terça-feira, 23 de julho de 2019

Wilson Rocha Fernando Assis, procurador da República, escreve sobre Fascismo e a Lava Jato




“Chamo a atenção para o flerte da Lava Jato com uma estratégia fascista: promessa revolucionária, mobilização das massas, confusão entre Estado e sociedade”
Do Canal de estudos Justificando:

Wilson Rocha Assis: Há fascismo na Lava Jato?

Terça-feira, 12 de março de 2019
Wilson Rocha Assis: Há fascismo na Lava Jato?
Imagem: Procuradores da Operação Lava Jato.
Por Wilson Rocha Fernandes Assis, membro do Ministério Público Federal

A pergunta é grave, porque lança um anátema sobre a mais significativa ação do Ministério Público no combate à corrupção. Se a resposta é afirmativa e parte de um membro da instituição, o caso é gravíssimo, porque se atribui sempre algum nível de credibilidade à fala do insider. E a gravidade do libelo poderá lançá-lo a um ostracismo impiedoso. Feitas as contas, vamos à tarefa.
O fascismo é um fenômeno complexo, que sofreu os males de sucessivas apropriações, filiações, mutações e desdobramentos. Embora seja a Itália o berço do fascismo, foi a ascensão de Hitler na Alemanha que fez do fascismo um fenômeno mundial. Não havia racismo no arco-íris confuso de ideias políticas que Mussolini mobilizou. E não era possível antever as câmaras de gás em sua fala carismática. Mas a filiação de Hitler ao fascismo é um consenso histórico, responsável talvez pela carga semântica marcadamente negativa que gravita em torno da expressão.
Os múltiplos fascismos que pulularam no mundo tornam difícil a tarefa de discernir um ideário comum, embora, com certa facilidade, pudéssemos apontar, na década de 1930, os regimes de inspiração fascista. Não se tratava de uma forma de organização do estado, tampouco de uma teoria política. Era retoricamente revolucionário porque prometia uma radical transformação da sociedade, embora conservador em sua promessa de assegurar às classes altas e médias a manutenção da ordem e da moral tradicionais. Ensina Hobsbawm, em Era dos extremos, que “os fascistas eram os revolucionários da contra-revolução: em sua retórica, em seu apelo aos que se consideravam vítimas das sociedade, em sua convocação a uma total transformação da sociedade”; “denunciavam a emancipação liberal […] e desconfiavam da corrosiva influência da cultura moderna, sobretudo das artes modernistas” (p. 121).
Portanto, embora se trate de um fenômeno datado historicamente – em sentido estrito, o fascismo refere-se ao regime político inaugurado por Mussolini na Itália dos anos 1920 – há desdobramentos posteriores que mantém um núcleo semântico essencial, caracterizado pelo nacionalismo, pelo antiliberalismo e pelo anticomunismo. Na prática, expressava-se como um movimento de massas, articulado em torno de uma liderança política carismática que dispensava a institucionalidade política representativa. Retenho aqui a imagem essencial do fascismo: o machado envolto por um feixe de varas. Uma imagem simplificadora e unificadora da sociedade, direta e firmemente atada ao Estado, sem corpos intermediários ou subsidiários, inteiramente mobilizada ou instrumentalizada como ferramenta de poder.
As corporações tradicionais ralharam diante da ascensão fascista, exatamente pela dispensa de sua intermediação na construção do poder estatal. Registra Hobsbawm que “o único grupo que realmente lançou uma revolta contra Hitler – e foi consequentemente dizimado – foi o velho exército prussiano aristocrático” (p. 131). Sob o nazismo, o sistema de justiça adaptou-se à nova realidade política, substituindo o brocardo “nullum crimen sine lege” pela assustadora fórmula “nullum crimen sine poena”, sinalizando uma expansão do punitivismo estatal, em prejuízo dos princípios liberais clássicos.
Dito isso, a aproximação da Lava Jato com o fascismo certamente guarda dificuldades. Além do distanciamento histórico, há na atualidade um conjunto de atores e instituições inédito. Contextualizando, no limiar do século XXI, o neoliberalismo reformulou a administração pública impondo-lhe métricas de eficiência com pouca permeabilidade democrática. O ativismo do poder judiciário foi fomentado e, depois, aperfeiçoado em complexos processos de planejamento estratégico. A autonomização do judiciário foi tolerada na medida em que percebida como um instrumento de eficientização do próprio estado. Novos tempos, certamente.
A crise capitalista iniciada em 2008 fez crescer a insatisfação social e estimulou novas formas de ação política, com forte questionamento das instâncias tradicionais de representação. Novas formas de mediação social desafiaram os mecanismos tradicionais de intermediação política. Entra aqui o fenômeno radicalmente novo das redes sociais. No sistema de justiça, o mural da repartição, o edital, as portarias tornaram-se anacrônicos diante da velocidade e dos baixos custos das redes sociais. Para o Ministério Público, moldado constitucionalmente para a defesa da ordem democrática, tornou-se sedutor atravessar o caminho das representações tradicionais – partidos políticos e parlamento, sobretudo – para construir diretamente com o corpo social novos consensos democráticos. A burocracia bem formada, situada no topo da Administração, não resistiu à tentação e foi às ruas.
O capital institucional acumulado em décadas de atuação comprometida com a promoção de direitos não dispensou a instituição de fazer promessas revolucionárias para mobilizar as massas, a principal delas, o fim da corrupção. A promessa – efetivamente revolucionária – arregimentou setores heterogêneos da sociedade e o desiderato cumpriu-se com o fortalecimento dos setores da instituição encarregados da persecução penal e do combate à corrupção.
Até aqui, poder-se-ia discutir o acerto da estratégia, a efetividade dos instrumentos propostos ou os limites a serem observados pelo Ministério Público em sua interlocução direta com a sociedade. Mas não haveria que se falar em fascismo. A Lava Jato, embora ensaiasse, não havia ainda lançado um esforço sistemático de mobilização popular. A virada ocorre com o projeto das “Dez medidas contra a corrupção”. Tratava-se de um projeto de lei redigido nos gabinetes do Ministério Público Federal, mas apresentado à sociedade como um projeto de lei de iniciativa popular.
Lançada pela Lava Jato, a iniciativa é encampada pela cúpula da instituição e corre o Brasil financiada com recursos do Ministério Público Federal. Servidores públicos receberam incentivos funcionais para colher assinaturas em diversos espaços sociais. Procuradores da República viajaram pelo país divulgando o projeto de lei. Projeto de lei apresentado como de iniciativa popular, mas elaborado por funcionários públicos, divulgado em campanhas oficiais de marketing, com coleta de assinaturas financiada com recursos públicos. O paradoxo era evidente, mas também era conveniente. Tratá-lo como um projeto de iniciativa popular amarfanhava legitimidade à proposta e incrementava o capital institucional em meio a uma cruzada contra poderosos. Havia guerreiras e guerreiros sinceramente devotados na infantaria. Mas não houve cálculo estratégico. O Congresso Nacional acusou a manobra.
Não teço comentários sobre o conteúdo da proposta, apenas chamo a atenção para o flerte com uma estratégia fascista: a promessa revolucionária, a mobilização das massas, o apagamento da distinção formal e essencial entre Estado e sociedade. Não faltou o personalismo de um herói, o apelo aos valores tradicionais, o medo da classe média frente à crise econômica, os escândalos de corrupção desencadeados por um governo de esquerda. O avanço da operação policial-judicial proporcionou méritos concretos no combate à criminalidade, comparáveis aos de Mussolini. Ensina Hobsbawm que o fascismo foi “o único regime italiano a conseguir suprimir a Máfia italiana e a Camorra napolitana” (p. 131). A promessa da Lava Jato, para além das vicissitudes democráticas e contratempos históricos, estava lançada: doravante, não haverá crime sem pena.
No caso mais recente da fundação anunciada a partir do acordo dos membros da Lava Jato com a Petrobrás, duas questões chamam a atenção. Primeiro, a criatividade institucional. Segundo, a justificativa de que a nova entidade será gerida pela sociedade, em benefício da sociedade.
Há perigosas contradições no desenho institucional proposto. O item 2.4.1, (i), do acordo, prevê um desenho institucional que leve em consideração a autonomia de sua gestão em relação a grupos ou pessoas ligadas à política partidária. O item 2.4.6, por sua vez, reforça o fechamento da fundação ao modelo de representatividade democrática prescrito pela Constituição Federal quando estabelece que “não poderá atuar na fundação, em qualquer função, pessoa filiada a partido político ou que tenha sido filiada nos último 5 (cinco) anos, podendo o estatuto ampliar esta restrição”.
Já o item 2.4.1, (ii), pretende garantir a legitimidade da proposta por meio da pluralidade institucional de sua gestão, da transparência quanto ao critérios para tomada de decisões e pela ampla consulta e participação social.
Ora, os itens 2.4.1, (i) e 2.4.6 colidem frontalmente com o item 2.4.1, (ii), quando excluem da pluralidade institucional pretendida para a gestão da nova fundação grupos ou pessoas ligadas a partidos políticos. Vale lembrar que os partidos políticos destinam-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os interesses definidos na Constituição Federal, conforme artigo 1o., da Lei n. 9.096/95. Atento às entrelinhas do Acordo, vê-se que Lava Jato não apenas exclui os partidos políticos, agremiações centrais da vida democrática brasileira, mas pretende exatamente criar legitimidade em razão desta exclusão. O equívoco é tremendo.
Trata-se novamente de um flerte com o fascismo? Aproximações são possíveis, na linha do já exposto em relação ao projeto de lei iniciado pelo MPF. Justifico. O princípio da legalidade é provavelmente a maior contribuição do liberalismo clássico à democracia moderna. Ao prescrever a lei como meio e limite da ação estatal, o princípio da legalidade liberta o indivíduo do arbítrio, do capricho e das boas intenções – às vezes pouco refletidas – do gestor público. Por regra de cautela e por amor à democracia, é necessário cautela ao inovar. Quando a inovação surge sem esteio na lei, labora para afastar-se de controles institucionais democráticos e, ainda por cima, tem um forte componente de fortalecimento corporativo, acende-se a luz amarela.
A soma de recursos públicos envolvidos é vultosíssima e sua destinação a uma fundação privada exorbita as prescrições legais. A medida viola o princípio da legalidade e, portanto, os pressupostos teóricos do liberalismo político clássico. Doutro lado, falar em nome da sociedade, do povo ou da nação é sempre um ato solene, cercado de formalidades materiais e formais. Pretender a realização do princípio democrático por meio de referências pouco claras a “organizações da sociedade civil” não é suficiente, sobretudo quando evidenciada a atuação destas organizações subordinada aos poderes da corporação, no caso, do Ministério Público.
Bom, mas isso é fascismo? Pode-se dizer que houve no fascismo um grande esforço para dar a volta nos mecanismos formais de representação democrática, consolidando poderes que exorbitavam os limites da lei e feriam a democracia, em prol de transformações favoráveis no tecido social. Tudo foi feito em favor da sociedade. As vicissitudes e contratempos do regime democrático foram preteridas em prol da eficiência das instituições, segundo a visão privilegiada de um chefe. Dizia-se na Itália que “Mussolini fez os trens rodarem no horário”.
Por fim, para bem entender como o fascismo pode imiscuir-se em projetos inovadores de engenharia social, vale dizer que ele não é uma ideologia. Segundo Hobsbawm, “a teoria não era o ponto forte de movimentos dedicados às inadequações da razão e do racionalismo e à superioridade do instinto e da vontade”. A suposta banalização de seu uso não constitui um erro teórico, mas é expressão de sua natureza imprecisa e difusa. A identificação de suas características em fenômenos políticos contemporâneos demonstra a não superação da realidade histórica que marcou seu nascimento. Hoje, como na década de 1930, crises econômicas que ameaçam o status quo de grupos estabelecidos fazem emergir movimentos ao mesmo tempo reformistas e regressivos, que desafiam a democracia liberal.
A autocontenção é a maior virtude de quem exerce parcela do poder soberano. O fascismo, em suas múltiplas aparições, manifesta-se como estratégias inovadoras de expansão do poder, verdadeiramente criativas, capazes de contornar os meios tradicionais e, às vezes, precários pelos quais se manifesta a democracia liberal, em prol da aceleração do tempo histórico. Impelidos pelo clamor popular, pessoas e instituições podem contribuir com o avanço do fascismo das mais variadas formas. O indiferentismo técnico é um dos instrumentos mais trágicos de ação do fascismo, porque cega o indivíduo acerca das consequências mediatas ou imediatas de suas ações, dispensando-o de sua responsabilidade ética perante os seus semelhantes.
Ao perguntar se há fascismo na Lava Jato, o que se pretende é refletir sobre o processo histórico mais amplo do qual o Ministério Público Federal tornou-se protagonista. No fascismo histórico, havia boas intenções no esforço de eficientização dos processos sociais. Pode haver boas intenções na autonomização da Lava Jato e em sua institucionalização na forma de uma fundação privada. Mas há claro desrespeito às regras constitucionais da gestão da vida democrática. O fascismo é plenamente moderno ao propor a superação das velhas regras do jogo político democrático pela velocidade da relação direta e pessoal de um líder ou uma instituição com “a sociedade”. Sem paramentos, partidos políticos ou liturgia.
Havia fascismo antes das câmaras de gás.
Wilson Rocha Fernandes Assis é Procurador da República em Goiás
                                                                                             
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