quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Banqueiro, TFP, ultraconservadores e pedófilos contra o Papa Francisco



Um banqueiro é o articulador da ofensiva ultraconservadora contra o Papa, num grupo de 79 signatários dentre os quais não constam cardeais, bispos, teólogos ou figuras de maior expressão no catolicismo. Há de tudo: membros da TFP, sedevaticanistas (que consideram que a Igreja não tem Papa desde Pio XII) e um inimigo feroz das investigações contra os milhares de casos de abuso de menores na Austrália. O tema público do embate é a mudança da posição da Igreja quanto ao direito à comunhão dos casais divorciados em segunda união, a manutenção em pleno século 21 da guerra contra o Modernismo e o ataque a Lutero e ao ecumenismo. Mas o pano de fundo é o combate frontal à opção de Francisco pelos pobres e o desejo de ver revogado o Concílio Vaticano II.


O banqueiro Ettore Gotti Tedeschi, líder da oposição ao Papa

Banqueiro é o líder do manifesto contra o Papa


No último domingo (24) foi divulgada a “carta de correção formal” que conservadores católicos de diversos países assinaram para criticar o Papa e sua exortação apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor).
O banqueiro italiano Ettore Gotti Tedeschi é o líder do manifesto dos conservadores católicos que acusam o Papa Francisco de cometer “heresias”. O fato de um banqueiro ser o líder de um ataque contra o chefe da Igreja dá a dimensão precisa do evento, ainda mais que o alvo dos acusadores é um Papa que escolheu estar ao lado dos pobres de todo o planeta. De um lado, o banqueiro; de outro o Papa dos pobres.
O tema público do embate é a mudança da posição da Igreja quanto ao direito à comunhão dos casais divorciados em segunda união, a manutenção em pleno século 21 da guerra contra o Modernismo e o ataque a Lutero e ao ecumenismo -como se poderá observar mais abaixo.
Mas o fundo da questão remete a uma frase de Jorge Semprún que frei Betto costuma repisar: “a cabeça pensa onde os pés pisam”. E, de fato, os solos em que pisam Tedeschi e Bergoglio são muito diferentes. A posição de cada um deles sobre o capitalismo dá a dimensão de uma das facetas que separa os conservadores de Francisco –a outra é o controle sobre a vida afetiva e sexual das pessoas.
O Papa é um severo crítico do capitalismo, que qualificou como uma “ditadura sutil” no II Encontro dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), em julho de 2015. Para Francisco, o capitalismo “é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos…” (aqui). No ano seguinte, na terceira edição da reunião com os movimentos populares, o Papa falou especificamente sobre os bancos: “O que acontece no mundo de hoje que, quando ocorre a bancarrota de um banco: imediatamente aparecem somas escandalosas para salvá-lo. Mas quando acontece esta bancarrota da humanidade não existe sequer uma milésima parte para salvar estes irmãos que sofrem tanto?”.
O banqueiro Gotti tem uma visão do capitalismo diametralmente oposta à do Papa. Não é à toa: em 1987, ao fundar na Itália o banco Akros, arrebanhou nada menos que 275 milhões de euros de ricos italianos e de outros países da Europa e EUA. Alguns anos depois, ele se associou ao multimilionário Emilio Botín para fundar a filial italiana do Banco Santander, que presidiu por alguns anos.
Como se vê, o líder e porta-voz dos conservadores rebelados não tem o que reclamar do capitalismo sobre o qual escreveu uma verdadeira elegia num artigo para a Fundação Liberal da Itália: “A economia é uma técnica avançada e sofisticada, mas neutra, que, para ser vantajosa para o homem, deve ser considerada importante, central. […] O capitalismo, sem dúvida, fez muito pelo homem e pode fazer muito mais”.
Em 2005, foi investigado por irregularidades num rumoroso caso envolvendo a Parmalat, que acabou prescrevendo sem julgamento em 2007. O processo não impediu que em 2008 ele fosse nomeado gestor das finanças da Cidade do Vaticano. De quem partiu o convite? Do então todo poderoso cardeal Tarcísio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, homem forte do papado de Ratzinger e hoje envolvido num escândalo de grandes proporções: o desvio de dinheiro do hospital pediátrico Bambino Gesù, do Vaticano, para uma reforma de 500 mil euros na sua megacobertura de 600 metros quadrados com 100 metros quadrados de terraço.  Em 2009, Gotti foi nomeado por Bento XVI presidente do IOR, o Banco do Vaticano, para ser acusado um ano depois pela Procuradoria de Roma de violações às normas contra a lavagem de dinheiro nas instituições financeiras –em 2012, foi afastado do Banco.
Em entrevista ao site conservador espanhol InfoVaticana, Gotti Tedeschi pontificou, com a soberba e a ironia típicas de um banqueiro: “Imagino que o papa vai agradecer os signatários do documento e vai querer se reunir um por um para reconhecer os erros cometidos no seu magistério”.  Uma nota: nenhuma mídia católica conservadora qualificou-o como banqueiro em todas as reportagens ele foi apresentado pela denominação de economista, que devem ter considerado menos antipática ou denunciadora.
TFP, sedevaticanistas e ao menos um defensor dos pedófilos – Na verdade, dizer que Gotti é líder de um movimento conservador é, talvez, uma matização forçada. Ao se examinar os nomes dos signatários da carta contra o Papa, o que se vê é uma reunião de ultraconservadores ou, para citar Francisco, verdadeiros restauracionistas que de maneira aberta ou vela opõem-se ao Vaticano II e advogam a restauração do Concílio de Trento (1545-1563), que marcou o rompimento da Igreja com a modernidade nascente e significou uma declaração de guerra à Reforma Protestante.
Outros dos líderes do grupo é Bernard Fellay, superior geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e herdeiro de Marcel Lefebvre, o bispo cismático arquiconservador que se rebelou contra o Vaticano II, acusando-se de “liberal e protestante” e que escreveu numa carta para João Paulo II em 1985 que os judeus, comunistas e maçons seriam “inimigos declarados da Igreja”. Nem o conservador Wojtyla aguentou o grupo de Lefebvre, que foi excomungado por ele –pena suspensa em 2009 por Bento XVI.
O grupo de signatários da carta é espantoso –ela tem recebido adesões e, na terça-feira (26) eram 79. Nenhum nome de expressão na Igreja ou no terreno da formulação teológica contemporânea.  Nenhum cardeal ou bispo, exceto pelo bispo emérito da diocese de Corpus Christi, no Texas, dom Rene Henry Gracida, de 94 anos. Em entrevista ao National Catholic Reporter, Richard Gaillardetz, teólogo do Boston College e ex-presidente da Associação Católica Teológica dos EUA afirmou que os signatários “são figuras marginais” na Igreja e “devem ser reconhecidos como vozes extremistas e automarginalizadas”.
Veja-se o caso do Brasil. Dois brasileiros assinam o documento, monsenhor José Luiz Villac e Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, ambos sem expressão na Igreja brasileira e membros da infame TFP (Tradição, Família e Propriedade), organização católica de extrema-direita que apoiou a ditadura militar e as prisões, torturas e mortes de opositores ao regime.
Outro dos signatários é o padre francês Claude Barthe, que durante anos um estridente membro dos grupos dos sedevaticanistas –ultraconservadores para quem que a Santa Sé está vaga desde a morte do Papa Pio XII, em 1958. Para eles, João XXII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco são usurpadores do “trono de Pedro”. Não pense que isso é piada, é sério, há mesmo grupos que pensam assim, e o padre Barthe foi membro desses grupos durante anos.
Mas não é só.
O padre Glen Tattersall, da diocese de Melbourne (Austrália), que aparece com destaque na lista dos signatários, tem se notabilizado em seu país nos últimos meses por seus ataques violentos à Comissão Real de investigação dos casos de pedofilia na Igreja australiana. Os números são aterradores e foram qualificados de “surpreendentes, trágicos, indefensáveis” por Francis Sullivan, diretor executivo do Conselho de Verdade, Justiça e Cura instituído pela própria conferência episcopal da Austrália. Entre 1980 e 2015, quase 4.500 pessoas denunciaram abusos sexuais contra menores cometidos pelos 1.880 membros da Igreja, o que significa 7% do clero do período, percentual que chegou para mais de 15%, em algumas dioceses. No entanto, segundo o padre Tatersall, é tudo é culpa da “moralidade frouxa dos liberais e homossexuais” (aqui). Mais ainda. Para ele, haveria má vontade com os pedófilos: “Se há um relacionamento entre um padre e um menino no final da adolescência, quer dizer que é abuso sexual quando ele tem 16 ou 17 e então é um relacionamento maravilhoso quando você tem 19 anos? Quero dizer, é ridículo”.
O documento – Este é o grupo que ataca o Papa. Clique aqui Se você quiser conhecer a íntegra do documento, intitulado em latim de Correctio filialis de haeresibus propagatis (Correção filial à propagação de heresias).
O título já é um prato cheio para interpretações de fundo psicanalítico. Os conservadores consideram o Papa como um verdadeiro “pai”, a quem os filhos deveriam obediência cega. Só que não é bem assim. Obedece-se cegamente o Papa (pai) quando ele faz o que os filhos desejam. Se o pai faz diferente da expectativa dos filhos, é heresia. Mas, curiosamente, a operação pretendida pelos signatários da carta não é, como o padrão freudiano, derrubar (matar) o pai para assumir seu lugar. Não. O objetivo é liquidar este pai benevolente (Francisco) para tentar impor um pai severo, autoritário (como uma reencarnação de Pio X ou Pio XII). Os conservadores passariam a mandar novamente na Igreja, por meio deste pai implacável.
É singular que no texto os signatários afirmem aderir “sinceramente à doutrina da infalibilidade papal tal como ela foi definida pelo Concílio Vaticano I”… contanto que o Papa concorde com eles!
O tom do documento, em que pese o título de “correção filial”, é de franca ameaça: os ensinamentos de Francisco levariam os fiéis “a colocar em dúvida a validade da renúncia do Papa emérito Bento XVI ao papado”. Ou seja, sinalizam que podem reinstalar Ratzinger na cadeira papal.
Os autores do ataque ao Papa consideram a exortação apostólica Amoris Laetitia um “escândalo à Igreja e ao mundo, em matéria de fé e moral” e asseguram que o direito à comunhão de casais católicos divorciados em segunda união seria uma afronta a “verdades divinamente reveladas”. São páginas seguidas de citações entremeadas pela palavra heresia.
Pode parecer inacreditável, mas em pleno século 21 os ultras usaram o documento para atacar a Modernidade, mais de 500 anos depois! O documento explicita o desejo de hegemonia do catolicismo, como se a reinaugurar a cristandade, afirmando que tudo o que a verdade integral repousa sobre a Igreja Católica e que a humanidade deve dobrar-se a essa constatação: “A razão humana pode por si mesma deduzir a verdade da fé católica baseada na evidência publicamente disponível da origem divina da Igreja Católica”. Apesar de uma pequena concessão à possibilidade de outras compreensões sobre Deus, o texto recende a fogueiras da Santa Inquisição: “A fé católica não esgota toda a verdade sobre Deus, porque somente o intelecto divino pode compreender plenamente o Ser divino. No entanto, todas as verdades da fé católica são inteira e completamente verdadeiras, porquanto as características da realidade que tais verdades descrevem são exatamente como elas as apresentam”.
O documento termina com quase cinco páginas de ataque cerrado a Martinho Lutero e ao diálogo e aproximação que o Papa tem promovido com as igrejas protestantes. “Em segundo lugar, sentimo-nos obrigados em consciência a nos referir às simpatias sem precedentes de Sua Santidade por Martinho Lutero, e à afinidade entre as ideias de Lutero sobre a lei, a justificação e o casamento e aquelas ensinadas ou favorecidas por Sua Santidade em Amoris Laetitia e em outros lugares.” Aparentemente, os signatários estão alinhados com o bispo cismático ultraconservador Marcel Lefebvre, que considerava o Vaticano II como algo próximo de uma obra diabólica, liberal e de fundo protestante.
Os signatários atacam Francisco, mas seu objetivo final é encerrar a retomada da opção da Igreja pelos pobres e frágeis e revogar o Concílio Vaticano II.
[Mauro Lopes]

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