sábado, 10 de dezembro de 2016

Antropólogo vê no MS um ensaio para militarização da Funai pelos golpistas


Do "De Olho nos Ruralistas":

Jogos Mundiais dos Povos Indígenas (Foto: ONU)

Messias Basques, da UFRJ, diz que nomeação de coronel em Campo Grande prenuncia o que virá no Brasil, para favorecer interesses do agronegócio e da bancada ruralista

O antropólogo Messias Basques, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), enxerga uma tendência de militarização da Fundação Nacional do Índio (Funai). E não só no Mato Grosso do Sul, onde foi nomeado um coronel da reserva, este mês, para chefiar a coordenação de Campo Grande.
Confiram nota de Basques sobre o que ele considera um ensaio para a militarização:

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O processo de militarização da Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, pode ser descrito como um “ensaio”, por parte do governo federal, para o processo de militarização da Funai em todo o Brasil e de seu comando, em Brasília, com o claro intuito de intervir em favor dos interesses do agronegócio e da bancada ruralista.

Os deputados estaduais (Paulo Corrêa e Mara Caseiro) e federais (com destaque para Carlos Marun) de Mato Grosso do Sul, que representam os interesses do setor, têm se utilizado de uma tática colonialista para enfraquecer, dividir e conquistar: abriram as portas do governo e passaram a dar suporte a um grupo de lideranças indígenas, enquanto os coletivos indígenas tradicionais (como o Conselho do Povo Terena e a Aty Guasu Guarani Kaiowá) têm sido alvos de Comissões Parlamentares de Inquérito, de campanhas difamatórias contra seus porta-vozes e aliados nas redes sociais e imprensa e, mais recentemente, de uma evidente tentativa de desmobilização e enfraquecimento.

No dia 2 de dezembro de 2015, o governador de Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja, convocou lideranças indígenas para discutir a questão dos conflitos fundiários no Estado. Na ocasião, a subsecretária de Políticas Públicas para a População Indígena, Silvana Dias de Albuquerque (Silvana Terena), afrontou parte dos indígenas e lideranças presentes, ao convidar para a composição da mesa o senhor Hilário da Silva, que havia sido exonerado do cargo de coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) sob graves críticas e acusações por parte da comunidade indígena no Estado. Hilário da Silva foi reconduzido ao cargo no dia anterior, 01 de dezembro, mas o fato é que, ao chamá-lo para a composição da mesa do evento convocado pelo governador, Silvana Terena afrontou e provocou a ira dos coletivos indígenas ali representados, uma vez que o tema do evento se resumia exclusivamente à questão fundiária. Enquanto Silvana Terena pedia palmas e saudações a Hilário da Silva, seu aliado político, muitos indígenas e lideranças, contrariados, deixaram o recinto e partiram em direção ao prédio do DSEI, de onde seriam posteriormente retirados com o uso da força policial, a pedido do coordenador reconduzido ao cargo.

Desde então, as lideranças indígenas de Mato Grosso do Sul passaram a se dividir em dois “lados”: um representado pelos coletivos tradicionais; outro apoiado pela subsecretária do Governo do Estado e pela bancada ruralista.

Hilário da Silva foi definitivamente exonerado do DSEI no início de abril de 2016, e não apenas a pedido dos coletivos e comunidades indígenas. O Sintsprev (Sindicato dos Trabalhadores Públicos Federais em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social de Mato Grosso do Sul) apoiou a sua exoneração e a nomeação do indígena Lindomar Ferreira, membro do Conselho do Povo Terena.

Ainda enquanto presidente Interino, Michel Temer mandou exonerar coordenadores de DSEIs em diversos estados da União. No Mato Grosso do Sul, a exoneração atingiu Lindomar Ferreira, que estava à frente do órgão havia apenas três meses e liderava uma auditoria, cujo laudo final apontou desvios e irregularidades na gestão anterior, sendo entregue ao Ministério Público Federal, que instaurou inquérito para averiguar as denúncias e solicitar diligências aos órgãos competentes. Para o seu lugar foi nomeado um indígena da mesma etnia, o senhor Edmilson Canale, alinhado com o grupo político da subsecretária Silvana Terena.

No dia 8 de junho de 2016, o governador esteve presente em uma audiência pública na Assembleia Legislativa, intitulada “Valorização dos Caciques Indígenas de Mato Grosso do Sul”. Durante o evento, o deputado Paulo Corrêa insistia em dizer que ali estavam os legítimos representantes dos povos indígenas no Estado, que o Conselho do Povo Terena e a Aty Guasu estavam extintos e que seus porta-vozes eram “covardes”, por terem se recusado a depor na CPI do Conselho Indigenista Missionário. No encerramento, Paulo Corrêa e Silvana Terena chamaram as lideranças indígenas presentes para que se alinhassem à frente da mesa da Assembleia. 

Aqueles que estivessem de acordo com uma declaração de repúdio ao Conselho Terena e à Aty Guasu deveriam posar para uma foto de “manifesto”. Esta foto circulou pelas redes sociais e foi amplamente divulgada pela imprensa.

No dia 5 de setembro de 2016, em nova audiência pública na Assembleia Legislativa e financiados com recursos públicos, lideranças indígenas e apoiadores voltaram a se reunir. Desta vez, com o intuito de atender ao desejo de Paulo Corrêa e de Silvana Terena no sentido de criar o “Fórum dos Caciques de Mato Grosso do Sul” (Focams).

Em outro ato de afronta aos coletivos indígenas no Estado, o Focams divulgou que realizaria a sua primeira assembleia justamente nos mesmos dias em que já estava agendada a 9ª edição da Assembleia do Povo Terena, na Aldeia Bananal, Terra Indígena Taunay-Ipegue; de 15 a 18 de novembro. Assessores da atual gestão do Dsei percorreram algumas aldeias do Estado, oferecendo diárias e hospedagem no Hotel Chácara do Lago, onde seria realizado o evento do Focams. Utilizando-se de uma viatura da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), Placas NRL 9212, os senhores Carmelito Canale, “Pagode”, Pedro Lulu e Aguinaldo Arruda promoveram o evento e convidaram as lideranças dessas aldeias, justificando que o Dsei faria uma “prestação de contas” na mesma ocasião.

Enquanto isso, na quinta-feira, 10 de novembro, foi publicada no Diário Oficial a exoneração do coordenador regional da Funai em Campo Grande, senhor Evair Borges. Funcionário de carreira da Funai, Evair atua na instituição há 16 anos e estava à frente da CR desde 2014. Para o seu lugar foi nomeado um coronel da reserva, o senhor Renato Vidal Sant’Anna, sem nenhuma experiência anterior de trabalho com povos indígenas. A indicação do coronel partiu do deputado Carlos Marun, que, não por acaso, estudou em colégios militares e é membro da bancada ruralista. A exoneração de Evair Borges foi rapidamente acompanhada de um alinhamento do Focams em torno do coronel nomeado para a coordenação da Funai, o qual passou a contar com o apoio das lideranças indígenas filiadas ao Fórum dos Caciques. Diante de críticas e denúncias de uso indevido de dinheiro e recursos públicos para a realização da assembleia do Focams no referido hotel, as promessas de pagamento de diárias e hospedagem foram retiradas e o evento foi transferido para a aldeia Água Bonita. O coronel foi convidado e esteve presente no evento, juntamente com a subsecretária Silvana Terena e a deputada estadual Mara Caseiro.

A Assembleia do Povo Terena ocorreu ao mesmo tempo em que lideranças e indígenas ocupavam o prédio da Funai, em Campo Grande, em protesto contra a nomeação do coronel Renato Vidal Sant’Anna. O ocupação foi iniciada por acadêmicos indígenas, mas contou com o apoio de caciques e representantes de diversas etnias. O coronel entrou com um pedido de reintegração de posse e a audiência que tratou do assunto ocorreu na última segunda-feira, às 09 horas, em Campo Grande. O juiz deferiu o pedido, mas decidiu que a Funai deveria providenciar a viagem de uma comissão de indígenas que estiveram na ocupação da Coordenação Regional de Campo Grande, para que os mesmos possam falar diretamente com o ministro da Justiça, em Brasília. A nomeação do coronel viola direitos constitucionais e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, pois não houve consulta prévia às comunidades indígenas e às suas lideranças.

Ao final da audiência, o coronel pediu para falar com os indígenas da ocupação do prédio da Funai e assumiu que não tem conhecimento e tampouco experiência sobre a administração da instituição e sobre os problemas que dizem respeito aos povos indígenas em Mato Grosso do Sul. Chegou até mesmo a dizer que renunciaria, caso o Focams e os coletivos indígenas apresentassem o nome de um indígena para a Coordenação Regional da Funai, em comum acordo. Como não há a mínima possibilidade de acordos ou entendimentos entre lados tão claramente distintos, a estratégia do coronel consistiu em demonstrar que o “lado” dos coletivos é aquele que se recusa ao “diálogo”. Uma vez reintegrada a posse do prédio da Funai, o coronel recebeu uma comitiva de lideranças do Focams, enquanto aliados deste Fórum comemoravam nas redes sociais e perante a imprensa uma suposta “vitória” sobre os coletivos tradicionais e seus aliados, como jornalistas, advogados, acadêmicos e antropólogos.

O curioso é que há retomadas realizadas por povos indígenas em várias regiões do estado e, nestes lugares, convivem representantes dos “dois lados”. Resta saber se aqueles que se encontram filiados ao Focams têm a esperança de que o coronel e os deputados da bancada ruralista, que criaram o fórum e são os responsáveis pela divisão do movimento indígena no Estado, estarão ao lado dos indígenas ou dos ruralistas nos casos de reintegração de posse. Também parece ser uma questão de tempo para que a Funai de Brasília tenha, enfim, um novo presidente em caráter definitivo. E tudo leva a crer que o nomeado será o general Franklimberg Ribeiro de Freitas.

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