domingo, 7 de janeiro de 2018

Do Le Monde Diplomatique, um artigo sobre a velha "nova" Direita brasileira


"(...)  essa direita priorizou a internet e as redes sociais como campo privilegiado de atuação. Um campo funcional, pois, além de permitir um alcance maior de suas ideias, exige pouca necessidade de debates inconvenientes. Deixam seus apoiadores debater entre si em caixas de diálogo e exibir seus discursos de ódio a toda notícia, “meme” ou vídeo postado nas páginas ou canais do YouTube geridos por iniciativas como o Movimento Brasil Livre (MBL), Revoltados On Line, Vem Pra Rua, além de youtubers que têm ganho destaque entre os jovens como verdadeiros ídolos, rechaçando tudo que for ou parecer de esquerda ou progressista."


Artigo de Pedro Carvalho Oliveira



Desde 2013, movimentos da direita brasileira ganham espaço com sua retórica antiesquerdista e conservadora. Na internet, encontram terreno fértil para discursar muito e discutir pouco. Nessa prática, revelam as rupturas e as permanências da direita no país

Em “O retorno do fato”, Pierre Nora diz que um dos maiores desafios em analisar o presente estava na forma como os meios de comunicação em massa tratavam os fatos e os acontecimentos. O historiador francês se referia ao pós-Segunda Guerra Mundial, quando a compreensão desse conflito e de seus episódios brutais era urgente. Identificava como problemática a apresentação imediatista dos fatos noticiados por jornais e emissoras de rádio e os interesses dos editores, repórteres e jornalistas entrelinhados nas notícias, pois davam “ao discurso, à declaração, à conferência de imprensa a solene eficácia do gesto irreversível”.1 Seria responsabilidade dos historiadores, cientistas sociais, políticos, entre outros, duelar com exames superficiais e tendenciosos, buscando não só a “reversão do gesto”, mas também afundar na epiderme dos fatos. Nora não imaginava como esse problema se tornaria ainda maior com a internet e as redes sociais.

O investigador que se debruçar sobre as etapas da crise política brasileira desde 2013, a partir dos protestos de junho, vai se deparar com uma exorbitante quantidade de informações divulgadas na imprensa e nas redes sociais. Nos tempos dos smartphones e do 3G, qualquer um pode se converter em repórter amador a noticiar acontecimentos convenientemente. Esse investigador vai encontrar também, entre embates partidários rasos, disputas ideológicas intensas entre a esquerda e a direita. Nesse terreno, inevitavelmente trombará com movimentos e organizações de direita oscilando entre o liberalismo e o conservadorismo utilitário, para não falar do extremismo.

Após o arrefecimento das manifestações de rua, essa direita priorizou a internet e as redes sociais como campo privilegiado de atuação. Um campo funcional, pois, além de permitir um alcance maior de suas ideias, exige pouca necessidade de debates inconvenientes. Deixam seus apoiadores debater entre si em caixas de diálogo e exibir seus discursos de ódio a toda notícia, “meme” ou vídeo postado nas páginas ou canais do YouTube geridos por iniciativas como o Movimento Brasil Livre (MBL), Revoltados On Line, Vem Pra Rua, além de youtubers que têm ganho destaque entre os jovens como verdadeiros ídolos, rechaçando tudo que for ou parecer de esquerda ou progressista.

Algumas notícias compartilhadas por eles, como no caso do MBL, são produzidas por seus próprios idealizadores em seus jornais particulares, nos quais, com frequência, fazem uso de análises informativas unilaterais – próximas às que criticam nos meios midiáticos convencionais – sobre fatos orbitantes à política brasileira. Essas notícias acabam convencendo muitos de que trazem a mais inquestionável verdade, intocada da manipulação e da doutrinação ideológica universitária, presumidamente dominada por esquerdistas detentores de um conhecimento elitista. Por isso, suas notícias estão impregnadas pela pretensão de “história nunca contada” em defesa do povo. Vencer uma “guerra cultural” parece imprescindível para a chamada “nova direita”.

Copas modernizadas, raízes conservadoras

Vivemos um momento de profundo descrédito e perseguição aos profissionais da educação dedicados a disciplinas críticas como História, Sociologia, Geografia, entre outras. Ex-atores, músicos e youtubers, cujo conhecimento sobre as formas de operar tais disciplinas é extremamente tênue, têm sido aplaudidos por suas opiniões inflamadas sobre diversas questões sociais, enquanto professores são acusados de doutrinadores ao tentarem discorrer sobre elas. Projetos como o Escola sem Partido, em via de banir o debate plural e o pensamento crítico das salas de aula para favorecer a manutenção da ordem social vigente, se laqueiam como isentos, apolíticos e anti-ideológicos, quando na verdade defendem vieses políticos e ideologias bem definidos. Com isso, a direita conservadora tem bloqueado divergências e ampliado seus regimes de verdade, perseguindo um tipo de conhecimento dito elitista para substituí-lo por um novo, coerente com sua lógica.

As lideranças desses movimentos emergem do apoio que a imprensa e grandes corporações nacionais e internacionais deram às movimentações que conclamaram a população a se engajar em defesa do impeachment da presidenta Dilma Rousseff; um esforço para expor o PT como uma quadrilha que havia se assenhorado do país como se a corrupção endêmica reinante no sistema político, nas instituições públicas e privadas, perpassando toda a sociedade, fosse uma obra exclusiva do partido. Em paralelo, esses mesmos veículos, regra geral, destacavam a atuação do PT em casos de corrupção que vinham à baila e ao mesmo tempo omitiam o predomínio de membros de outros partidos em episódios semelhantes. Qualquer um que se posicionasse criticamente ao processo de retirada da presidenta do poder, compreendendo nisso a existência de mecanismos antidemocráticos, acabou sendo acusado de defender corruptos e políticas sujas.

Entre esses movimentos está o MBL, talvez o maior movimento civil da direita emergente de 2013. Suas propostas parecem desejar com maior veemência a criminalização e marginalização da esquerda em vez de propor e efetivar mudanças políticas. Isso pode ser visto nas dezenas de notícias semanais publicadas pelo noticiário digital Jornal Livre, cujas matérias são assinadas por muitos membros do movimento. Além disso, qualquer esboço de projeto ou pensamento progressista é execrado em sua página no Facebook, deleitando seus seguidores.

O MBL surgiu em 2014 como movimento apartidário, liberal e enredado na busca por tornar a direita cool, “descolada”. Sua linguagem jovial causa a impressão de novidade, pois a visão de mundo de seus líderes é exposta por meio de “memes”, postagens bem-humoradas, expondo aos cidadãos os conchavos revoltantes dos políticos. O “orgulho direitista” de seus adeptos se contrasta e se explica na história do próprio país, que durante 21 anos esteve submetido a um regime militar após o qual o termo “direita” ganhou conotações pejorativas.2 Em reação a isso, o movimento parece tentar dar novo fôlego à direita, apostando tudo em oferecer principalmente aos jovens uma noção de subversão antes monopolizada por seus antagonistas.

A rebeldia com a qual o MBL se reveste é guiada por uma retórica visceral, emocionada, incidindo diretamente na tradição brasileira de pensar a política como gêmea siamesa da corrupção que busca sanar. No contexto em que surgiu, ajudou a personificar essa relação intrínseca na esquerda, como se o PT fosse seu maior representante, resultado de um conhecimento pouco profundo sobre esse espectro político. Essa retórica acaba por esconder suas alianças políticas, inclusive com personagens acusados de corrupção, encobre seus interesses partidários e esfumaça sua penetração no jogo eleitoral. Porém, diante das evidências de seu nada sólido antipartidarismo, as posições do MBL têm mudado consideravelmente.

Vislumbrando a arena eleitoral, o MBL lançou candidatos e apoia outros. Tem, pouco a pouco, abandonado também sua postura liberal e encontrado no conservadorismo a catapulta para se lançar politicamente. Isso tem ocorrido em consequência das críticas de seus seguidores à sua nova dinâmica, pois esta vem contrariando sua proposta original. Somam-se a isso as denúncias feitas contra seus agentes envolvidos na manutenção de Michel Temer no poder. Buscando renovar a popularidade, apostaram no tradicional imaginário conservador brasileiro e apelaram à defesa da moral e dos costumes, em projetos como o Escola sem Partido e no bombardeio de expressões culturais específicas e manifestações do pensamento crítico.

Essa dinâmica tem sido seguida por outros movimentos que despontaram desde 2013: posturas de direita sob o véu do antipartidarismo, críticas ferrenhas às esquerdas e revanchismo ressentido em relação a elas. Embora suas nuances se transformem com o passar do tempo e o desenrolar da crise política, a internet continua sendo o campo no qual suas ideias se propagam com intensidade. Mas o MBL não está sozinho.

Arbustos densos, espinhos longos

O movimento Vem Pra Rua se tornou grande a partir de 2013. Seu nome foi retirado de um dos gritos emblemáticos das passeatas de junho, quando pautas se mesclavam e engrossavam um coro pouco coeso. Menos forte do que o MBL, não deixa de ser significativo para pensarmos o envolvimento da sociedade civil com a crise. Desejando manter a luta contra a corrupção iniciada nas ruas – orientada assim pela manipulação da grande mídia, quando na verdade essa luta teve origem em protestos populares pelo acesso ao transporte público –, a organização se diz suprapartidária e defensora dos direitos dos brasileiros.

Esse movimento diz que seu partido é o Brasil, rejeitando a política formal e bandeiras institucionais. Não se define como de direita, mas ataca as esquerdas com ímpeto. Critica todos os políticos, mesmo os não alinhados à esquerda, mas frequentemente o faz por meio de discursos moralistas e amplamente passionais. Sua cruzada anticorrupção atira todos os políticos num mesmo bojo, algo perigoso. Nessa empreitada, normatiza uma luta centrada na indignação do “cidadão de bem”, lesado por todos os políticos e sua imoralidade. Defende também o Poder Judiciário como o mais apto, junto ao povo, a gerir o país e afastá-lo da corrupção. Com isso, acaba sendo conivente com a atuação de seus mecanismos mais ostensivos como justificativa para “resolver a crise”. Assim, o Judiciário aparece como isento de qualquer interesse político, imparcial perante os dirigentes do país e seus partidos, algo passível de questionamentos.

De forma menos sofisticada, o Revoltados On Line segue uma linha de ação parecida. Surgiu como um blog e depois virou comunidade no Facebook, em que seus operadores abordam a corrupção política por meio de “memes” e postagens incendiárias sobre escândalos, a crise política e a criminalização dos envolvidos nela. Outros movimentos menos reconhecidos, mas relevantes, se esforçam em mostrar a intervenção militar como única salvação para o Brasil. O movimento Cruzada pela Liberdade se dedica a disputar a memória do golpe militar como única saída para o comunismo após a vitória das Forças Armadas em 1964 e dar à ditadura uma imagem vitimista, marginalizada pela esquerda, fruto da vitória do “marxismo cultural”. Para eles, apenas um regime como aquele pode dar ao Brasil rumos menos sombrios. O autoritarismo e o confronto violento contra as forças opositoras são aplaudidos pela maioria de seus seguidores.

Limpando folhas secas

Nos últimos anos, observaram-se avanços significativos de políticas e movimentos civis progressistas, ainda que eles continuem a encontrar barreiras sólidas na sociedade brasileira. Com esses avanços foi possível debater o machismo, o papel da mulher na sociedade, a violência contra os LGBTQ, a repressão policial, o racismo, entre tantas outras coisas capazes de pôr em xeque o funcionamento de um sistema no qual a equidade de direitos é tratada como privilégio. A chamada “nova direita” reage a isso protegendo o direito de ser contra essas políticas. Reage também à ideia de que o Estado brasileiro, tomado por forças esquerdistas, bolivarianas ou o que quer que fossem, havia supostamente financiado, com o dinheiro público, políticas para suprir o “vitimismo” das classes subalternas, disseminar uma cultura imoral e destruir os costumes tradicionais do brasileiro. Estrategicamente, essa direita, que de nova tem pouquíssimo, usa o conservadorismo para alçar voos políticos.

Desde meados do século XX, forças conservadoras reagiam negativamente à equidade, pois já era “uma reação instintiva, uma coisa epidérmica, uma náusea, um desgosto ver aquelas gentes simplórias, subalternas, ascender a posições de influência”.4 As permanências são visíveis dentro dessa visão de mundo. Os discursos sobre a necessidade de uma “mão firme” para eliminar a violência e a corrupção, já defendidos por Oliveira Viana desde os anos 1920, também continuam. Logo, quem é contra a mão firme odeia o Brasil. Quem é progressista é imoral. Quem é esquerdista é marginal. Quem defende os direitos humanos defende bandidos. Essa é a imagem reproduzida em redes sociais sobre os “inimigos da nação” e convertida em alvo de ódio. Sua reprodução se sustenta na substituição do conhecimento empírico pelo discurso energizante emocional, pelas notícias de procedência questionável, pela dinâmica da briga entre torcidas, pela perseguição. Em que momento da história isso já foi visto antes?

*Pedro Carvalho Oliveira é mestre e doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá, onde integra o Laboratório de Estudos do Tempo Presente (LabTempo-UEM).

1 Pierre Nora, “O retorno do fato”. In: Jacques Le Goff e Pierre Nora, História: novos problemas, Livraria José Alves, Rio de Janeiro, 1976, p.182.
2 André Kaysel, “Regressando ao regresso: elementos para uma genealogia das direitas brasileiras”. In: Sebastião Velasco e Cruz et al. (orgs.), Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro, Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2015, p.49-73.
3 Gabriel de Barcelos, “O conservadorismo moral como reinvenção da marca MBL”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2017. (Ler mais na pág. 4.)
4 Daniel Aarão Reis Filho, “O colapso do colapso do populismo: acerca de uma herança maldita”. In: Jorge Ferreira (org.), O populismo e sua história: debate e crítica, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001, p.344.

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