terça-feira, 25 de setembro de 2018

Os delírios autoritários de Paulo Guedes, por Gustavo Freire Barbosa



Os delírios autoritários de Paulo Guedes

"A Piauí de setembro traz um excelente perfil de Paulo Guedes, retratado pela jornalista Malu Gaspar.Aspirante a czar da economia em um eventual governo de Jair Bolsonaro[1], Guedes é um autêntico Chicago Boy: ultraliberal, privatista, entusiasta dos mais caricatos dogmas do mercado. É também, como é de esperar, adverso à políticae aos influxos nefastos da “ideologia”, que demonstra considerar sinônimo de “esquerdismo” e afins."


Do Justificando:



Segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Os delírios autoritários de Paulo Guedes


É de Terry Eagleton, crítico literário inglês, a frase “ideologia é como mau hálito, só o outro tem”. Quando escreveram “A Ideologia Alemã”, Marx e Engels tomaram “ideologia” como algo do qual não se pode fugir -as luzes que não apenas esclarecem, mas também ofuscam, cegam e ocultam, impedindo que as determinações da vida sejam compreendidas.
A dupla de pensadores alemães desenvolveu uma rica teoria sobre o conceito dealienação, suas causas e desdobramentos. Segundo ela, as ideias dominantes de cada época são as ideias da classe dominante, expressão ideal das relações que a fazem ocupar o topo da pirâmide. Trata-se, em suma, dos meios de produção espiritual dominados por quem tem o controle dos meios de produção material.Da ideologia enquanto expressão invertida do mundo por ser a expressão de um mundo invertido.
A ideologia busca sempre naturalizar o que é histórico. A defesa contumaz daquilo que existe é talvez seu principal mecanismo, apresentando o que é particular como universal, como estágio definitivo do desenvolvimento da civilização humana. Suas formas – Estado, família, mercado, democracia representativa – são “as” formas. Definitivas, naturais, imutáveis, nascidas do contato da chuva com o solo. Em “A educação para além do capital”, Istvan Meszáros reflete o quão absurdo seria esperar a formulação de um ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em vigor, que levasse em consideração o ponto de vista dos servos, como classe, sobre os senhores da classe dominante.
A Piauí de setembro traz um excelente perfil de Paulo Guedes, retratado pela jornalista Malu Gaspar.Aspirante a czar da economia em um eventual governo de Jair Bolsonaro[1], Guedes é um autêntico Chicago Boy: ultraliberal, privatista, entusiasta dos mais caricatos dogmas do mercado. É também, como é de esperar, adverso à políticae aos influxos nefastos da “ideologia”, que demonstra considerar sinônimo de “esquerdismo” e afins.
O fato de se enxergar como alguém blindado à atmosfera ideológica esquerdista se encontra presente em todo o perfil.   “É burrice ter ideologia”, conclui, por exemplo, ao defender que a Petrobras deveria ter sido privatizada há anos, pagando a dívida pública epossibilitando a distribuição de dinheiro para o povo. Para Paulo Guedes, seus posicionamentos não são ideológicos.Brotam de equações matemáticas.
Este receituário, todavia, teve ao menos por duas vezes sua eficiência contestada pelos mais legítimos prepostos do capitalismo financeiro e propagandistas do pecado original. As conclusões de que a cartilha das privatizações, austeridade, controle rigoroso e dogmático da inflação e diminuição do Estado não entregam o que prometem foi do próprio FMI[2], ressaltando que tais medidas foram responsáveis por gerar um quadro insalubre e explosivo de desigualdade social. A nacionalização dos hidrocarbonetos e políticas inversas a estas, a propósito, são apontadas pelo próprio FMI como alguns dos fatores pelos quais a Bolívia vem sendo o país que mais cresce na América Latina[3]. As experiências de Portugal[4] e Islândia[5] se juntam à dos nossos vizinhos para deixar na berlinda o castelo de cartas do Consenso de Washington.
No artigo “Paulo Guedes contra o liberalismo”[6], Miguel Lago traça um paralelo pertinente entre a experiência histórica da Alemanha da década de 30 e o casamento de última hora entre Bolsonaro e Guedes. Embora os nazistas tivessem sido os mais votados nas eleições de 1932, Hitler era visto como alguém tosco e despreparado pela elite política e econômica. Para suprir essa deficiência, foi necessário o apoio de Franz von Papen, respeitado representante da aristocracia alemã, de maneira a possibilitar a nomeação de Hitler para o cargo de Chanceler. Ao emprestar seu prestígio ao nazista, Papen acreditava estar domando a fera – exatamente o que Guedes acredita estar fazendo:
“Quer dizer: todo mundo aí trabalhou para o Aécio, ladrão, maconheiro. Trabalhou para o Temer, ladrão. Trabalhou pro Sarney, ladrão e mau-caráter que aparelhou o Brasil inteiro. Aí um sujeito completamente tosco, bruto e consegue voto como o Lula conseguiu. A elite brasileira, em vez de entender e falar assim, pô, nós temos a oportunidade de mudar a política brasileira para melhor (…) ah, mas ele xinga isso, xinga aquilo… Amansa o cara!”.
Lago conclui que “o apoio público de Paulo Guedes a Bolsonaro é muito grave, pois ele naturaliza a barbárie, travestindo-a de civilização e tornando-a uma opção entre outras. Sem Guedes, Bolsonaro representaria apenas aquilo que ele é: o horror, o ódio e a loucura em seu estado mais puro. Seria apenas uma versão menos religiosa do Cabo Daciolo”. Um dos três maiores gestores de fundos de investimento do Brasil revelou a Malu Gaspar que o apoio de Guedes fez toda a diferença para que o mercado passasse a enxergar o capitão com um olhar mais condescendente: “já que Bolsonaro tem a chance de ganhar, é melhor que esteja com um liberal. Muito empresário queria votar nele, mas tinha receio ou vergonha. O Paulo Guedes deu a desculpa que o pessoal precisava”.
A diferença é que a relação entre Guedes e Bolsonaro não aguardou o êxito eleitoral para azedar. Após o economista ter tido suas asas cortadas pelo candidato e cancelado compromissos em série, ficou claro que a solidez desse “casamento hétero” não é tão segura quanto Bolsonaro vinha tentando demonstrar[7].
Guedes não admite que suas fórmulas sejam temperadas pela política. O mesmo interlocutor realça que, na primeira situação em que um deputado discordar de suas proposições, Guedes “mandará o sujeito para aquele lugar e irá embora”. Em outra ocasião, o economista trata da política econômica adotada no segundo mandato de Dilma Rousseff: “o Brasil precisa de um ajuste, o problema não é o Levy [Joaquim Levy, então ministro da fazenda]. O problema é a política”.Tamanha aversão ratifica o fato de não ser de hoje o pendor antidemocrático dos freedomfighters do mercado[8].
 A insatisfação com a política e seus instrumentos democráticos de controle e fiscalização é, como visto, um ponto nodal de suas ideias. Se a soberania nacional e as instituições democráticas forem um entrave para a acumulação, que sejam suspensas, vide a emenda constitucional do teto de gastos. Economia, segundo Guedes, não tem a ver com política, tanto que, a exemplo do próprio Milton Friedman[9], não vê nenhuma contradição em ter trabalhado para a ditadura de Pinochet, numa repugnante mistura de ignorância e cinismo:
“Quando questionei pela primeira vez a respeito disso, Guedes rechaçou a associação com a ditadura chilena. ‘O Bacha dava aulas aqui na PUC durante a ditadura e ninguém fala nada’. Comentei que havia uma diferença importante: a Universidade do Chile era dirigida por general, e a PUC, não. Ele ficou sem jeito. Mas afirmou: ‘eu sabia zero do regime político. Eu sabia que tinha uma ditadura, mas para mim isso era irrelevante do ponto de vista intelectual’”.
Guedes passou a achar a ditadura chilena “relevante” quando encontrou agentes da polícia secreta vasculhando o apartamento onde morava. Abandonou o Chile, mas não perdeu de vista o ideário privatista, mencionado especialmente em relação aos presídios e à previdência social – a primeira experiência, um fracasso retumbante nos EUA[10], a segunda, um desastre no próprio Chile[11].
Guedes, o tecnocrata, está consciente das dificuldades impostas à aplicação de seu programa pelos filtros institucionais das democracias liberais. Assim também estava a turma de Chicago em 1973 quanto à impossibilidade de execução de suas ideias por meio das vias democráticas. Montados nos alazões da liberdade, chegaram ao Chile para servir uma das mais sangrentas ditaduras da América Latina e aplicar exatamente o projeto que havia sido derrotado nas urnas anos antes. Curiosamente, também se achavam pós-ideológicos e acreditavamos viés apolítico dos serviços que prestavam.
Em outro trecho do perfil, o papel de espadachim do mercado vem entremeado de uma autocrítica incomum: “todos nós erramos. Já errei milhões de vezes também. A diferença é que, quando eu erro, pago com o meu dinheiro”. O que Guedes teria a dizer da crise de 2008, onde os erros e a irresponsabilidade de instituições financeiras foram pagos com trilhões de dólares diretos do bolso dos contribuintes? É bom realçar que estatizações – um palavrão para economistas ortodoxos – foram realizadas a rodo para salvar o sistema financeiro norte-americano em razão do estouro da bolha especulativa das subprimes.
Para um tecnocrata como Guedes, questões como democracia, soberania nacional e bem-estar social pouco ou nada importam. “Gastos, gastos, gastos!”, saiu exclamando em voz alta no corredor após uma reunião em que apresentou sua proposta de reforma do Estado. Em nossas terras, os números têm melhor sorte que as pessoas, indagou Eduardo Galeano. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento? São questões que só podem ser respondidas por meio da política e dos respectivos canais democráticos para o seu exercício. Guedes sabe disso. Por issose entrincheira do outro lado.

Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RN, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), integrante do Instituto de Pesquisa e Estudos em Justiça e Cidadania (IPEJUC), professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
[1]https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-fiador/
[2]https://exame.abril.com.br/economia/neoliberalismo-nao-entrega-o-que-promete-diz-artigo-do-fmi/
[3]https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41753995
[4]https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/07/portugal-ousou-deixar-a-austeridade-e-tem-grande-renascimento.shtml
[5]https://brasil.elpais.com/brasil/2015/02/18/economia/1424281414_946592.html
[6]https://piaui.folha.uol.com.br/paulo-guedes-contra-o-liberalismo/
[7]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/sumicos-arranham-imagem-de-guedes-dizem-investidores.shtml
[8]https://outraspalavras.net/mundo/america-latina/o-mercado-flerta-com-bolsonaro/
[9]https://www.youtube.com/watch?v=onGWIXaBHTo&t=8s
[10]https://www.bbc.com/portuguese/internacional-37195944
[11]https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39931826

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