quinta-feira, 12 de maio de 2016

12 de Maio de 2016: um Monumento da Barbárie, por Sérgio Reis




 "Hoje é um dia de derrota das forças populares, das forças democráticas, das forças historicamente espezinhadas. Isso parece controverso a princípio, quando pensamos que este governo deu, sim, suas contribuições à barbárie: Belo Monte, Lei Antiterrorismo, Ajuste Fiscal (etc). Primeiramente, o ponto é que esse 12 de Maio não significa apenas a derrubada de um governo, mas principalmente o abalo a estruturas essenciais que conformam o frágil Estado de Direito e a jovem Democracia brasileira."


Walter Benjamin, em minha opinião o maior pensador do século XX, produziu em sua jornada uma revolucionária interpretação da chamada Filosofia da História, campo que busca compreender se há sentidos ou lógicas nas trajetórias percorridas pelas sociedades humanas ao longo do tempo. Benjamin nos mostra que as narrativas dominantes são aquelas as quais, por um lado, interpretam a história como uma mera sucessão de fatos, de pontos que se ligam, continuamente, adicionando-se como se neutros fossem; por outro, como progresso, como se vivêssemos um linear processo de melhoria da vida social.
Nada mais falso, nos diria Benjamin. Em primeiro lugar, essa interpretação “cartesiana” nada mais significa do que o ponto de vista dos vencedores, daqueles que, ao longo do tempo, hegemonizaram as lutas pelo poder e, subsequentemente, as formas pelas quais essas narrativas são contadas – como se fossem, por sinal, não resultados de opressões, mas de uma espécie de “inevitabilidade histórica”. Em segundo lugar, essa visão sobre a história mundial é ideológica na medida em que apresenta esse reiterado processo de dominação de uns sobre outros como um progresso geral.
Benjamin nos propõe, na verdade, uma Filosofia da História que interpreta o processo histórico necessariamente como a narrativa da ruptura, da barbárie, mas também da esperança. A História é descontínua, conformada por momentos que possuem, por sua natureza, identidade plena, embora separados por tempos históricos mais ou menos longos. Por sinal, a compreensão da força e da interconexão entre esses momentos depende da sensibilidade de quem os olha, de quem é capaz de perceber o que é que está e estava em jogo. O completamento do sentido de um fato histórico nunca está apenas nele, mas sim na forma com que se articula com outros, de tal maneira que o passado jamais será, com relação ao presente, algo inferior, ou algo encerrado em si mesmo. E, assim, a tarefa histórica de quem se arrisca a fazer história não está posta a favor de seus descendentes, mas sim da redenção de quem nos antecedeu, de quem lutou e teve sua luta apagada, diminuída ou recontada a partir da perspectiva de quem o derrotou.
Daí, então, a potência da charge aparente simples de Millôr: “o Brasil tem um enorme passado pela frente”. Temos, sim, por que nossas contas com o passado jamais foram plenamente acertadas. E, volta e meia, ele volta com a mesma força que caracterizou, historicamente, o conjunto de vitórias que o conformaram. É por isso que não dá para entender este 12 de Maio de 2016 como uma sucessão de 11 de Maio de 2016, ou de 10 de Maio de 2016. E também não dá para compreendê-lo como a mera consequência, por exemplo, a 26 de Outubro de 2014, ou a 1º de Janeiro de 2015. Hoje é um dia que rememora o 1º de Abril de 1964, o 24 de Agosto de 1954, o 10 de Novembro de 1937. É um dia de barbárie, como o 16 de Abril de 1996 (Eldorado dos Carajás), o 2 de Outubro de 1992 (Carandiru), o 4 de Novembro de 1969 (Marighella), o 16 de Novembro de 1904 (Revolta da Vacina), o 2 de Outubro (de novo) de 1897 (Canudos), do 20 de Novembro de 1695 (Zumbi) e, quem sabe, o 22 de Abril de 1500, dentre tantas e tantas outras datas.
Hoje é um dia o qual, neste momento, se é contado como se mais um fosse, como se não contivesse em si significado axiológico algum, como se representasse a continuidade institucional corriqueira, como se fosse vazio e homogêneo diante de outros, como se fosse fato encerrado em si mesmo. Não é. Hoje é um dia de derrota das forças populares, das forças democráticas, das forças historicamente espezinhadas. Isso parece controverso a princípio, quando pensamos que este governo deu, sim, suas contribuições à barbárie: Belo Monte, Lei Antiterrorismo, Ajuste Fiscal (etc). Primeiramente, o ponto é que esse 12 de Maio não significa apenas a derrubada de um governo, mas principalmente o abalo a estruturas essenciais que conformam o frágil Estado de Direito e a jovem Democracia brasileira.
Em segundo lugar, precisamos refletir sobre a circunstância aparentemente trivial, mas fundamental, de que governos têm lado, têm pretensões de representação. Há quem proponha, como interessante provocação, que talvez o que se vive agora, como sempre se viveu, diga respeito a um mero conflito entre frações de uma mesma elite, a qual invariavelmente se manteve afastada da grande massa popular. Esta, por sua vez, continuamente estivera alijada, na prática, dessas tensões, sem efetivamente se importar com uma disputa a qual jamais poderia expressar suas vontades, interesses e desejos. É uma leitura válida, que de alguma forma dialoga com a reflexão de Jessé Souza, mas é preciso colocá-la em perspectiva.
Isso porque, independentemente da adequação desse raciocínio, é necessário entender que o ataque à República, à Democracia e aos valores da Constituição é um ataque no mínimo à chance de efetivação de direitos desses segmentos historicamente subalternos e marginalizados. Há, intrinsecamente, um lado que é derrotado, como consequência necessária do golpe. O programa que será implementado pelo governo ilegitimamente posto é um programa que terá consequências práticas, carregando, como símbolo, genéticas desse passado não resolvido: a “questão social como caso de polícia” (Washington Luís), o “bolo que precisa ser crescido para, depois, ser repartido” (Delfim Netto), o “cheiro do cavalo” que “é melhor do que o do povo” (Figueiredo), a “ordem e o progresso” (Comte, Temer?). São as gramáticas do poder que se mantém subreptícias e que retornam com força ao serem chamadas à ação pelo status quo.
É essencial compreender como essas circunstâncias se articulam não como um mero continuum, mas como uma conurbação de experiências únicas que moldam a nossa história, que se combinam, produtivamente, e que produzem, no seu todo, o estado de coisas deste país. São mônadas, são totalidades indivisíveis, na sintaxe benjaminiana.
Perceberemos a dimensão desta perda quando soubermos entender que a sua redenção significa mais do que a sobrevivência de um projeto de 13 anos, iniciado, no discurso de Lula à época, como o “reencontro do Brasil consigo mesmo”. Significa construir uma história que resgate quem ficou pelo caminho desde há muito, seus valores, experiências e sonhos, os quais, no seu todo, expressaram a conjugação de momentos de digna esperança do povo brasileiro. Talvez, o nosso fracasso neste dia de hoje de alguma forma tenha significado o nosso fracasso em rememorar, ao longo dessa curta trajetória em mais de 500 anos com governos com alguma aspiração popular, todos os que foram prostrados no chão, toda a nossa escravidão, todo o nosso Estado de Exceção nos subúrbios, todo o nosso sequestro particular de riquezas, terras e oportunidades de vivência digna, todas as “corveias anônimas de nossos contemporâneos”.
Não repitamos esse equívoco. Produzamos outro inconformismo, outra insubordinação, um outro “agora” que redima as opressões de sempre, hoje didaticamente consubstanciadas em um golpe parlamentar unicamente voltado a trazer de volta, sem mediações, os “donos do poder” atemporais. Que escovemos este Brasil a contrapelo para produzirmos a massa crítica necessária para ressignificarmos nossa história e citarmos um outro 25 de Janeiro de 1835 (Malês), para darmos chance a nós mesmos em nossa pretensão de nos liberarmos de quem nos vilipendia à ordem do dia, agora com “segurança jurídica”.
Crédito da Imagem: Millôr Fernandes, via Facebook

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