segunda-feira, 23 de abril de 2018

Mestre em Ciências Criminais e Doutor em Direito, Professor Jader Marques escreve sobre a violência e a arbitrariedade judicial. Do site Empório do Direito


"A impotência diante do abuso coloca-nos de frente com a nossa incapacidade de reação, de defesa, de contraposição ao ato violento. Quando estamos impotentes, diante do excesso absurdo de força que está do outro lado, sentimos toda a cruel realidade que advém da fraqueza vulnerável de quem deveria ter força, de quem deveria ser capaz de fazer algo para acabar com aquela situação de tirania."

Violência e arbitrariedade judicial


Do Empório do Direito:

VIOLÊNCIA E ARBITRARIEDADE JUDICIAL


Texto de Jader Marques

A primeira vez que fui roubado com arma, os sujeitos levaram meu carro. Eles não chegaram a apontar a arma diretamente para mim, mas o ato em si, os gritos, o revólver, a fuga com o carro, toda a cena teve uma carga imensa de violência, de prepotência, de constrangimento e revela o quanto somos impotentes diante de certas ações humanas.


A impotência diante do abuso coloca-nos de frente com a nossa incapacidade de reação, de defesa, de contraposição ao ato violento. Quando estamos impotentes, diante do excesso absurdo de força que está do outro lado, sentimos toda a cruel realidade que advém da fraqueza vulnerável de quem deveria ter força, de quem deveria ser capaz de fazer algo para acabar com aquela situação de tirania.


No momento em que o assaltante aponta uma arma e dá a ordem ilegal e ilegítima, o fato de sermos obrigados a obedecer aquele mandamento escuso é que nos causa a insuportável angústia da passividade, no exato instante em que gostaríamos de poder fazer algo. Quem é roubado sabe que o sentimento de raiva, angústia, ódio, permanece por vários dias na memória, como uma cena de filme em looping, repetindo os quadros violentos que nos reduziram à incapacidade de resistência, gerando uma espécie de refluxo que não deixa o gosto amargo da impotência sair da garganta.


Outras situações do cotidiano, permeadas pela violência, de um lado, e pela impossibilidade de resistência, do outro, também servem de paradigma para o tema central deste texto: a arbitrariedade judicial.


Quando escrevo nesse espaço, assumo o meu lugar de fala: a advocacia criminal.


Escrevo com uma ingênua esperança de que minhas angústias sirvam para fomentar, nos mais jovens, a rebeldia capaz de gerar a mudança indispensável no modo como somos defensores no processo penal brasileiro da atualidade. Da mesma forma, ainda ingenuamente, escrevo por acreditar que os mais experientes e os profissionais das outras áreas do Direito serão capazes de rever suas conservas, abrindo suas cabeças para o novo, para uma nova forma de fazer a persecução criminal.


Desde o lugar da advocacia, uma decisão arbitrária, sem fundamentação ou que contraria a expressa disposição legal, é uma manifestação de abuso judicial que coloca o profissional da advocacia na condição do assaltado.


Quando um magistrado decreta a prisão de um acusado que, por lei, tem o direito de livrar-se solto, o criminalista é tomado pela mesma sensação de impotência, guardadas as devidas proporções, daquele que é subtraído com uso de arma de fogo. A violência judicial recai sobre o corpo do acusado, mas o criminalista fica marcado em sua alma. Quantas vezes, calados, sofremos a angústia da prisão de nossos clientes, sentimento que fica ainda mais agudo e quase insustentável, quando o juiz demonstra regozijo com o cumprimento da ordem tirana.


Mas os criminalistas são tomados por uma raiva quase irracional, nas situações em que o juiz, abdicando do juramento que fez ao ingressar na magistratura, apenas segue, de forma servil, às manifestações da acusação, ainda que totalmente destituídas de razoabilidade. Como dói no criminalista ver o seu esforço intelectual, traduzido em folhas de argumentação lógica, boa dogmática e precedentes selecionados, reduzido à pó. A decisão foi mantida pelos próprios fundamentos e pelos argumentos trazidos pela acusação.


É como ser roubado. Em alguns casos, é pior do que ser roubado.


Para muitas pessoas, esse texto será tomado como exagero, como choro de advogado, como reclamação de quem luta por impunidade. Essas pessoas, geralmente, são aquelas que acham que os advogados abusam do direito de defesa, notadamente quando utilizam os recursos previstos em lei para fazerem cessar os tantos abusos e para corrigir os tantos equívocos possíveis no ato humano de decidir. Elas pedirão, um dia, a um diligente advogado, que faça o que estiver ao seu alcance para que o devido processo seja respeitado, para que o inocente não seja condenado e, muito menos, que ele seja preso, sem que se lhe dê, antes, a oportunidade de produzir provas da sua inocência.


A crítica ao exercício da ampla defesa e do contraditório, por meio do habeas corpus e dos recursos existentes, esconde a face exacerbadamente punitiva do estado penal brasileiro. É que o esvaziamento do remédio heroico e o bloqueio ao trânsito dos recursos têm provocado a eternização do abuso. Com a redução das possibilidades de defesa, diminui também o controle sobre a arbitrariedade judicial.


A demora no julgamento dos processos tem servido como álibi para a quebra sistemática das garantias constitucionais, autorizando prisão em segunda instância, excesso de cautelares, relativização das nulidades, etc.


Sem controle, todo o poder tende ao abuso. Lei serve, pois, para controlar o poder. Lei é limite. Lei é limite contra o mais forte em favor do mais fraco.


Embora a população que está sendo “assaltada” em suas garantias individuais seja a mesma que aplaude o abuso, os criminalistas continuarão a defender o direito de defesa e a Constituição Federal. Não há como separar um criminalista da sua luta pelo devido processo legal.


Os juízes delinquentes (Elias Mattar Assad), que descumprem dolosamente as regras processuais, desfrutam da “impunidade” dos seus atos arbitrários, não passarão.


Os juízes que gozam com a dor do outro (Amilton Bueno de Carvalho), não passarão.


Os juízes preguiçosos ou subservientes ao Ministério Público, não passarão.


No interior de um processo regular, incumbe à defesa trabalhar apenas na demonstração das provas da tese jurídica, sem qualquer outra forma de impugnação capaz de “dificultar” o andamento do processo. Acontece que muitos juízes indeferem pedidos legítimos da defesa, pelo argumento da celeridade processual, mas acabam causando a anulação do processo e a necessidade de repetição dos atos, com enorme perda de energia e tempo. O juiz consciente do papel do defensor deixa para o profissional o julgamento do que é importante para a prova da inocência, o que imprime maior velocidade ao processo e simplifica o trato das teses, uma vez que o debate fica imunizado das discussões quanto à forma.


Quer silenciar um defensor: aplique a lei.


O que cala as reclamações de um criminalista é o devido processo legal, com todos os meios de defesa cabíveis e um contraditório efetivo, real, igual para as duas partes.


Com Ruy Barbosa, vale repetir: "Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde."


Mais não digo.



Imagem Ilustrativa do Post: gun // Foto de: Gideon Tsang // Sem alterações


Disponível em: https://www.flickr.com/photos/gideon/4310717


Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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