segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Entrevista do El País com o cientista político Rogério Arantes, que afirma: "“Protagonismo da Justiça deslocou centro gravitacional da democracia brasileira”



Rogério Arantes, cientista político da USP VICTOR MORIYAMA

Para Arantes, tese de 'propinocracia' é similar à figura do 'conjunto da obra' que tirou Dilma do poder (ou seja, uma farsa).


São Paulo 
Em tempos menos turbulentos, talvez os últimos cerca de dez dias que passaram fossem classificados como um dos momentos mais agitados na vida nacional do último ano. Teve posse da nova presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF). Teve o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), cassado. E teve, por fim, o ex-presidente Lula sendo transformado em réu na Lava Jato depois de uma denuncia controversa apresentada por parte de procuradores. Professor da Universidade São Paulo (USP), o cientista político Rogério Arantes tem estudado há anos o sistema Judiciário brasileiro e, mais especificamente, a atuação do Ministério Público (MP) e da Polícia Federal (PF). Em conversa por e-mail com o EL PAÍS comentou os principais acontecimentos dos últimos dias.
Pergunta. A apresentação da denúncia contra o ex-presidente Lula e a recente prisão do ex-ministro Guido Mantega foram criticadas por uma série de analistas de diferentes espectros políticos. As críticas têm razão?
Resposta. De fato, a denúncia contra Lula não trouxe nenhuma novidade. Apenas a forma de apresentá-la é que surpreendeu. Mas um analista atento da Lava Jato é capaz de perceber como desde o início ela está estruturada numa forma piramidal, partindo de uma alargada base de investigações envolvendo empreiteiras, diretores da Petrobras e políticos individuais que vai se afunilando até o topo quando finalmente se alcançaria o “comandante máximo” do esquema de corrupção. Na visão dos responsáveis, a operação não poderia terminar sem oferecer essa “cabeça” ao país, e me parece evidente que desde o início o alvo era a de Lula.
P. E essa carapuça serve nele?
R. Objetivamente, as provas reunidas não são suficientes para atribuir este comando ao ex-presidente e por isto a denúncia abusou da convicção e da tentativa de convencimento retórico. Neste aspecto, ela é mais política do que jurídica. Mal comparando, Lula também está sendo acusado pelo “conjunto da obra” do esquema de corrupção da Petrobras, assim como Dilma foi em seu processo de deposição. Mas diferentemente de um processo de impeachment que pune pelo “conjunto da obra” com a perda do cargo, aqui estamos falando de pena de prisão, de privação de liberdade. Não se pode chegar a este tipo de veredito por meio de argumentação política, contrariando o devido processo legal. Não se faz justiça com PowerPoint. Da mesma forma, a operação corre o risco de se perder ao decretar prisões temerárias como a do ex-ministro. Numa operação "mãos limpas", quem conduz não pode sujar as suas próprias, sob o risco de perder apoio institucional e da opinião pública.
P. Mas, no caso de Lula, essa foi só a denúncia. E a decisão do juiz Sergio Moro?
R. Um passo importante, a aceitação da denúncia, já foi dado, mas o processo pode ser longo e em algum momento passará a ser pressionado também pelo timing das próximas eleições presidenciais, na eventualidade de Lula ser candidato. Agora, é importante considerar que todos os políticos sem foro especial que passaram pelas mãos de Moro foram condenados. Ele confirmará essa tendência ao julgar Lula ou surpreenderá com uma decisão inédita apontando a insuficiência da acusação? De qualquer jeito, contas já estão sendo feitas de lado a lado neste sentido e a pressão sobre Moro será muito grande, também de lado a lado.
"Nos anos 1990, quando o PT era oposição, seu principal aliado de lutas era o Ministério Público. Quando o MP foi ameaçado com a 'lei da mordaça', o PT esteve ao seu lado, resistindo"
P. Se está em jogo a “propinocracia”, como classificou o procurador Deltan Dallagnol, não seria mais justo que a chapa Dilma/Temer fosse julgada pelo TSE?
R. A “propinocracia” é uma construção política feita pelos procuradores, à exemplo de "Tangentopoli" (cidade do suborno) apelido dado pela operação "Mãos Limpas" ao esquema de corrupção na Itália. Embora emblemática, essa construção não pode sustentar decisões judiciais, muito menos de condenação penal individualizada de pessoas. Neste sentido, a denúncia foi extravagante e será difícil sustentá-la em meio ao devido processo legal. Não há uma instância na qual a “propinocracia” possa ser julgada, não sem altas doses de arbitrariedade e até de injustiça.
P. Há um paralelo para isso no Brasil?
R. O caso do mensalão. A denúncia oferecida pelo Procurador Geral estava alicerçada na existência de uma organização criminosa que teria cometido os crimes de corrupção. Joaquim Barbosa, ministro relator do caso no STF, percebeu a fragilidade da denúncia e a sequência de julgamento dos crimes foi invertida, começando pelos menores e mais periféricos – mas sobre os quais havia mais evidências –, até chegar à formação de quadrilha, o mais central, porém mais frágil deles. A votação sobre este último foi bastante dividida entre os ministros e isto permitiu a interposição dos embargos infringentes. Somados à entrada de dois novos juízes no STF, estes embargos levaram à absolvição de todos, eu digo todos, os acusados por crime de quadrilha no mensalão. Ou seja, se em termos políticos a construção da ideia de organização criminosa foi bem sucedida, em termos jurídicos terminamos o julgamento com crimes sem autor, pelo menos não na forma alegada inicialmente, de uma quadrilha organizada.
P. Tanto no mensalão, quanto na Lava Jato, a cobertura da mídia foi bem intensa. Como você vê essa relação?
R. Os escândalos de corrupção, de um modo geral, têm sido marcados por uma interação constante entre os órgãos de justiça e a mídia, que se reforçam mutuamente neste processo. Às vezes essa interação é virtuosa quando, por exemplo, impede ações de retrocesso pela classe política. Mas às vezes é viciosa quando expõe sem justa causa a imagem de pessoas, quando pratica vazamentos ilegais e seletivos, quando a publicidade dos atos deixa de ser aleatória e passa a responder ao timing político ou eleitoral.
"Não podemos passar de um triângulo das bermudas – onde tudo se perdia e reinava a impunidade – para um triângulo de ferro que pune ao arrepio do Estado de Direito"
P. Em sua opinião, existe hoje uma oposição entre Justiça e Política, em que a primeira representa o bem e a segunda o mau?
R. Desde 1988 a Justiça não conheceu qualquer derrota no seu enfrentamento com a Política. Pelo contrário, além de se fortalecer cada vez mais, ela se beneficiou de um sistema político fragmentado em que iniciativas políticas que significariam retrocessos no combate à corrupção ou diminuição dos poderes do Judiciário não prosperaram. Veja, por exemplo, a recém-frustrada tentativa de anistiar a prática do caixa dois nas eleições. Mesmo que tivesse sido aprovada na madrugada da Câmara, seguiria incólume no Senado? E mesmo sendo aprovada no Senado, deixaria de ser questionada e muito provavelmente derrubada no STF, que hoje em dia detém a ultima palavra sobre quase tudo de relevante que se passa no país? Pode ser exagero dizer que vivemos sob o governo dos juízes, mas que seu protagonismo deslocou o centro gravitacional da democracia brasileira é algo que me parece bastante claro. Outro aspecto importante é que um dos combustíveis da Justiça é o moralismo. É curioso como juntos eles podem causar a alternância no poder, por vias eleitorais e não eleitorais como tem ocorrido no Brasil atual, mas não podem tomar o lugar da Política por completo, que tem sua lógica própria e que, pelo menos na Democracia, constitui a linguagem e o espaço mais legítimos da representação e do governo. Seja como for, essa peleja entre Justiça e Política está inscrita no nosso desenho institucional e deve ser encarada como um campeonato permanente e não apenas como uma partida isolada.
P. Como você leu os discursos contra a corrupção do ministro Celso de Melo e a defesa da Lava Jato por parte de Rodrigo Janot durante a posse da Carmem Lucia no dia 12 de setembro?
R. Posses de presidentes do STF representam momentos de afirmação de agendas internas e externas ao tribunal e ao Judiciário. Apesar do estilo, tenho a impressão que Carmem Lucia falou principalmente ao público interno, enquanto Celso de Melo e Janot fizeram frente aos desafios externos do momento. Por isso, acredito que ela gostaria de concentrar seus esforços mais no plano interno que externo, especialmente à frente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais do que do próprio STF. Na presidência do Conselho, a nova presidente do Supremo adiantou que pretende atuar pela modernização do Judiciário, com ênfase na transparência e na agilidade da Justiça. Mas sua liderança à frente do tribunal também será reclamada a todo o momento, já que o STF tem pela frente um dos maiores julgamentos de sua história, envolvendo políticos e escândalos de corrupção no âmbito da Lava Jato e de outras operações.
P. Muito se perguntava sobre a atuação da Lava Jato em um período pós-impeachment. Como enxerga o momento atual da operação?
R. Se minha percepção estiver correta, a de que os agentes que lideram a Lava Jato atuam a partir de um extraordinário poder institucional acumulado nos últimos anos, e que seu objetivo é o de se fortalecerem ainda mais, não há razões para apostar no arrefecimento da operação – exceto as baseadas nos cálculos estratégicos deles próprios. Veja o exemplo do controle sobre as ações da Polícia Federal. Muitos argumentam que caberia ao Ministro da Justiça, para o bem ou para o mal, controlar a PF, mas se esquecem de que a PF responde aos comandos da Justiça e não do poder Executivo, e que suas ações cotidianas são autorizadas por juízes e não pelo Ministro da Justiça.
"Objetivamente, as provas reunidas não são suficientes para atribuir este comando ao ex-presidente e por isto a denúncia abusou da convicção e da tentativa de convencimento retórico"
P. O ex-presidente Lula sempre diz que o processo de fortalecimento do MP e da PF começou em seu Governo. Isso partiu apenas de uma decisão dele ou também havia um fortalecimento natural das instituições?
R. Essas explicações se somam, não são excludentes. As instituições de Justiça apresentam um modo peculiar de conquista de espaço e de fortalecimento institucional no Brasil. O MP começou sua trajetória de afirmação ainda sob o regime militar. Depois dele, a Defensoria Pública e a Polícia Federal, guardadas as suas especificidades, têm seguido caminho semelhante. Um caminho de busca crescente de autonomia, mas também de poder. Cada uma encontra um "encaixe" no sistema de Justiça, a partir do qual expandem suas atribuições, além de garantias e privilégios. E deste lugar se projetam sobre o sistema político mais amplo. Por outro lado, é razoável atribuir ao PT e ao Governo Lula parcela de responsabilidade por estes êxitos. Nos anos 1990, quando o partido era oposição, seu principal aliado de lutas era o Ministério Público. Quando o MP foi ameaçado com a "lei da mordaça", o PT esteve ao seu lado, resistindo.
P. Qual foi a novidade com a vitória do Lula?
R. Já sob seu Governo, a escolha do Procurador Geral da República passou a ser feita a partir de lista tríplice informal, sequer prevista na constituição e elaborada não pela instituição Ministério Público, mas por uma associação de classe dos procuradores federais (a ANPR), com as indicações presidenciais sempre recaindo sobre o mais votado dessa lista. Foi também no período Lula que a Defensoria Publica recebeu apoio importante na tramitação de reformas constitucionais que reforçaram sua condição e a Polícia Federal recebeu o maior apoio – em termos materiais e de recursos humanos – de sua história. A poucos dias do segundo turno das eleições presidenciais de 2014, Dilma Rousseff editou medida provisória estabelecendo que o diretor geral da PF seria escolhido dentre delegados da classe especial, uma reivindicação antiga da carreira. O choque entre os governantes petistas e a força-tarefa formada por MP e PF na Lava-Jato é de fato um paradoxo das consequências, que ainda está por ser explicado.
P. O juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato foram muito festejados como uma nova geração capaz de enfrentar a corrupção na política. Qual avaliação faz?
R. Embora, como eu disse, a trajetória de afirmação institucional do Ministério Público e da Polícia Federal no combate à corrupção venha de vários anos, a Lava Jato representa mesmo uma grande novidade por tudo o que produziu até agora. Mas ela não teria chegado aonde chegou se a figura do juiz – antes um desconfiado fiscal das ações do MPF e da PF – não tivesse se convertido ele mesmo num agente do aperfeiçoamento do processo criminal com vistas a resultados. Neste cenário, no qual os três atores agem voltados ao mesmo objetivo, os riscos de abuso aumentam e críticas têm sido feitas a respeito.
"Pode ser exagero dizer que vivemos sob o governo dos juízes, mas que seu protagonismo deslocou o centro gravitacional da democracia brasileira é algo que me parece bastante claro"
P. Como assim o juiz era "um desconfiado das ações" do MPF e PF?
R. Antes, o juiz se colocava na condição de quem devia ser convencido das provas produzidas pela polícia e da convicção do órgão acusador. Desconfiava destes e assumia uma posição mais "garantista", beneficiando mais do que prejudicando o réu. Hoje, o juiz que emerge da Lava Jato é aquele que se coloca ao lado dos órgãos de investigação e de acusação e se empenha pelos seus acertos mais do que aponta seus erros.
P. Fala-se muito em seletividade e partidarização da Lava Jato, você concorda?
R. Mais do que seletividade e partidarização, o que está ocorrendo é mais profundo: três instituições desenhadas para cobrir partes e não o todo do processo criminal, e que neste arranjo deveriam se fiscalizar mutuamente, invertem a equação e passam a atuar em consórcio, sob o argumento de reduzir a impunidade. Este caminho é perigoso. Não podemos passar de um triângulo das bermudas – onde tudo se perdia e reinava a impunidade – para um triângulo de ferro que venha a punir ao arrepio do Estado de Direito.
"Se Cunha concluir que a melhor alternativa é elevar mais uma vez a aposta, pode negociar uma das delações mais estridentes da Lava Jato até aqui"
P. Outro assunto que dominou as últimas semanas foi a cassação de Eduardo Cunha (PMDB-RJ). O que esperar dele daqui para frente?
R. Eduardo Cunha é um jogador de apostas altas. Soube aproveitar a crise da coalizão governista para se eleger presidente da Câmara. Ameaçado de cassação, cacifou-se por meio da prerrogativa de abrir ou não o processo de impeachment de Dilma. Quando o PT lhe retirou o apoio na Comissão de Ética, não teve dúvida em abrir o processo contra a presidente, mergulhando o país numa aventura institucional. Na sessão de cassação de seu mandato, deu as costas a quem ocupava a tribuna e foi bastante arrogante ao dizer aos seus pares que eles seriam os próximos. Tomou 450 votos na cabeça. Seu desafio agora é escapar de uma condenação penal, depois que uma parte dos processos nos quais é réu ou investigado migrou para as instâncias inferiores. Aliás, agentes podem bater à sua porta a qualquer momento. Se concluir que a melhor alternativa é elevar mais uma vez a aposta, pode negociar uma das delações mais estridentes da Lava Jato até aqui. Em sua primeira entrevista, poucos dias após sua cassação, já disparou contra integrantes do alto escalão do governo Temer, exercitando suas fichas.
P. Cunha se vangloriou, por muito tempo, de ter uma bancada própria. Com quem ficará essa bancada agora?
R. Cunha se elegeu presidente da Câmara na esteira da crise do sistema partidário em geral e da coalizão governista em particular. Enquanto presidiu a Câmara, governou a casa com e para o chamado baixo clero, que na verdade é um conjunto de parlamentares que prefere atuar fora do jugo das lideranças partidárias. Cunha lhes deu voz e uma pauta de votações eloquentes ao longo de 2015. Com a posse de Rodrigo Maia e a cassação final de Cunha, essa “bancada” deve se dissolver e voltar ao comando dos respectivos partidos. Essa é a regra do parlamento e o governo Temer se esmera em retomá-la. Casos como os de Eduardo Cunha e Severino Cavalcanti foram exceções à regra do governo partidário na Câmara, dentre as quase vinte presidências exercidas ali desde 1988.

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