terça-feira, 22 de julho de 2025

O adereço final: Bolsonaro e a tragédia brasileira, por Lindener Pareto, colunista do ICL

 

A tornozeleira não é apenas um dispositivo de monitoramento, ela é um epitáfio em tempo real, um lembrete físico de uma jornada política que se moveu do pódio ao pátio da Polícia Federal, do poder ilimitado à vigilância constante

Lindener Pareto
Lindener Pareto

Professor e Historiador. Mestre e Doutor pela USP. Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação de História, Cultura e Arte nos canais do ICL. Especialista em desmascarar narrativas históricas convenientes e incomodar quem prefere a versão açucarada e falaciosa dos fatos.

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O adereço final: Bolsonaro e a tragédia brasileira




Cá entre nós, leitoras, leitores, a História, essa senhora caprichosa e irônica, tem um senso de humor peculiar. Ela, que adora um bom drama e uma reviravolta inesperada, parece ter orquestrado mais um ato no grandioso e, por vezes, circense palco da vida política brasileira. No dia 18 de julho de 2025, um novo acessório entrou em cena, desta feita não nas glamourosas passarelas da moda, mas no tornozelo de um dos personagens mais controversos de nossa recente e trágica memória: a tornozeleira eletrônica de Jair Bolsonaro.

Um artefato simples, metálico e discreto, mas que carrega consigo o peso de uma narrativa complexa, onde o cômico e o trágico se entrelaçam em uma dança macabra. A presença de Bolsonaro, mesmo fora da cadeira presidencial, permanece um fenômeno polarizador, um eco persistente que ressoa nas conversas de boteco e nos debates acadêmicos. Ele é um daqueles “fósseis” que insistem em resistir à indignação, desafiando a linearidade de qualquer narrativa histórica conveniente.

Esta mais recente medida judicial não é apenas um fato jurídico, ela é, antes de tudo, um símbolo potente. Sintetiza as dimensões da farsa e da tragédia que marcam sua passagem pela História do Brasil. A tornozeleira, nesse sentido, não é apenas um dispositivo de monitoramento, ela é um epitáfio em tempo real, um lembrete físico de uma jornada política que se moveu do pódio ao pátio da Polícia Federal, do poder ilimitado à vigilância constante.

Diante de tal cenário, a reação de Bolsonaro foi imediata e previsível: ele se declarou “apanhado de surpresa” e classificou a medida como uma “suprema humilhação” (quantos nomes de filmes e livros, não?) negando qualquer plano de fuga. Seus aliados no Congresso Nacional, por sua vez, ecoaram a indignação, denunciando as ações como uma “perseguição política disfarçada de ação judicial” e um atentado à oposição, argumentando a ausência de provas conclusivas para justificar tais restrições.

Se a tornozeleira representa o lado trágico do enredo, a “comédia bolsonarista” é um gênero à parte, com roteiro próprio, muitas vezes improvisado e sempre polêmico. Bolsonaro construiu sua imagem pública, em grande parte, sobre um suposto “estilo autêntico”, permeado por declarações controversas, “piadas” de gosto duvidoso e gafes que, para seus apoiadores, eram sinais de espontaneidade e coragem, enquanto para críticos, revelavam preconceito e desrespeito.

Quem não se lembra da “gripezinha” em meio a uma pandemia que ceifava vidas aos milhares, ou do “não sou coveiro”? E as pérolas direcionadas aos próprios ministros (tão nefastos quanto ele), como o “vai fazer um troca-troca com o Sales?”, ou a piada de mau gosto com um homem de ascendência asiática no aeroporto de Manaus, questionando o tamanho de seu órgão sexual? Já pensou em um analista lacaniano diante do Jair?

O problema é que o divã de Jair é o povo brasileiro. O fato é que tais momentos, que variavam entre o deboche e o absurdo, tornaram-se virais, gerando audiência e polêmica. Eles eram, em sua essência, uma forma de comunicação política que, sob a máscara de um humor rasteiro, buscava legitimar discursos violentos e trivializar temas sérios.

Lembremos do “Popcorn and ice cream sellers sentenced for coup attempt in Brazil”, proferido em inglês macarrônico, que virou meme e motivo de chacota, mas que, no fundo, buscava descredibilizar a justiça com uma dose de humor involuntário. Essa “comédia” não era inofensiva. Ela operava na fronteira tênue entre o risível e o perigoso, normalizando o que antes seria inaceitável. O riso, nesse contexto, servia como um véu, uma cortina de fumaça que disfarçava a seriedade das intenções e o potencial destrutivo das palavras. A pseudo-ironia na “comédia bolsonarista” tornava-se um escudo para a irresponsabilidade e um vetor para a polarização. A palavra, a linguagem bolsonarista é orientada pela violência brutal e pela morte como premissa.

Mas se há comédia, há também a tragédia, e esta é a face mais sombria e dolorosa da saga bolsonarista. As consequências de sua trajetória política vão muito além das piadas e dos memes, deixando cicatrizes profundas na sociedade brasileira e em suas instituições. Seu autoritarismo, os constantes ataques à imprensa, a proliferação de notícias falsas e o ataque sistemático às instituições democráticas representaram (representam) um risco real de “danos irreparáveis” à sociedade brasileira.

Lembremos que o seu governo foi marcado por um negacionismo histórico delirante, com a tentativa de redimir e, sobretudo, ostentar as brutalidades da Ditadura Militar. Essa postura, de apologia à tortura e à violência, como sua infame declaração de que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”, não era apenas uma provocação, mas uma tentativa de reescrever o passado para justificar o presente e o futuro.

No campo das políticas públicas, o impacto foi devastador. A pandemia de covid-19 expôs a face mais trágica de sua administração, com a minimização da gravidade da doença, o questionamento das medidas de isolamento social e a promoção de tratamentos sem comprovação científica, como a cloroquina. Tais atitudes geraram um ambiente de desconfiança nas instituições científicas e de saúde pública, agravando a crise sanitária e contribuindo para a trágica marca de mortes que assombra o país e o mundo.

A tragédia bolsonarista, portanto, reside na erosão de qualquer consenso democrático, na instrumentalização da desinformação para polarizar a sociedade e na demolição de conquistas e direitos básicos. É a concretização da “maldade” que, como na “Divina Comédia” de Dante Alighieri, se manifesta ora através da violência, ora através da fraude, praticadas contra aqueles que nele confiaram ou contra estranhos que dele suspeitavam. A tornozeleira, nesse contexto, não é apenas um instrumento de controle, é um símbolo da inevitabilidade das consequências, um lembrete físico de que, na História, a farsa pode até entreter por um tempo, mas a tragédia sempre cobra seu preço.

Bolsonaro, com sua tornozeleira e seu legado, não é apenas um indivíduo, ele é, em muitos aspectos, um sintoma. Um sintoma de profundas divisões sociais, de uma descrença na “política tradicional” e de uma busca por respostas simplistas para problemas complexos. Sua ascensão e a persistência de seu “fenômeno” escancaram fraturas na sociedade brasileira que antecedem sua figura e que, provavelmente, persistirão após seu declínio. Ele foi, e ainda é, um espelho distorcido de anseios e frustrações, um catalisador de sentimentos que já fervilhavam.

O desafio que se impõe à História, e a nós, seus observadores e participantes, é o de conciliar a comédia e a tragédia que ele representa. Como registrar para as futuras gerações a figura de um presidente que fazia piadas com a morte e, ao mesmo tempo, presidia um governo com consequências tão graves para a democracia e a vida de milhões? Como separar o bufão do algoz, o risível do lamentável? A tarefa não é simples, e talvez não caiba a nós, no calor do momento, dar a palavra final.

O que fica claro é que o capítulo Bolsonaro, com sua tornozeleira como ponto final (ou talvez um ponto e vírgula), é um convite à reflexão sobre a resiliência das instituições, a fragilidade da verdade em tempos de desinformação e a importância de uma memória histórica que não se deixe seduzir pela conveniência ou pela simplificação. O Brasil, esse palco-mosaico de infinitas peças, segue em frente, carregando as tristes marcas de um passado recente que, entre risos nervosos e lágrimas amargas, nos ensina, a duras penas, que a História –  essa velha mestra – pode até não ensinar a viver, mas oferece perspectiva crítica, não perdoando a ignorância e banalidade do mal. E a tornozeleira é apenas mais um adereço nesse espetáculo contínuo, um lembrete de que, mesmo os maiores palhaços assassinos, um dia, precisam acertar as contas com o picadeiro.

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