sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Do Justificando: Uma anti-ministra para um anti-ministério, por Leo Nader


  "Nem mesmo o mais sagaz dos críticos consegue desconstruir qualificações inexistentes. Sua trajetória, sua retórica e sua associação política lhe qualificam como antagonista de toda forma de direitos humanos, especialmente se definirmos ‘direitos humanos’ de acordo com os tratados internacionais, o direito costumeiro e a interpretação dessas normas por cortes e órgãos especializados dos sistemas ONU e OEA. Não há ‘fachada limpa’ para vandalizar com meus rabiscos. A intenção está ali, escancarada: apertar o botão “auto-destruição” dos direitos humanos enquanto política pública; e implantar no lugar a uniformização dos ditames morais conservadores de um segmento religioso minoritário."



Uma anti-ministra para um anti-ministério
Quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Uma anti-ministra para um anti-ministério


Imagem: arte de Daniel Caseiro. Foto original de Valter Campanato/Ag. Brasil.
Por Leo Nader
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Desde a derrocada do governo de Dilma Rousseff, usei deste espaço para traçar um perfil das mandatárias da pasta de Direitos Humanos no governo de Michel Temer. Frente ao desmonte da política e o viés de retrocesso que impulsionou a queda do governo petista; era necessário desconstruir a fachada respeitável provida por Luislinda Valois e Flávia Piovesan para o que seria, de fato, o desmonte da política. Ambas vindas de trajetória honrável, muito qualificadas e reconhecidas em seus respectivos campos de atuação; a desconstrução da escolha política de ambas as mandatárias necessitava um olhar crítico, técnico, que mesmo oponentes contumazes precisavam empregar com parcimônia. Especialmente no caso de Piovesan, uma das doutrinadoras mais citadas do país; tal crítica precisou de coragem – e talvez um pouco de arrogância. Mesmo hoje se destacando na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (após campanha paga com recursos públicos pelo governo Temer) permanece a mácula da mandatária ter emprestado seu bom nome para assistir, em silêncio obsequioso, o desmonte das políticas de direitos humanos. Certa ou errada, foi uma crítica politizada, com um olhar técnico que respeita o notório saber de quem alveja.
Por mais que tente, não consigo fazer o mesmo com a indicação de Damares Alves para atuar como Ministra do governo Bolsonaro. Nem mesmo o mais sagaz dos críticos consegue desconstruir qualificações inexistentes. Sua trajetória, sua retórica e sua associação política lhe qualificam como antagonista de toda forma de direitos humanos, especialmente se definirmos ‘direitos humanos’ de acordo com os tratados internacionais, o direito costumeiro e a interpretação dessas normas por cortes e órgãos especializados dos sistemas ONU e OEA. Não há ‘fachada limpa’ para vandalizar com meus rabiscos. A intenção está ali, escancarada: apertar o botão “auto-destruição” dos direitos humanos enquanto política pública; e implantar no lugar a uniformização dos ditames morais conservadores de um segmento religioso minoritário.
É importante não desqualificar Damares por seu passado pregresso como pastora evangélica. Desmond Tutu e Martin Luther King também o eram. Mesmo nas denominações atuantes no Brasil, há diversas vozes evangélicas se manifestando pela inclusão, diversidade, estado laico e democracia. É muito sofista tentar desqualifica-la com base em suas crenças teológicas; ou caçoar de suas experiências, sejam espirituais, enquanto mãe, ou enquanto sobrevivente de abusos na infância. A facilidade com que alguns setores da esquerda lançam mão desses recursos para atacá-la reverbera com a guinada histórica que vivemos nas eleições passadas.
A nova ministra deve ser avaliada com base em suas qualificações, história e propostas para o Ministério. E isso basta para formar um prognóstico preocupante da direção que será tomada pelo governo brasileiro nos próximos anos. Por exemplo, algumas de suas declarações em relação ao papel da igreja no Estado, e em relação às religiões de matriz africana, são preocupantes em uma mandatária servindo sob uma constituição laica, responsável por desenvolver políticas de proteção à liberdade de crença e religião, e que terá que responder a uma realidade de ataques violentos e discriminação aos terreiros e religiosos de matriz africana. O mesmo vale em relação à população LGBTI+ que, apesar de declarações conciliatórias da mandatária, teme o passado de Damares articulando propostas ‘pró-família’ que excluem os múltiplos tipos de família existentes na sociedade. Questões como o nome social das pessoas trans; a tentativa de validação dos tratamentos de ‘cura gay’, o enfrentamento aos crimes com motivo LGBTfóbico, e a educação para a diversidade, apontam para uma maré de retrocessos.
Talvez seja na pauta das mulheres onde a implosão seja ainda mais contundente. Magno Malta foi preterido por Bolsonaro, que declarou não ver motivo para indicar um homem para ser suserano da pasta de políticas para mulheres. Com Damares, porém, as mulheres estão mais prejudicadas por essa legitimidade. Adepta da falácia de que “gênero” é uma ideologia controversa e não um fenômeno social observável, a futura ministra deu declarações preocupantes sobre o papel da mulher na sociedade e pareceu culpar a flexibilização dos papeis tradicionais como causa da violência contra a mulher. Teve o disparate de dizer que ao ensinarmos os meninos a tratar “meninas como meninas” resolveríamos o problema da violência. O foco nas mulheres grávidas e no nascituro é pretexto pouco velado para restrição maior das escolhas de planejamento familiar e a dissuasão ao aborto mesmo na minoria dos casos em que é permitido por lei. Novamente, a Ministra e o Ministério agora servem para enterrar o conceito de “direitos humanos das mulheres” tal como concebido internacionalmente, substituindo-o com os ditames morais da ‘bancada evangélica’ que a indicou. Sua declarada preocupação com as mulheres das águas e das florestas é louvável, mas dentro do projeto de uniformidade do papel da mulher enquanto esposa e mãe essa preocupação vai de inócua a nociva.
A atuação da futura ministra na causa das crianças indígenas com deficiência também precisa de um ‘porém’: apesar do fenômeno do infanticídio indígena de fato existir, no caso do Brasil ele é extremamente raro; e, quando detectado, já é tratado como violação de dos direitos da criança tal como definidos internacionalmente.  Está correta em defender que os direitos da criança prevalecem sobre as práticas culturais atentatórias a esses direitos, mas a campanha para erradicar a prática deve ser compatível com a afirmação de direitos e não feita de forma estigmatizante, velando porcamente a intenção de acesso às comunidades para a conversão religiosa.
A campanha feita com testemunhos encenados e exageros dos fatos, além do desvio de finalidade, atraiu críticas, inclusive do Ministério Público, que acionou a justiça contra a atuação das ONGs associadas à nova Ministra. Colocar alguém que dedicou a vida a erradicar as religiões ancestrais indígenas a cargo da FUNAI terá um resultado previsível.
O apoio da Ministra ao projeto “Escola Sem Partido” é igualmente contrário a toda norma e interpretação técnica sobre liberdade de expressão e direito à educação existente no país e no mundo. Seus proponentes não estão querendo evitar  ‘doutrinação’ dos alunos; mas sim garantir a uniformidade do ensino de seus ditames como naturais e incontestáveis. Podemos ensinar cosmologia científica e criacionismo religioso com igual veemência? Há ‘dois lados’ sobre se o Holocausto foi justificado? Pelo contrário, o que se busca é um mecanismo de intimidação de professores, para que não possam abordar questões vitais sobre direitos humanos na sala de aula. Não é de surpreender que o projeto tenha sido criticado pelas agências da ONU relacionadas à criança, à cultura e educação, e aos direitos humanos.
Enfim, trata-se de uma anti-ministra, qualificada apenas como antimatéria feita para aniquilar tudo que a pasta representa. Deu-se um passo além: ao invés de simplesmente cortar o ministério, escolheu-se desgoverná-lo e reverter sua polaridade. Em retrocesso, morro abaixo, com todo o peso da máquina estatal. O anti-ministério a ser criado será uma das ferramentas mais perigosas do governo de Jair Bolsonaro. Eleito após campanha abertamente oposta aos movimentos de igualdade racial, LGBT e feminista, o novo Presidente entra empoderado, desnudando seu viés e escancarando suas intenções. Damares é o estandarte deste descaramento, a carranca na proa desta ofensiva anti-direitos. A sociedade civil e os movimentos sociais vão resistir como puderem; mas têm sua efetividade dilacerada com o resultado das eleições. Resta esperar que as instituições continuem funcionando,  tolhendo os principais abusos contrários ao estado laico e aos direitos e garantias individuais.
Leo Nader é doutorando em Direitos Humanos e Política Global pela Scuola Superiore Sant’anna. Toda opinião manifestada só deve ser atribuída ao autor, e é de responsabilidade única do mesmo.
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