sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Do laço social ao "inconsciente coxinha": psicanálise, ódio e democracia, por Gustavo Henrique Dionísio, psicanalista


"Outro exemplo  forte [de ato falho revelador do que de fato se quer] pôde ser observado por muitos brasileiros devido ao seu alcance: “o Brasil voltou, 20 anos em 2”, dizia o slogan de governo mais atrapalhado na história recente do país. “Implorando para ser interpretado como ato falho”, é como se a assessoria da presidência golpista tivesse dado uma ótima chance para que todos pudessem entender, de uma vez por todas, a concepção freudiana de inconsciente: neste caso, a leitura é ainda mais simples que a anterior: basta retirar a vírgula e o tiro no pé está dado – vale lembrar que o inconsciente sempre revela senão a verdade"

do Psicanalistas pela Democracia
por Gustavo Henrique Dionisio

Partindo de uma espécie de chiste involuntário, já que diante de certas condições absurdas resta pouco senão fazer piada − como é o exemplo da expressão inconsciente coxinha–, mesmo embora não possamos ser tão otimistas quanto ao futuro, pretendo desdobrar neste texto dois problemas que, somados a diversos outros, são de grande importância junto às forças que levaram ao Golpe parlamentar ocorrido no país no ano de 2016: as desavergonhadas demonstrações de ódio a um pensamento que chamaríamos de progressista, sentimento “naturalmente” decorrente deste inconsciente e que não apenas se endereça a indivíduos/sujeitos mas à instituição democrática como um todo; a partir daí, entendo que devamos encarar a relação direta entre a especificidade deste afeto e o que poderíamos chamar de pacto edípico, relação cuja articulação problematiza os desdobramentos que o complexo encontra quando referido ao laço social.  
A bem da verdade, seria mais correto dizer que esses dois aspectos exigem uma trança, quer dizer, três eixos que se obrigatoriamente se entrecruzam em:
  • A democracia vista como um mal é uma ideia recorrente na história da humanidade, e remonta à Grécia Antiga, como nos permite verificar Platão – a meu ver a defesa de que já estejamos falando majoritariamente de Golpe e não de impeachment se deve diretamente a isso, ainda que se possam ouvir resistências quanto a isso;
  • A “brincadeira” acerca de um inconsciente coxinha se torna portanto central e se deve em muito à migração, cada dia mais visível, do tradicional coxinha “centrão” (leia-se, aquele que reza pela cartilha do PSDB embora não saiba muito bem o que seria exatamente uma social-democracia) ao extremismo de um Bolsonaro por exemplo, isto é, candidato esse que se posiciona de maneira claramente antidemocrática (ainda que declare o contrário!, como se pôde assistir numa entrevista recente), o que reitera uma visão da democracia como o inimigo a ser vencido;
  • Por fim, restaria amarrar uma discussão que articule os pontos levando em conta a ideia de um pacto edípico, tão necessário à civilização e na medida em que se trata de um “acordo” ele mesmo originário, reverberante na constituição do laço social.
Dia após dia tais eixos parecem se amarrar com nós mais apertados, sobretudo em virtude dos modos como esse ódio à democracia vem se expressando no país e cuja intensidade parece ter aumentado em proporção geométrica desde a deposição da presidenta Dilma – olhando mais de perto, e apesar das justas reinvindicações da categoria, a recém-extinta greve de caminhoneiros, a título de exemplo, teve lá seu tom bastante reacionário, e aliás claramente visível (na TV, inclusive), mostrando certo contingente de manifestantes que clamavam por uma intervenção militar; não obstante muitos desses cidadãos de bem tenham pegado uma caronano movimento, isso não invalida a hipótese de que o fenômeno configuraria por assim dizer um “sintoma social dominante” em meio ao cenário atual.
Trata-se, como se sabe, de um ódio que reúne no mesmo lugar um certo grupo de anormais e que não é tão novo assim: ódio ao pobre, às diferentes minorias, à comunidade LGBT, aos excluídos de todos os modos, enfim, ao outro que é diferente mas ao mesmo tempo familiar, Unheimlich, como diria Freud. O sociólogo Luiz Eduardo Soares resumiu muito bem e de maneira muito simples como uma disposição desta ordem vem se manifestando particularmente em nossa contemporaneidade tupiniquim: a matriz psicológica do nazismo, isto é, o antissemitismo fascista, diz ele,[1]é idêntica à do antipetismo vigente – e por extensão a todo e qualquer pensamento “progressista” – para não dizer de esquerda, esse predicado que assusta tanto, justamente, o coxinha.
O ódio à democracia, famoso estudo de Jacques Rancière publicado em 2014 no Brasil (editora Boitempo), remonta com competência as matrizes desse ódio: ora, se a democracia pode ser entendida hoje como o “reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna”, não é de causar surpresa a idade de um tal sentimento que, obviamente, é tão velho quanto à democracia já que a própria palavrademocracia seria ela mesma a expressão de um ódio: endereçado em princípio ao “governo da multidão”, este ódio se refere ao poder que chamaríamos de difuso ou concentrado nas mãos do povo, tal como se pensava na Grécia antiga, mas que seria o grande responsável pela ruína de toda ordem legítima; e assim o uso semântico do significante democracia vem servindo de sinônimo para “bagunça” há bastante tempo – basta lembrarmos que os eleitores de Bolsonaro existem. Por isso é de bom grado demarcar que há uma diferença – evidente e significativa – entre o ódio e a críticaà democracia, embora ela se torne muito tênue, sobretudo hoje, pela sujeira ideológica que a acompanha: Platão, que não abria mão da hierarquia dos poderes para exercê-la, criticou a ideia de democracia desde sempre, como se sabe, justamente denunciando-a como sendo da ordem da “confusão”.
Sobrevive, portanto, um paradoxo de base no interior do conceito moderno de democracia. Num primeiro aspecto, contudo, algo se torna claro quanto a isso, pois se trata de uma oposição na qual dois inimigos públicos se dispõem: a democracia, de um lado, versusa tirania, as ditaduras, o totalitarismo, em suma, tudo o que chamaríamos de governo do arbitrário, de outro. Ainda assim, “essa oposição esconde outra mais íntima, e que não tão moderna assim”, escreve Rancière: o “bom governo democrático é aquele capaz de controlar um mal que se chama”, ironicamente, “vida democrática” (2014, p. 16). Deste modo, o entendimento de democracia levaria a pensar que a(s) sua(s) crise(s) é (são) provocadas pela própria intensidade da vida democrática: “anarquia do povo” que inverte a ordem do poder, a concepção de democracia se soma a uma crítica permanente dos princípios do “bom governo” que deveria levar a um bem estar social e individual, ou seja, atender a uma demanda de felicidade almejada por todo aquele pertencente ao socius. Em outras palavras, como forma de vida política e social, a democracia, isto é, a abertura para a decisão pública acerca dos assuntos do estado, se torna o reino do excesso: o paradoxo se agudiza porque esse excesso seria a própria ruína do regime democrático, e de tal modo deveria ser combatido (!) por ele. Sinuca de bico.
Pois bem: se por democracia devemos entender um regime que pressupõe a liberdade dos indivíduos, a isso somada a participação da maioria na vida pública junto a um princípio rigoroso de igualdade que faz equivaler os indivíduos guardando suas diferenças, caberia enfim perguntar: seria a democracia um regime possível? Se, como a Rancière define, democraciaquereria dizer que “as formas jurídico-políticas das constituições e das leis de Estado não repousam jamais sobre uma única e mesma lógica” (2014, p. 71), como se poderia contê-la, uma vez vitoriosa? Ou, por outro lado, certamente mais honesto, a quem não interessa a democracia? Afinal, há esta situação estrutural que a problematiza muito bem na contemporaneidade: dado o regime capitalista, democracia seria o mesmo que consumir com liberdade? Defender o porte de arma como preceito máximo do free-will individual é um argumento forte para muitos dos norte-americanos que se dizem “democratas”… e no Brasil não parece que estejamos imunes a um fenômeno de iguais proporções, lamentavelmente.
Mas deixando um pouco de lado o aspecto mercantil, mesmo uma eleição não seria “em si uma forma democrática pela qual o povo faz ouvir a sua voz”; ela “é geralmente a expressão de um consentimento que um poder superior pede e que só é de fato consentimento na medida em que é unânime” (Rancière, 2014, p. 70). Deste modo a representação, isto é, este que é o sistema mais utilizado na maior parte das democracias modernas, seria curiosamente o seu exato oposto, ainda que esta não seja necessariamente um motivo que justifique refutar aquela. Ora, mesmo nas democracias representativas há a exigência de um título para governar, pois existe o voto e, por conseguinte, alguém que se candidata ao poder: embora Aristóteles tenha apontado o sorteiocomo exercício o mais democrático possível – aquele em que o “deus acaso faz com que o desejo pelo poder não seja o fator de acesso a ele” –, não há em nossa história um regime no qual se abriu mão de algum título para governar; nestes termos, não seria a democracia uma heterotopiafrente a uma estrutura social que desde sempre é eminentemente oligárquica? Trocando em miúdos provavelmente menos palatáveis, segue a inequívoca regra: um governo que pressupõe radicalmente a igualdade como princípio de poder não é um fato da humanidade. Com a eleição, o que vemos é a elite exercendo, mas agora de fato e de direito, isto é, em nome do povo, “o poder que ela é obrigada a reconhecer a ele” e que ele não saberia exercer por si mesmo sem arruinar todo o princípio do governo – de acordo com essa elite, evidentemente. Assim, a democracia representativa não passa de uma espécie de parlamentarismo plutocrático que vai mais ou menos cedendo de acordo com as lutas sociais: “Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade”, conclui o Rancière; “Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominaçãoda oligarquia no Estado e na sociedade”. Sendo o resultado de uma sólida aliança entre as oligarquias estatal e econômica, é como se Estado desse à democracia mais ou menos espaço conforme a força das pressões sociais. Neste sentido, o Estado se resume em ser uma “oligarquia que dá à democracia espaço suficiente para alimentar sua paixão”… Contudo – e esse dado é de extrema importância –, os “males de que sofrem nossas ‘democracias’ estão ligados em primeiro lugar ao apetite insaciável dos oligarcas” e não ao regime enquanto tal (2014, ps. 71; 93; 95).
Seria então o caso de pensar que as chamadas “crises” políticas, ou mesmo a impossibilidade concreta que certas tentativas de emancipação enfrentaram para se realizar fora do sistema capitalista, foram os responsáveis por gerar a certa ideologia que sustenta a vitória do capitalismo, já hoje longeva? É bem provável que não, mas, dado o fracasso dos exemplos alternativos, é como se o poder simbólico do capital condenasse a sociedade a confiar apenas na realidade da economia, “reino ilimitado do poder e da riqueza”.[2]Entretanto, e ao contrário do que nos querem fazer crer esses ideólogos mercantis da representatividade, a democracia não é “nem a forma de governo que permite a oligarquia reinar em nome do povo, nem a forma de sociedade regulada pelo poder da mercadoria”; muitopelo contrário, a democracia “é a ação que arranca continuamente dos governos oligárquicos o monopólio da vida pública e da riqueza a onipotência sobre a vida” (Rancière, 2014, p. 121), e parece ser exatamente aí, com efeito, que se verifica a maior parte do ódio que historicamente vem se lançando contra ela.
Em que medida este ódio não seria também a expressão de uma quebra dos laços sociais? Na década de 1960 o escritor, poeta e psicanalista Hélio Pellegrino (1924-1988) lançou uma interessante análise acerca da relação entre o que chamou de “pacto edípico” e seu suposto correlato – o “pacto social”. Em linhas gerais Pellegrino[3], que a essa altura já havia se tornado um intelectual de reconhecido antagonismo frente ao regime militar, retoma em sua tese a lendatebana na qual Sófocles teria se apoiado a fim de reiterar um detalhe insuspeitado: Édipo, curiosamente, não sucumbira ao complexo de Édipo, mas fora vítima de vicissitudes pré-edípicas.Em Tebas, condenado à morte antes mesmo de ter podido separar-se de seus pais (biológicos no caso, ou seja, Laio e Jocasta), é amarrado a uma árvore e deixado para morrer; neste momento ele é ainda um sem nomeporque Édipo traduz-se pela expressão “pés inchados”, que acabará batizando-o. Mas vejamos o que Pellegrino quis dizer com “pré-edípico”:
1)   A árvore corresponde essencialmente ao símbolo arquetípico da mãe, à qual, neste caso, o sujeito está atado de modo a naufragar, pois nela está desesperadamente preso. E é assim que a função materna exercida por Jocasta revela um traço incestuoso primitivo, anterior mesmo à condição sexual que ocorrerá na sequência da narrativa;
2)   Já a corda representa, aqui, obviamente, o cordão umbilical; e é preciso se atentar ao fato de que, na obra, é o pastor de Corinto quem a vem cortar, e não Laio. Esse corte é, com efeito, o passo necessário para se separar (de maneira “saudável”) da mãe – uma operação que se traduz, em termos psicanalíticos, no exercício de uma função terceira,paterna: trata-se portanto de partejar a subjetividade do filho ao abrir-lhe as portas para se diferenciar da mãe.
Em Corinto, por outro lado, Édipo é adotado pelo casal real[4]e recebe deles uma paternidade “propriamente dita” porque exercida como função: a puberdade do jovem tebano é vivida aí com liberdade, a tal ponto de poder se desligar desses pais para viajar pelo mundo. Assim, Édipo deixa Corinto porque podefazê-lo: não obstante, ao receber notícia da previsão trágica feita pelo oráculo, e por desconhecer sua origem “genética”, foge daquele destino justamente por amar os pais adotivos – ao mesmo tempo em que era amado por eles. Sua escolha indica que em Corinto não houve naufrágio, não há prisão, pois o amor se tornara a condição necessária e suficiente para a liberdade.
Restam, contudo, laços arcaicos não elaborados junto à mãe (isto é, a função materna jocastiana), situação que dá margem a um mecanismo de chamaríamos de cisão: ora, “ganhar” a mão de Jocasta por meio de um ato heroico faz dela nada mais que um troféu; além disso, Édipo a recebe sem conhecê-la! Como lidar, portanto, com uma realidade tão “quebrada”?
É aqui que entra (ou deveria entrar) a Lei do pai, leia-se, a introdução de uma instância terceira que opera o corte da célula narcísica. No entanto, uma lei, para ser respeitada, deve não apenas ser temida (algo que se estabelece por sua potência de interdição e de punição), mas também ser amada, pois, no que tange à subjetividade, é preciso que a lei seja desejada. “Só o amor e a liberdade, subordinando e transfigurando o temor, permitem uma verdadeira, positiva e produtiva relação com a lei”, sugeriu o psicanalista (Pellegrino, 1983/2018, p. 2). Em outras palavras, o desejo de lei é dialeticamente referido à lei do desejo: só se pode desejar uma vez engendrada essa lei, e é justamente a sua própria constituição que empurra o sujeito para o registro simbólico, ampliando assim o escopo de sua vida psíquica para além da “literalidade” das coisas, por assim dizer.[5]
O pacto edípico consiste, logo, em a criança aceitar seu lugar de terceiro excluído no tocante ao desejo originário, isto é, um desejo que opera a primeiríssima passagem da natureza à cultura e que abre caminho para as demais travessias subjetivantes. Em termos simbólicos, trata-se de uma proibição que leva a uma permissão: trocar a mãe (o incesto) por “todas as mulheres do mundo” – lugar-comum que não deixa de ser verdadeiro. No fundo, o que nos ensinaria a tragédia de Édipo é que é preciso aceitarperder para ganhar. E esta lei é estruturante do desejo porque é ao limitá-lo que se proporciona a sua consistência, ou ao menos o situa frente a um horizontede realização, dada a condição de impossibilidade a priori de “realização de desejo”. O que não é nenhuma humilhação, evidentemente, mas bem o contrário: trata-se de uma possibilidade real de se inserir no laçosocial uma vez que a realidade é inelutavelmente parcial, tanto quanto as satisfações que nela pode(re)mos encontrar.
O complexo de Édipo é, por conseguinte, um pacto, uma aliança na qual as duas partes devem ganhar em virtude da introdução do princípio de realidade. Os ganhos são: filiação e pertencimento, nome, lugar na estrutura de parentesco, acesso ao simbólico, enfim, os veículos que permitem uma vida em sociedade. De tal como que o trabalhose torna uma estrutura mediadora fundamental da vida coletiva, pois, em boa medida, é por meio dele que tomamos parte constituinte no mundo: trabalhar (não se trata necessariamente de emprego) significa inserir-se no tecido social por intermédio de uma práxis, é o mesmo que aceitar a ordem simbólica que nos constitui e na qual imperam direitos e deveres para todos e para cada um.
Como Freud já apontava desde o Mal-estar, o caminho da civilização, quer dizer, um regime de não barbárie, consiste necessariamente numa renúncia pulsional em favor de Eros,já que com ela também se renuncia uma parte da agressividade que motoriza o ódio que nos habita. Contudo, operar uma renúncia desta ordem exige uma articulação direta com as condições reais, como adverte Pellegrino. Restam algumas questões: como fazê-la nas condições sociais em que nos encontramos, concretamente falando, já hoje tão inseridos num sistema ultra-capitalista e que sustenta a injustiça social como um fato corriqueiro edado de antemão? Ora, se o complexo de Édipo consiste num perder para ganhar, como vimos, como seria possível atravessá-lo sem a menor perspectiva de ganhar? Como suportar o mal-estar, inerente à subjetivação, em um mundo que alija o sujeito de seus direitos mais básicos? E como articular, por fim, o pacto edípico com o pacto social nesta realidade pós-golpe?
Em maio deste ano o pré-candidato à presidência da República pelo PSOL, Guilherme Boulos, concedeu uma entrevista ao Roda Viva na qual se verifica sem dificuldade o quanto fora atacado pela bancada – o que aliás se tornaria corriqueiro, nos próximos programas, com os candidatos mais afinados ao discurso progressista. Tomando isso em conta, quero destacar um trecho em especial no qual o inconsciente coxinha, ao qual me referi no título deste ensaio, se pronuncia à alta voz. Neste caso, quem está se dirigindo a Boulos é Rubens Machado, cientista político reconhecidamente ligado aos governos de Fernando Henrique Cardoso.
“Candidato”, assim inicia o entrevistador, “o senhor tem uma grande simpatia pela Venezuela, expressa em vários vídeos que eu tive a oportunidade de assistir ao longo desse período, do convite até hoje. Nós estamos falando que o Brasil está retroagindo, então vamos falar de um país que avança, que é a Venezuela”. Rubens apresenta na sequência, não sem um tom dissimuladamente irônico, alguns dados que julga relevantes à discussão: “2016 com inflação superior a 800%”, “PIB caiu 19%”, e “75% da população perdeu 9 kg ao longo do tempo”; “ela é um pouco o modelo que o PSOL defende”, conclui, e junto a isso “rechaçar a conciliação de classes – a frase é essa!” e que o entrevistador, a propósito, sublinha, enquanto Boulos aguarda, roçando a mão em seu próprio cavanhaque. O cientista político mostra então a “divisão do perfil ideológico do brasileiro” segundo o índice Datafolha: “10 direita, 20 centro direita, 20 centro, 20 centro esquerda, 10 esquerda”. “Como é possível” – ele está prestes a concluir –, “num perfil desses, você rechaçar a conciliação de classes?”, pergunta, enfim, para chegar ao ápice de seu cinismo, no mau sentido do termo: “é através de invasões?”
Um aspecto a se destacar logo de antemão, e que se apresenta como um detalhe, é que a aritmética de Rubens sobre o perfil ideológico do brasileiro soma 80%, ou seja, não alcança os 100 necessários a uma situação de percentagem… Embora na aparência insignificante, engraçado até, arrisco dizer que este lapso já antecipa, em ótima medida, o inconsciente a se revelar, sendo uma espécie de indício prévio de que vem na sequência e que naturalmente escapa ao entrevistador. Além disso, a resposta que Boulos dá à pergunta nos interessará mais pelo que ele não dizdiretamente; basta, pelo momento, destacar apenas a primeira parte, excerto que funciona, a propósito, como uma espécie de interpretação porque descortina com agudeza o inconsciente coxinha para o qual estou querendo chamar a atenção. Vejamos um pouco mais de perto.
Boulos começa reiterando o orgulho de fazer parte do “extraordinário partido que é PSOL”, sobretudo em função do barulho que a sua “pequena” bancada faz (“seis que fazem mais barulho do que cinquenta”), além de sua “coerência, justiça e combatividade”. Sem perder tempo, destaca: “primeiro você perguntou a respeito da Venezuela: eu não acho adequado, de bom tom fazer chacota com países que estão passando por momentos difíceis”. Rubens o interrompe: “Não fiz chacota, citei dados”, ao que o entrevistado retruca: “Você falou que ela [a Venezuela] está avançando, sendo irônico, não acho que isso está adequado” (e daí Boulos segue relembrando aos espectadores a recente crise do petróleo, ponto nevrálgico da problemática venezuelana).
Pois bem, o lapso é apontado por Boulos no aqui-agora e em rede nacional, impedindo que seja recalcado; a meu ver, é deste modo, precisamente, que o inconsciente coxinha se expressa: a mensagem vem acompanhada de um afeto – o ódio, é claro –, ele mesmo travestido por uma canalhice argumentativa que se sente, no geral, impune. Há uma negação clássica aí – “não fiz chacota” –, e é como se o entrevistador negligenciasse, por um átimo de segundo, sua própria estupidez ao criticar de modo irônico, gozoso até, um regime de governo que seria “de esquerda”. Como não poderia ser diferente, a fala odiosa é acompanhada por sua contrabanda inconsciente, que, de sua parte, essa sim, nunca falha… e eis que então a sua sordidez é desmascarada, no ato, pelo “psicanalista Guilherme Boulos”.[6]
Outro exemplo igualmente forte pôde ser observado por muitos brasileiros devido ao seu alcance: “o Brasil voltou, 20 anos em 2”, dizia o slogan de governo mais atrapalhado[7]na história recente do país. “Implorando para ser interpretado como ato falho”,[8]é como se a assessoria da presidência golpista tivesse dado uma ótima chance para que todos pudessem entender, de uma vez por todas, a concepção freudiana de inconsciente: neste caso, a leitura é ainda mais simples que a anterior: basta retirar a vírgula e o tiro no pé está dado – vale lembrar que o inconsciente sempre revela senão a verdade.[9]
Retornando ao problema dos pactos, temos que a renúncia do princípio de prazer (que funciona de modo onipotente), tem como contraoferta uma abertura de possibilidades de viver, isto é, a preservação da integridade física e psíquica para qualquer sujeito. Quando, no entanto, o pacto é de mão única – como se dá na realidade aviltante em que muitos brasileiros passaram a viver sobretudo neste período pós-golpe –,[10]há ruptura, rompimento, revolta. “Do mesmo modo que a satisfação de pulsões é felicidade”, escreveu Freud há mais de oitenta anos, “torna-se causa de muito sofrer se o mundo exterior nos deixa à míngua, recusando-se a nos saciar as carências” (1930/2010, p. 34). Contudo, se por um lado o mal-estar sublinhado por Freud é inerente à nossa constituição psíquica, o mesmo não se pode dizer da miséria, que não é outra coisa senão produto desta mesma civilização, que, vale sublinhar, só existe em função do pacto.
O psicanalista Paulo Endo relembra que “parte importante da tarefa das instituições civilizacionais é cuidar para que se preserve o que Fédida denominou de o recalcamento do recalcamento” (2016, p. 185): trata-se, grosso modo, de um movimento que visa recalcar mais uma vez o recalcado (isto é, o já instituído), visando com isso manter uma certa estrutura de poder. Deste modo, a instituição está para a civilização, para a cultura, assim como o sintoma estaria para a neurose; a instituição seria, portanto, um sintoma, uma defesa que visa manter o mais longe possível a verdade, a saber: que as possibilidades de emancipação e de liberdade estão presentes na vida coletiva, e não fora dela.
Ora, o inconsciente coxinha parece funcionar em bases idênticas. Disse Freud que a neurose seria, em grande medida, a frustração, ou melhor, a privação que a sociedade impõe paradoxalmente a si mesma para que possa viver nela; assim, o outro é tanto objeto de amor quanto de ódio, muitas vezes mediado pelo narcisismo das pequenas diferenças. No caso aqui analisado, é como se o coxinha imputasse a um só partido, ou a um certo modo de pensar, essa privação que o tolheria de viver plenamente seus recursos. Mas sabemos que não é disso apenas que se trata. É preciso também machucar esse outro, humilhá-lo, retirar dele todo poder: como se ouviu em muitas das mídias sociais, chegamos ao ponto em que se tornara insuportável à mentalidade coxinha “ver pobre andando de avião”.
Sem um pacto social, algo como o que se rasgou com o Golpe parlamentar, corremos o risco perene de retorno ao recalcado primordial, à massa informe de um tempo sem laço e sem lei. Talvez isto nos ajude a entender um pouco este ressentimento cada vez mais frequente na boca dos muitos brasileiros que apelam para algum tipo de tirania (!) que nos viesse salvar. O fermento do ódio está dado. Tudo isto seria cômico se não fosse trágico, evidentemente, e se comecei este texto com um chiste, não é no mesmo tom que eu poderia encerrá-lo, pois restaria saber se ainda resta alguma esperança de analisabilidade em meio à barbárie galopante.

Referências
ENDO, P. Um futuro sem inscrição no tempo presente e sem tributo ao passado: o insidioso retorno dos tiranos e de sua horda. In: Rinaldo Voltolini (org.) Crianças públicas, adultos privados. São Paulo (SP): Escuta/Fapesp, 2016.
FREUD, S. Mal estar na civilização, novas conferências introdutórias e outros escritos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PELLEGRINO, H. Pacto edípico e pacto social.Folha de São Paulo, 1983. In: http://www.psicologiahailtonyagiu.psc.br/materias/ponto-vista/287-pacto-edipico-e-pacto-social-helio-pellegrino. Acessado em 17/05/2018
RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2016.
[1]http://midianinja.org/luizeduardosoares/villasboas-faz-a-maior-chantagem-a-justica-desde-a-ditadura/
[2]João Amoedo, pré-candidato à presidência da república nas eleições de 2018 pelo partido Novo, é um representante claro desta posição.
[3]Este trabalho veio inclusive a ser publicado, de modo bastante resumido, na Folha de São Paulo de 11 de setembro de 1983.
[4]Mérope e Políbio
[5]O que se aplica à questão da lei do pai: se o pai não é morto no simbólico, acaba sendo assassinado no real, como é o caso de Laio.
[6]Quando se apresenta publicamente, Boulos costuma mencionar os estudos de psicanálise que realizou.
[7]A ambigüidade desta minha frase é evidentemente intencional.
[8]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/slogan-o-brasil-voltou-20-anos-em-2-implora-para-ser-interpretado-como-ato-falho.shtml
[9]A meu ver, e acredito não estar sozinho, o aumento na quantidade de pessoas vivendo em situação de rua ou prestes a nela entrar se tornou pornograficamente observável desde o impeachment.
[10]Mas não somente aí, evidentemente: nosso passado é uma longa história de quebra de pacto.

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