Comercial, e uma coisa que você é muito interessado também: advogados internacionais. São três coisas: grandes empresas, diplomatas e advogados top, que sabem mexer no direito internacional.
 
LN - Essa questão da África, essa tentativa de tentar criminalizar a ação diplomática na África, os lobbies que o presidente [Lula] da república fez por empresas brasileiras, que é a coisa mais natural do mundo. Nisso você vê componente geopolítico? Ou é meramente uma baita ignorância?
 
LFA - É uma baita ignorância, inclusive você vê quando eles falam [ou] querem dizer que o Brasil parece o fim do mundo [em termos de econômicos-sociais] eles citam um país Africano qualquer. As vezes é o Gabão, ou Uganda, aparecem logo como um palavrão.
 
Ora a África anda em um crescimento econômico muito grande, sobretudo a África está num crescimento demográfico muito grande. A Nigéria vai ser o terceiro país mais povoado do mundo, a partir de 2050. A África subsaariana, concretamente a África negra, já vai ter a metade da humanidade no final do século. Dos 15 países mais populosos do mundo, em 2100, sete vão ser africanos, seis asiáticos e só dois americanos - Estados Unidos e o Brasil. Nenhum [será] europeu. E os dois [Brasil e EUA] tem um componente asiático e africano importante. 
 
Então na frente da gente, além da população negra brasileira, [que] constitui a maior população negra fora da África, é o maior país negro fora da África. Se pegar somando os 52% dos brasileiros, que dá 105 milhões, é o maior contingente. Isso faz parte do nosso destino, muito mais do que a América Latina.
 
Tenho que avançar num ponto: se você pega a Bolívia, que está no nosso lado, a pirâmide cultural da Bolívia é o inverso da nossa. Eles tem 2% de negros e 54% de ameríndios. Nós somos o inverso. Então um dia ou outro isso vai pesar também. Nós temos aí uma sedimentação cultural que a medida que ela for aflorando no país, vai haver uma ligação muito intensa com a África.
 
Já tem. Eu fiz uma conta, se você pegar todas as companhias [de aviação] que faz escala da África, tem dois voos por dia que nos ligam à África. Cabo Verde está há três horas e meia do Ceará. Angola são sete horas e meia.
 
LN - Qual é a dificuldade que o Brasil tem de think tanks, de pensar no longo prazo, estrategicamente? Se for comparar a França, além das universidades, quais são as instituições que, digamos, garante a permanência de visão de longo prazo nos países? Tem alguma no Brasil que cumpre essa função?
 
LFA - Eles [os franceses] tem uma administração centralizada e meritocrática, criada desde do Napoleão, que são as grandes écoles, que formam esses funcionários todos, e que é até uma coisa que prejudica agora, porque ela não é muito aberta a imigração. Ela cria um novo elitismo. Mas, enfim, ela segura o Estado. Então quando tem uma crise ela vai segurando.
 
E tem outros países também. Quando teve a crise de 2008, a Bélgica ficou um ano e meio sem governo, e olha que a Bélgica tem confusão por causa da disputa que talvez até o país se divida, entre valões e flamengos, que é entre o pessoal que fala francês e de cultura católica. Grosseiramente digamos, o pessoal que fala flamengo é mais protestante, que é mais dinâmico agora. Mas ficou sem governo por um ano e meio. A administração tocou.
 
Vi um artigo sobre isso dizendo 'tá vendo? Como não tinha governo pra impor a política de austeridade, a crise foi mais branda'. [risos]
 
LN - E se você olhar o Brasil hoje, os partidos políticos esfacelados, a mídia - aliás, uma invasão de todo o lado da mídia europeia, o El país, a BBC - o governo federal sitiado. Como você vê os possíveis deslanches aí?
 
LFA - Eu dei uma entrevista pro El país outro país. É até um ponto que tem a ver com a história. Essas eleições de outubro, municipais, vão ser importantes por duas razões: é a primeira sem financiamento de empresa. Então vai ser um teste. Como que é? É bom para quem já está na prefeitura? E é ruim pra quem vai ser contra? Se é um candidato que vai disputar a prefeitura? Vamos ver.
 
As eleições municipais no Brasil sempre foram a essência da política, porque elas existem desde o período colonial. A Câmara municipal de São Paulo era uma câmara rebelde no século 17 porque eles não dependiam de escravo africano. Eles tinham autonomia porque exploravam a população endógena, indígena. E a do Maranhão pela mesma razão também. Então havia esse conflito, expulsar os jesuítas e tudo, as atas das câmaras são o momento da ideologia paulista, depois de 1932, a USP é criada muito em torno disso. 
 
Os Mesquitas financiaram os historiadores portugueses, Jaime Cortesão em particular, que criou a figura do bandeirante, Raposo Tavares e tal. Houve toda uma historiografia em volta. Os institutos historiadores de São Paulo também. 
 
Isso então é uma coisa que tem muito a ver por causa do enraizamento das câmaras municipais. Quando o imperador Dom Pedro I proclamou a independência, quem reconheceu ele? As câmaras municipais. Não tinha nenhuma legitimidade aqui fora delas. Então isso já constituiu um tecido nacional.
 
E as câmaras municipais nunca tiveram reunião interrompida nesse tempo todo. Durante a ditadura foi interrompida acima de 200 mil habitantes, e as capitais, mas as outras continuaram.
 
LN - Nas instâncias climáticas também...
 
LFA - Nas instâncias climáticas, porto... mas se você pegar tem 5.500 municípios do Brasil, [a ditadura militar] pegou [interrompendo a administração] uma parte pequena [dos municípios]. 70% tem menos de 50 mil habitantes. Então ali você tem os diretórios.
 
Daí entra um detalhe [que é] o teste do PT, que é o partido que tem mais diretórios. Cerca de 4.300 entre os 5.500 municípios. E depois os outros têm menos. O PMDB vem em seguida, mas com muito menos. E a decisão maior, a mãe de todas as batalhas, vai ser a eleição de São Paulo, porque? Digamos se o [Fernando] Haddad [atual prefeito] perde, o PT acabou. Se o Haddad ganha é uma flama de novo à restauração.
 
LN - Seria um candidato para 2018, se o Lula não entra?
 
LFA - Sei lá...
 
LN - Você tem que ter uma perspectiva de candidato forte.
 
LFA - Tem uma perspectiva de polarização, de novo, e de um renascimento em outras bases. Se o PSDB ganha, o PSDB vai rachar também. Essa briga que nós estamos vendo agora, do Alckmin com o Serra, e que já até houve agressão, e é uma briga que vai até o fim, por quê? Porque os dois sabem que é a última eleição presidencial deles.
 
LN - E se Lula sai de cena, os três se matam.
 
LFA - Se o Lula sai de cena e se o Aécio sair também, essa eleição será uma eleição ganha. Impossível perder. Então eles vão até o final [das prévias dentro do PSDB] brigando pra saber quem vai ser designado pelo partido, e o que perder vai pra outro partido. Isso a gente já sabe, já está combinado. Vai ser candidato por outro partido. Então o PSDB também acaba, porque é o núcleo de São Paulo que vai ser fragmentar.
 
LN - Cá pra nós aqui, sou paulista de coração, mas aqui é o tumulo da política, tanto no PT quanto no PSDB.
 
LFA - A disputa aqui em São Paulo cria uma desordem com impacto nacional. Em 1989, quando redemocratizou, tinha 5 candidatos [à presidência da República] em São Paulo.
 
LN - [Guilherme] Afif [Domingos], [Mário] Covas, Lula...
 
LFA - Ulisses [Guimarães] e Mário Covas [e Paulo Maluf]. É porque não dá pra juntar, porque São Paulo é um estado rico e pobre, tem agribusiness, indústria. Então ele tem essa fragmentação. Os jornais que são nacionais, se chamam Estado de São Paulo, Folha de São Paulo...
 
LN - Esse é um aspecto interessante. Porque corria no Rio, capital também, que os jornais eles cobrem a política nacional, e deixam solta a política local.
 
LFA - Mas eles se chamavam Jornal do Brasil, ou O Globo, Correio da Manhã...
 
LN - É possível você identificar uma postura programática nos partidos que vem pela frente? Porque o PSDB hoje você não sabe mais o que é. O próprio PT junta, digamos, pessoal de políticas sociais, mas de uma forma muito tênue.
 
LFA - A campanha da Dilma em 2014 foi uma campanha 'olha o que nós fizemos'. Ela não disse 'o que nós vamos fazer'. Ela já tinha sido eleita antes, em 2010. Ela fez uma campanha como se fosse a primeira candidatura dela. E isso deu no que deu. Ela teve que mudar a política e não explicou.
 
 
 
 
 

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