quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Como a PEC 55 afeta tratamento de câncer no SUS


Do Outras Palavras:

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Governo quer cortar gastos na Saúde no momento são cada vez mais necessários medicamentos de alto custo para combater doença
Por Ingrid Matuoka, na Carta Capital
Sergio Oliveira da Rosa, 56 anos, descobriu o câncer há dois anos após um exame no Hospital Conceição, em Porto Alegre. O que a princípio parecia um problema dermatológico, de manchas e coceira na pele, logo se revelou ser um linfoma de Hodgkin que tomara seu pulmão direito inteiro. “A primeira coisa que eu pensei foi: quanto tempo me resta?”
Sem muitos recursos, Sergio viu-se refém da fila de espera do Sistema Único de Saúde para iniciar a quimioterapia, enquanto seu fôlego e qualidade de vida iam se deteriorando. “Sou gremista, adoro jogar futebol, mas tive de parar porque qualquer esforço me deixava muito cansado”, conta.
Pouco tempo após o diagnóstico, um médico informou Sergio sobre uma pesquisa clínica em andamento no Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre, que ofereceu para o seu caso uma combinação de seis medicamentos de alto custo, ainda não disponíveis no SUS.
Atualmente, o sistema público oferece outro tratamento, com menor eficácia e mais efeitos colaterais. Sergio foi aceito para o tratamento de ponta, uma quimioterapia que durou oito meses, inteiramente custeada pela multinacional Takeda
Gabriela Alerico, biomédica e coordenadora de pesquisa que acompanhou todo o tratamento de Sergio, afirma que ele teve resposta total à quimioterapia. “Isso significa que as chances de o câncer voltar existem, mas são mínimas”, explica.
O sucesso do tratamento de Sergio dependeu do apoio de uma instituição privada, mas nem todos os pacientes têm a mesma oportunidade. Em um cenário no qual os diagnósticos de câncer devem se tornar cada vez mais frequentes no País, o SUS precisará ampliar seu financiamento para dar assistência aos brasileiros com a doença.
Segundo uma estimativa do World Cancer Report, publicado em 2014 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 20 anos ao menos 22 milhões de novos casos de câncer serão diagnosticados no mundo todo ano, fazendo da doença a principal causa de morte, superando as cardiovasculares e as cerebrovasculares.
Nesse cenário, o corte de gastos na Saúde com a PEC 55, aprovada em primeiro turno na terça-feira 29, deve resultar em enormes dificuldades para o setor público brasileiro custear tratamentos contra as neoplasias.
Nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos, o câncer já é a principal causa de morte para quem tem mais de 45 anos. Mais de 60% de todos os casos anuais de câncer no mundo ocorrem na África, Ásia, América Central e América do Sul, onde somente 30% dos diagnosticados sobrevivem. Só na América Latina e Caribe, estima-se que a partir de 2030 uma em cada três pessoas será exposta a algum tipo de neoplasia, com 1 milhão de mortes ao ano. Para as mulheres, uma em cada nove deve desenvolver câncer de mama.
O mesmo estudo da OMS chama atenção para outra mudança no padrão do câncer. Antes considerada uma doença de risco para os mais velhos, ela já atinge pessoas cada vez mais novas.
Embora a oncologia tenha evoluído consideravelmente nos últimos anos, o elevado custo ainda limita o acesso ao tratamento. Cada nova droga tem o preço médio de 10 mil dólares ao mês, e certos tratamentos chegam a 1 milhão de dólares ou mais.
Stephen Stefani, médico oncologista do Instituto do Câncer Mãe de Deus, explica que a inflação de terapias oncológicas é superior ao índice oficial de inflação (IPCA), pois o custo do desenvolvimento desses remédios é muito alto por causa da necessidade de se investir em uma equipe altamente qualificada, tecnologias de ponta e muita pesquisa.
“Para obter um medicamento vitorioso, é necessário investir 1 bilhão de dólares, porque tem de pagar a droga que deu certo e todas as outras que naufragaram no processo de investigação”, diz Stefani.
Ele também aponta o gasto com tributos e propagandas como outros dois fatores que encarecem o estudo clínico. “Um carro de luxo pode custar quatro vezes mais do que um carro popular, mas nem sempre ele é quatro vezes melhor. Esse raciocínio vale também para os medicamentos.”
No Brasil, cada vez mais pacientes têm buscado o Judiciário para ter acessos aos tratamentos mais modernos, muitos deles ainda não disponíveis no sistema. Ao descobrir um câncer de mama na mesma semana em que soube que estava grávida, Camila Carvalho, 28 anos, seguiu o roteiro.
Para seu tratamento, foi indicado o medicamento trastuzumab. Entre 20 e 25% das pacientes diagnosticadas com câncer de mama costumam adotar o tratamento por ser um dos mais avançados, ao agir diretamente sobre as células doentes e preservar as sadias. Cada caixa da droga custa cerca de 10 mil reais
Em julho de 2012, sete anos depois de o mundo começar a utilizá-lo, o trastuzumab foi incorporado à lista de remédios distribuídos gratuitamente pelo SUS, mas as pacientes com câncer de mama em estágio avançado são impedidas de utilizá-lo. Sem um plano de saúde, Camila depende do sistema público, e decidiu entrar na Justiça para ter acesso ao medicamento.
“Quero continuar vivendo e bem, porque tenho dois pequenininhos para criar. Queria pelo menos ver meu filho completar um ano. Meu foco está nos meus filhos”, diz a mãe de Julia, de 5 anos, e Vitor, que sobreviveu às duas cirurgias e a quimioterapia a que Camila foi submetida.
Ana Luiza Antunes Faria, mastologista da equipe do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, afirma que a maioria dos cânceres de mama metastáticos não é reversível, mas pode ser controlada com a medicação adequada. “Os tratamentos prologam o tempo de vida e também auxiliam no controle da progressão da doença, que é o tempo de vida antes de a doença se agravar ainda mais.”
Os gastos do Ministério da Saúde com o financiamento de medicamentos por meio de demanda judicial aumentaram 500% entre 2010 e 2014. Apenas em 2015, o gasto superou 1 bilhão de reais. Em todo o período, a soma ultrapassa 2,1 bilhões de reais.
Carlos Barrios, diretor do Hospital do Câncer Mãe de Deus, aponta a pesquisa clínica como uma das opções aos tratamentos oferecidos, ou não, pelo SUS, mas reconhece que há barreiras. “A pesquisa pode ser uma solução parcial ao processo das dificuldades de acesso a tratamentos mais avançados e difíceis de incorporar no sistema, mas o processo burocrático de regulação e aprovação ainda é algo que precisamos trabalhar”, afirma Barrios.
Stephen Stefani
“Se eu separar o sistema público do privado, temos países diferentes”, afirmou o oncologista Stephen Stefani sobre a saúde no Brasil (Foto: Otávio Fortes)
O tratamento para o câncer e a saúde pública
Muitos brasileiros ainda padecem com falta de um diagnóstico precoce ou com a dificuldade de ter acesso a medicamentos e terapias de alto custo. “Se eu separar o sistema público do privado, temos países diferentes”, afirmou o oncologista Stephen durante o 3º Congresso Multidisciplinar em Oncologia do Hospital do Câncer Mãe de Deus. “E toda vez que eu tomo uma decisão em saúde, estou privilegiando alguém”, completa.
No país, quem paga pela saúde ainda é o paciente: 47,5% da conta final da saúde é arcada pelo poder público, ante 52,5% para o cidadão ou empresas. Na média mundial, a proporção é oposta. Os dados são da OMS, de um levantamento publicado em 2015.
Ainda segundo a Organização, o governo brasileiro destinou em média a cada cidadão 512 dólares por ano em saúde, abaixo da média mundial. Nos Estados Unidos, esse valor chegou a 4,1 mil dólares do governo. Embora se trate da média anual de um país desenvolvido, o País fica atrás até de Portugal, onde os gastos públicos com saúde são mais de duas vezes superiores aos do Brasil.
Na avaliação do ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, esse cenário pode se agravar com a aprovação da PEC 55, com impactos sobre os investimentos na saúde pública. “Uma medida como essa, que vigorará por 20 anos, levará a um profundo desfinanciamento da saúde, que a partir do terceiro ou quarto ano terá uma perda real de recursos, enquanto a demanda só aumenta […] E na verdade, não se trata de números. Estamos falando de mortes.”
Sergio Oliveira, o exemplo inicial, tem feito acompanhamentos a cada três meses para garantir que o câncer não voltou. Diz não se sentir mal em voltar à sala onde fez quimioterapia por quase um ano porque o resultado foi positivo. “Eu não tinha ideia de que a cura podia vir, e que eu vou poder voltar a jogar futebol”, comemora.

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