sábado, 8 de setembro de 2018

E a opressão abriu as asas sobre nós… Por Jorge Luiz Souto Maior, Desembargador e Professor de Direito do Trabalho da USP

E a opressão abriu as asas sobre nós…


"Concretamente, o resultado da vigência da “reforma” trabalhista foi que no último trimestre (abril-junho/2018) havia 13 milhões de desempregados no Brasil. Embora possa ser um pouco menor do que aquele de um ano atrás (13,5 milhões), o número é bastante trágico quando a ele se soma o dado de que 1,2 milhões de pessoas passaram para a estatística dos brasileiros que não trabalham nem procuram empregos, chegando-se ao montante de 65,6 milhões de pessoas nesta condição (de “desalentados”), em uma população total de 213 milhões."

Do Justificando:



E a opressão abriu as asas sobre nós…


Imagem: EBC
“Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína”
(Fora da Ordem – Caetano Veloso)


Em 1989, na sequência da promulgação da Constituição de 1988, quando se chegava ao centenário da Proclamação da República e a 101 anos do término jurídico da escravidão, o ano se inicia como prenúncio de uma nova era, que se refletia no grito, em forma de desabafo e de esperança, proferido pela Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense:

“Liberdade, liberdade!
Abra as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz”[i]

Mas, quase três décadas depois, o que se vê no noticiário mais recente é que uma grande empresa jornalística dispensou 800 empregados (jornalistas, gráficos e administrativos), sem sequer lhes pagar as verbas rescisórias, dentro da estratégia, já bastante conhecida, de, concomitantemente, entrar com ação de recuperação judicial e, assim, incluir essa dívida em um Plano de pagamento futuro, dependente da deliberação do rol de credores[ii].
Nos últimos dias, uma empresa aérea anunciou a dispensa de 1.200 empregados, para promover uma terceirização de diversas atividades ligadas ao seu empreendimento[iii].
Essa situação, aliás, já havia atingido, em nossa história recente, médicos, professores e advogados, além de trabalhadores rurais[iv].
Não que tais fatos já não tivessem ocorrido antes na realidade das relações de trabalho no Brasil, mas o que impressiona agora é a naturalidade e a insensibilidade com que se encara a situação. Este modo naturalizado de se visualizar o sofrimento alheio, aliás, é um dos efeitos mais nefastos da denominada “reforma”[v] trabalhista, que, de fato, chega a ser uma expressão de maldade, já que, escamoteando o seu real propósito de deixar de joelhos a classe trabalhadora, para satisfazer a necessidade do poder econômico, foi “vendida” à população por meio de argumentos falaciosos, como os da “modernização” e da “criação de empregos”.
Concretamente, o resultado da vigência da “reforma” foi que no último trimestre (abril-junho/2018) havia 13 milhões de desempregados no Brasil[vi]. Embora possa ser um pouco menor do que aquele de um ano atrás (13,5 milhões), o número é bastante trágico quando a ele se soma o dado de que 1,2 milhões de pessoas passaram para a estatística dos brasileiros que não trabalham nem procuram empregos, chegando-se ao montante de 65,6 milhões de pessoas nesta condição (de “desalentados”), em uma população total de 213 milhões.
De fato, apenas pouco mais de 30 milhões de trabalhadores estavam integrados, em abril deste ano, ao rol de trabalhadores com carteira assinada, ou seja, na condição de empregados, sendo este o menor número dos últimos 6 anos[vii].
Então, temos que a dita “reforma”, que foi “vendida” com o argumento de que criaria mais de 2 milhões de empregos no país, esteve muito longe de atingir esse número, até porque, efetivamente, este nunca foi, repita-se, o real objetivo das alterações legislativas propostas, que se implementaram única e exclusivamente para baratear o custo da mão de obra por meio da difusão de contratos precários, aumento da jornada de trabalho, redução salarial e fragilização da atuação sindical dos trabalhadores, acompanhada da criação de obstáculos para que os trabalhadores pudessem ter acesso à Justiça do Trabalho para buscarem a efetividade de seus direitos (já reduzidos).

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Cumpre verificar, ainda, que uma boa parte dos números referentes aos supostos empregos criados são de trabalhadores intermitentes (20 mil de novembro de 2017 a maio de 2018)[viii], que, embora, pela legislação atual, tenham carteira assinada, são, de fato, desempregados, em razão da precariedade de direitos que lhe foram direcionados. Segundo supõe o legislador, não lhes é garantido sequer o salário mínimo mensal.
Além disso, pelo critério de contabilidade adotado, quando um único trabalhador intermitente está indicado nos dados de diversas empresas como um empregado intermitente, considera-se que cada vínculo representa um emprego criado[ix], o que amplia, artificialmente, o número de trabalhadores empregados.
A precarização é o direcionamento inevitável da “reforma”. Em 2015, de um total de 51,7 milhões de empregados, 9,8 milhões eram terceirizados[x]. Não há números precisos ainda sobre o número atual de terceirizados, mas é bem provável que do total de empregos criados um percentual considerável esteja neste setor, que, do ponto de vista real, não deixa de ser um subemprego, com salários reduzidos[xi], direitos não respeitados[xii] e número mais elevado de acidentes fatais[xiii].
É importante lembrar que a precarização do trabalho implica menor recolhimento de impostos[xiv] e de contribuições previdenciárias[xv], reduzindo as potencialidades da coisa pública, ainda mais se considerarmos também os termos da Emenda Constitucional 95/16 (que ganhou popularidade enquanto ainda era a PEC 241 ou “PEC do fim do mundo”, como era chamada), aprovada nesse mesmo período histórico, que congelou por 20 anos os gastos públicos.
Com tudo isso, parcela considerável da riqueza produzida pelo trabalho que poderia ficar diretamente com a classe trabalhadora, ou que deveria ser direcionada ao conjunto da sociedade, por meio do investimento em políticas públicas de inserção social ou pela implementação dos serviços públicos relativos à previdência social, educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia fica na posse exclusiva das grandes empresas e como estas são, na sua quase totalidade, empresas multinacionais, com sede em outros países, operando com capital internacional especulativo, esse lucro adicional não fica no país.
Não é por acaso, portanto, que: “As remessas de lucros e dividendos feitas por empresas estrangeiras com sede no País somaram US$ 5,109 bilhões em agosto, segundo dados divulgados nesta sexta-feira (23) pelo Banco Central (BC). O resultado representa o maior volume de remessas no mês desde o início da série histórica, iniciada em 1947.”[xvi]
Enquanto isso, no Brasil, o que se constata, além do aumento do desemprego e do subemprego, é o aumento da miséria[xvii] e, consequentemente, o aumento da desigualdade social[xviii], sendo que, precisamente, se chegou, aqui, no último período, ao resultado de que a renda dos 1% mais ricos foi 36 vezes superior à média dos mais pobres, sendo que nem mesmo esse acúmulo fica no país, já que os ricos aumentaram, de forma recorde, o volume de suas remessas ao exterior[xix].
O que fica para os trabalhadores e trabalhadoras no Brasil é aumento da exploração e do sofrimento.
Reforça-se toda nossa estrutura histórica de fosso social e de exclusão, de preconceito e de discriminação, vez que os mais atingidos pelo desmonte da rede de proteção social são os excluídos de sempre: “Entre os que desistiram de procurar emprego, pretos e pardos são a maioria, representando 73,1% desse contingente. Do total, 23,4% têm entre 18 e 24 anos, e 38,4%, ensino fundamental incompleto.”[xx]
Além disso, em nome de suposta eficiência, opera-se uma dilapidação do patrimônio público, com sacrifício de empregos e divisas, como se apresenta nas “vendas” da Embraer e da Eletrobrás.
O efeito desse desmantelamento remete a classe trabalhadora a um estágio de subcidadania, aniquilando o projeto da formação de um Estado Social Democrático que foi preconizado na Constituição de 1988.
Mas o conjunto desses fatos não atinge unicamente os trabalhadores. É, efetivamente, um projeto de Brasil que se abre mão de construir. Aliás, o descaso com as instituições públicas é capaz, inclusive, de apagar a nossa própria existência histórica enquanto sociedade civil organizada, conforme se verificou ontem, dia 02/09/18, com a destruição do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.
E apesar de todas essas constatações, o que ganha destaque e repercussão na grande mídia é apenas a redução do número de reclamações trabalhistas, apontada como efeito positivo da “reforma”, sendo que, na verdade, não se transmite uma informação. Atuando como grupo empresarial capitalista e, portanto, empregador, o que a grande imprensa expressa é meramente uma comemoração, como se a criação de obstáculos de acesso à justiça ao pobre pudesse ser considerada fator de engrandecimento de uma nação.
Desse modo, a opressão atinge um novo estágio de perversão e de maldade. Essa é a única explicação racional para o esforço de fazer vistas grossas da realidade e tentar convencer o outro de que o seu sofrimento está justificado porque poderia ser pior. Como se não soubéssemos que essa lógica do mal menor, repetidas várias vezes ao longo de nossa história, já não tivesse nos direcionado ao fundo de um poço, que, de fato, parece não ter fim.
E é assim, por exemplo, que os efeitos nefastos da “reforma” não são reconhecidos, e que não se admite tenha havido qualquer erro. Desse modo, mesmo quando se vislumbram alguns problemas sociais e econômicos, de forma perversa e maldosa buscam-se identificar outros culpados. É neste sentido que a “greve dos caminhoneiros” aparece com frequência no noticiário midiático como explicação única para a crise econômica nacional[xxi] – uma crise que, ademais, está sempre sobre as nossas cabeças – e até se chega a dizer que a “reforma” trabalhista não foi suficiente, querendo-se mais e mais.
Na reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, o folhetim apresenta uma propaganda da diminuição do número de reclamações trabalhistas como sendo efeito maravilhoso da “reforma”, procurando difundir a ideia do quanto a redução do custo de produção provocada pela retração das reclamações trabalhistas contra os bancos, por exemplo, seria benéfica aos consumidores. O texto pôs em destaque o argumento de que o “menor custo com ações pode ajudar a reduzir juros”, mas o que se vê no corpo da “notícia” é que, de fato, não houve diminuição dos juros bancários e a explicação para isso, dada por um economista, especialista no assunto, foi a de que o alívio nos juros só ocorrerá quando outras mudanças estruturais forem implementadas, sem apontar, no entanto, do que, concretamente, estaria falando[xxii].
A propósito, o lucro dos bancos cresceu 17% no 2º semestre de 2018, em comparação com o mesmo período do ano passado, chegando a R$16,88 bilhões[xxiii], ao mesmo tempo em que a projeção de crescimento do PIB nacional em 2018 é de apenas 1,44%[xxiv].
Por consequência, mesmo com todas as evidências já demonstradas em torno das falácias dos principais argumentos que conduziram à aprovação da “reforma” trabalhista e da clara produção de efeitos desastrosos para os trabalhadores, para a economia e para a sociedade brasileira em geral, a força da maldade incentivada neste momento histórico, faz com que ainda sobressaia a visão de uma parcela retrógrada da classe dominante nacional, aliada aos interesses internacionais, em torno da necessidade de se implementarem ainda mais reduções nos direitos trabalhistas e sociais.
Não foi por acaso, portanto, que na última quinta-feira, dia 30/08/18, o Supremo Tribunal Federal, avaliando demanda proposta pelo agronegócio, levou a julgamento uma antiga reivindicação de ampliação da terceirização de forma irrestrita (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 324; e Recurso Extraordinário – RE 958252, com repercussão geral reconhecida).
O resultado, como se sabe, foi de 7 a 4 em favor da declaração da possibilidade de se efetivar a terceirização em qualquer atividade, tomando-se por base os fundamentos, nada jurídicos e apoiados em empirismo bastante precário, expressos pelo Relator, Ministro Luís Roberto Barroso, seguindo aquela mesma linha do mal menor que nos conduziu até essa trágica tira da nossa história e que não parece ter fim, no sentido de que a terceirização não precariza, vez que o terceirizado é um empregado, e de que é melhor ter um salário baixo, que se compensa com a possibilidade de prestar serviços a vários tomadores de serviço ao mesmo tempo, do que estar desempregado.
Assim, o que se prenuncia para o futuro, na proposição jurídica expressa pelo Supremo e nos demais preceitos contidos na lei da “reforma”, é o aprofundamento de todos os problemas já vivenciados até aqui, com maior número de dispensas coletivas e mais empresas querendo se valer das fórmulas precárias de contratação, notadamente a terceirização, sob o argumento da necessidade determinada pela lógica da concorrência.
Mantendo-se essa lógica, se procederá desse modo até que, diante dos inevitáveis efeitos econômicos nefastos do rebaixamento social, conforme já foi possível verificar de novembro de 2017 para cá, uma “nova” proposta de “reforma” vislumbre como “solução” a extinção da Justiça do Trabalho e a eliminação completa dos direitos trabalhistas, retomando-se os padrões escravistas de uma forma convicta.
E tudo isso se tem feito ao arrepio dos termos expressos na Constituição Federal e em diversos Tratados de Direitos Humanos.
Em 1988, o pacto firmado na nossa Carta Magna anunciava novos tempos. Trinta anos depois, somos obrigados a reconhecer que muito pouco do que havia sido prometido foi cumprido e que, agora, mesmo o pouco que se fez está sendo complemente destruído, e tudo isso em nome da mesma racionalidade econômica que manteve a escravidão durante 388 anos e que submeteu ao regime de Estado de exceção permanente a eficácia dos direitos sociais que se integraram à ordem jurídica nacional, com maior peso normativo a partir de 1988.
Instaurado o regime da perversidade, do egoísmo imediatista, da ausência plena de alteridade, no qual a injustiça social e o sofrimento alheio são justificados com argumentos que se apresentam como lógicos, jurídicos e ponderados, e que, mesmo sem querer, dão vazão a manifestações que se expressam, orgulhosamente, como homofóbicas, xenófobas, machistas, racistas e supremacistas, o que transparece é que caminhamos para uma situação em que alguns seres humanos se arrogam o direito de sentenciar o fim da humanidade.
Por isso mesmo, mais do que nunca, ainda que com todas as evidentes adversidades, é essencial não desistir e estabelecer um enfrentamento também técnico jurídico contra todos os argumentos que militem em favor do retrocesso da condição humana, mas tendo certo que apenas a institucionalidade do Direito não basta. Afinal, frustradas as promessas declamadas pela Imperatriz Leopoldinense, é hora de relembrar que “vamos precisar de todo mundo pra banir do mundo a opressão”[xxv]!

Jorge Luiz Souto Maior é desembargador no TRT-15 e Professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP)
[i]Samba Enredo GRES Imperatriz Leopoldinense, Niltinho Tristeza, Preto Jóia (Amauri Bonifácio de Paula, Vicentinho e Jurandir– 1989.
[v]. “…a palavra reforma é empregada para indicar a intervenção humana com o objetivo de aprimorar a coisa sob a qual se intervém. A intervenção que a reforma propicia não é uma simples alteração da coisa, mas antes, uma alteração para melhorar a coisa. Aquilo que se chama de ‘Reforma Trabalhista’, de fato, intervém na legislação trabalhista, mas, ao invés de melhorar, piora, e o faz com grande afinco, ameaçando-a de extinção. Portanto, sob o risco de se aderir ao sórdido cinismo daqueles que pretendem exterminar os Direitos Fundamentais Sociais, nos referiremos à Lei nº 13.467/2017 não como ‘Reforma Trabalhista’, mas antes pelo que ela realmente é: uma ‘Deforma Trabalhista’.” (YAMAMOTO, Paulo de Carvalho. Qual liberdade? O cinismo como figura retórica da Reforma Trabalhista: o caso da contribuição sindical., in: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto (coord.). Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 426).    
“É surpreendente que a substituição de um único caractere – o ‘R’ pelo ‘D’ – possa causar tamanho desconforto entre os juristas, não obstante, o amor à verdade assim o exigir. O sufixo mantém-se em ambas as palavras, no caso concreto, tratamos da forma que sofre alterações. Ao reformar, temos uma alteração da forma que, mantendo sua essência, melhora sua expressão. Em sentido oposto temos a deforma que, alterando a forma da coisa, a piora a tal ponto que ameaça de extinção a essência do próprio original.” (YAMAMOTO, Paulo de Carvalho. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade movidas no Supremo Tribunal Federal contra a Deforma Trabalhista., in: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto (coord.). Resistência II: defesa e crítica da Justiça do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p. 341)
[xxv]. O Sal da Terra, Beto Guedes.

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