sexta-feira, 12 de julho de 2019

Réquiem para um país que poderia ter dado certo, por Vinícius Canhoto


,,O fim de uma vida, ainda mais quando esta foi longa, permite a nós, que estamos vivos, avaliar o passado, o presente e pensar no porvir. Porém, parece que as mortes mais recentes, ocorridas em meio aos combates cotidianos, impostos pela nova desordem, impõem uma dinâmica de guerra: os vivos morrem, são pouco pranteados e logo sepultados."



A violência da reprodução da vida e a luta contra o proto-fascismo que brota com força em nossa sociedade não têm nos permitido avaliar bem nossas perdas e chorar em paz nossos mortos. O fim de uma vida, ainda mais quando esta foi longa, permite a nós, que estamos vivos, avaliar o passado, o presente e pensar no porvir. Porém, parece que as mortes mais recentes, ocorridas em meio aos combates cotidianos, impostos pela nova desordem, impõem uma dinâmica de guerra: os vivos morrem, são pouco pranteados e logo sepultados. Ainda não avaliamos bem as incalculáveis perdas culturais e civilizatórias das mortes mais recentes.
João Gilberto era o maior artista brasileiro vivo e não só isso. Ele era o último sobrevivente maior de um ideário ou de um sonho de uma noite de verão, que foi a modernização do Brasil. João Gilberto representava um Brasil urbano, à beira-mar, que não era um mero reprodutor agrário exportador. Um Brasil criador, complexo e sofisticado que não precisava gritar para ser ouvido, que descobriu um tom singular e uma cadência peculiar para se expressar. João Gilberto e a bossa nova representavam o Brasil da segunda metade da década de 1950, um país aparentemente ingênuo e sonhador, que podia se encantar com as belezas naturais e com o amor. Não morreu apenas o gênio musical, morreu também um ideal cultural e civilizatório. 
Paulo Henrique Amorim morreu como o mais popular jornalista digital e de esquerda. E isso deve ser avaliado com calma e separadamente. Era um septuagenário que soube, como ninguém, dominar de forma individual as mudanças tecnológicas no campo da comunicação. Migrou com desenvoltura do jornal para a televisão, da televisão para a internet escrita e, por fim, para a internet audiovisual. Era um comunicador nato: criador de bordões, formulador de manchetes e personagens caricaturais, elaborador de populares sínteses políticas. Não bastassem essas virtudes técnicas, era um nacionalista de esquerda ou, como ele gostava de se definir, um trabalhista. Foi um pioneiro da mídia progressista. O site Conversa Afiada inspirou e encorajou muitos jornalistas a desenvolverem seus próprios trabalhos autônomos, contrapostos à mídia tradicional, a publicarem vozes controversas e dissonantes em um contra-discurso crítico às chamadas narrativas da imprensa corporativa, a mostrarem o caráter farsesco dos grandes meios jornalísticos, revelando o caráter manipulador e de classe destas instituições. Mais do que nunca conhecemos cada vez melhor (e sem ingenuidade de imparcialidade) a imprensa burguesa, popularizada por PHA na sigla PIG (Partido da Imprensa Golpista). 
Estas duas perdas culturais e civilizatórias, que tinham tão pouco em comum entre si, (talvez o temperamento contraditório, o talento e a dedicação ao ofício, a paixão pelo belo do Rio de Janeiro), eram vozes e ecos de um velho Brasil, contraditoriamente novo e moderno. Um Brasil jovem que podia ter sonhos e esperanças, um país que parecia que iria dar certo. Não sobreviveram ao Brasil atual, retrógrado, envelhecido, conservador e reacionário. Um Brasil que busca voltar a ser uma mera colônia agro-exportadora e escravocrata, que reproduz os valores da monocultura do boi, da bala e da bíblia, que é governado por uma burguesia burra, da rapina e do recalque, que de tão colonizada e inculta acabou por se reencontrar e reconhecer a si mesma no espelho na hedionda face de Bolsonaro. 
Vinícius Canhoto: escritor, doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo.

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