quarta-feira, 29 de janeiro de 2025
Trump e a doença do colonizador ressentido
Vasto estudo confirma: pela primeira vez em 600 anos, mundo está deixando de ser eurocêntrico. No Sul global, esboçam-se novas relações e projetos. Quais são. Por que incomodam tanto. Que tipo de resposta gesta-se na Casa Branca
Publicado 23/01/2025 às 18:50 - Atualizado 23/01/2025 às 18:58

Um dossiê do Instituto Tricontinental
MAIS:
O texto a seguir é o um trecho do dossiê
Hiperimperialismo: uma nova etapa decadente e perigosa
O trabalho pode ser lido, na íntegra, aqui.
PARTE V: Mudanças na ordem mundial
Um deslocamento da base econômica para o Sul

Enquanto os países do Norte Global vêm enfrentando um declínio prolongado do crescimento econômico, os países do Sul Global, sobretudo na Ásia, apresentam uma trajetória de crescimento econômico mais alta nos últimos trinta anos. Como pode-se observar na Figura 39, no final da Guerra Fria, em 1993, o Norte Global respondia por 57,2% do PIB global (PPC), enquanto o Sul Global respondia por apenas 42,8%. Trinta anos depois, essas proporções se inverteram definitivamente: a participação do Sul Global chegou a 59,4%, e o Norte Global detém 40,6%.

O G7 (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França, Alemanha, Itália e Japão) é o núcleo econômico do bloco do Norte Global. Em 1993, esses sete países representavam 45,4% da economia global. Enquanto isso, as economias mais importantes do Sul Global, que mais tarde viriam a ser conhecidas como Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), representavam apenas 16,7% da economia global naquele ano. Entre eles, a Rússia tinha acabado de emergir após a dissolução da União Soviética, e a China estava aprofundando suas reformas econômicas e estabelecendo uma economia socialista de mercado. Na época, nem a Rússia nem a China eram concorrentes do G7. Trinta anos depois, os países do Brics já representavam 31,5% da economia global, tendo ultrapassado o G7 (30,3%), conforme mostrado na Figura 40.

Em agosto de 2023, o Brics se expandiu com o convite para a inclusão de seis países: Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Irã e Argentina (embora a Argentina tenha temporariamente recusado o convite). O Brics 10 (sem a Argentina) acrescentou quase 4% à participação do Brics no PIB mundial (PPC), conforme mostrado na Figura 41.

Nos últimos trinta anos, os Estados Unidos, líder absoluto do Norte Global, viu sua participação na economia mundial cair lentamente em termos de PPC, de 19,7% em 1993 para 15,5% em 2022. Enquanto isso, no Sul Global, a rápida ascensão da China tem sido a variável mais notável. Em 1993, a China representava apenas 5% da economia mundial (Figura 42); já em 2016, sua economia ultrapassou a dos Estados Unidos em termos de PPC e, em 2022, sua participação na economia mundial chegou a 18,4%. Isso marca a primeira vez, em mais de 600 anos, que um país não dominado por brancos rompeu economicamente a hegemonia dos países imperialistas brancos. Essa realidade econômica fez com que os EUA começassem a tentar suprimir com urgência a ascensão da China.

Entretanto, seria um equívoco considerar a China como a única fonte de crescimento do Sul Global. Mesmo sem o país, as economias do Sul Global já haviam ultrapassado as do Norte Global em 2022, sendo suas respectivas participações na economia global de 41% e 40,6% (Figura 43). O desenvolvimento econômico geral do Sul Global proporcionou objetivamente a capacidade de buscar uma ordem internacional mais justa, o que é contrário aos desejos do bloco imperialista do Norte Global.

Identificamos todos os 43 países cuja participação no PIB mundial (PPC) chega a 41,1% (Figura 44) e que fazem parte de uma ou mais das três novas organizações internacionais que não são controladas por imperialistas: Brics 10 (fundado em 2009, ampliado em 2010 e 2023), Organização para Cooperação de Xangai (fundada como “Cinco de Xangai” em 1996, ampliada em 2001, 2017 e 2023) e o Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas (fundado em 2021). A lista completa é apresentada em seção posterior.

A Figura 45 mostra a taxa média de crescimento anual do PIB (PPC) per capita registrada na última década pelas 21 maiores economias do Sul Global e pelos países do G7. A taxa de crescimento da China (5,8%) continua a liderar entre os países selecionados. A taxa de crescimento da Ásia é geralmente mais alta do que a de outros países do Sul Global. Os cinco países seguintes com as maiores taxas de crescimento são Bangladesh (5,3%), Vietnã (4,9%), Índia (4,6%), Filipinas (3,3%) e Indonésia (3,1%). Com exceção dos Estados Unidos, o restante dos países do G7 tem uma taxa média de crescimento per capita inferior a 1%. Lamentavelmente, as maiores economias da África e da América Latina tiveram um crescimento per capita negativo: Nigéria e África do Sul, com -0,4%, e Brasil e Argentina, com 0% e -0,7%, respectivamente.
Obviamente, reconhecemos que as próprias taxas de crescimento podem mascarar as intensas lutas de classe travadas nos países, onde a parcela do crescimento não é de modo algum distribuída de forma equitativa entre capital e trabalho. Entretanto, seria um erro ignorar as taxas de crescimento e o que suas linhas de tendência descrevem.
Uma das mudanças mais significativas ocorrida nos últimos 20 anos na economia mundial foi uma guinada radical na geografia da produção industrial mundial.
O Banco Mundial divulga a porcentagem da indústria no PIB utilizando os preços correntes e as taxas de câmbio correntes, o que este estudo chama de método da Taxa de Câmbio Corrente (TCC). Atualmente, não temos conhecimento de nenhuma divulgação das porcentagens da indústria calculando-se o PIB (PPC).


As Figuras 46 e 47 mostram as mudanças na porcentagem do valor adicionado da indústria no PIB, tanto em termos de TCC quanto de PPC, nos últimos 18 anos. É provável que os números da participação do valor adicionado mundial da indústria estejam em algum ponto entre a TCC e a PPC. Os gráficos subsequentes desta série apresentam apenas o método PPC e têm as mesmas qualificações da primeira série.1
O que vemos é que há, de fato, uma mudança na base da economia, na qual o Sul Global abriga a parcela majoritária. Apesar de muitas previsões acerca de uma nova sociedade pós-industrial, nenhum país importante alcançou a modernização sem industrialização.

A participação do Brics 10 no valor adicionado da indústria mundial representa, em 2022, o dobro da participação do G7 (Figura 48).

Os resultados mostram o seguinte em relação ao valor adicionado da indústria como porcentagem do PIB mundial (PPC):
- A China é o principal país industrial do mundo, com uma participação de 25,7% no valor adicionado, enquanto os EUA detêm apenas 9,7%.
- O Sul Global tem uma participação de 69,4%, enquanto o Norte Global tem uma participação de 30,6%.
- O Brics 10 tem uma participação de 44% e supera o G7.
- A participação de Japão, Alemanha, França e Reino Unido também está diminuindo, enquanto a da Índia está aumentando (Figura 49).
Utilizamos a porcentagem do Banco Mundial para a indústria multiplicada pelo PIB anual (PPC) de cada país, em cada ano, para obter o valor adicionado da indústria com base em cada país. Em seguida, utilizamos esses números para calcular a porcentagem do valor adicionado total da indústria mundial, por país e categoria de grupo de países. Há algumas limitações e questões complexas relacionadas a essa metodologia.
Alguns economistas tentaram minimizar essa mudança. Há argumentos de que, com os monopólios do dólar estadunidense e a propriedade de grandes corporações multinacionais, os números do PIB exageram a mudança. No mínimo, não se pode dizer que a China tenha toda a sua produção sob o controle dos EUA. Mesmo na Índia, é um erro subestimar a importância de uma grande e crescente burguesia nacional (embora grande parte dela seja politicamente reacionária). A transferência da produção industrial para o Sul Global só poderia ter ocorrido com melhorias maciças em sua infraestrutura.
Ao se despedir do presidente russo Vladimir Putin durante sua visita de Estado em março de 2023, o presidente chinês Xi Jinping afirmou: “Neste momento, há mudanças – como não víamos há 100 anos – e somos nós que estamos conduzindo essas mudanças juntos”.2 A Eurásia é agora o palco central para determinar o futuro do próximo período da existência humana.
Estratégia dos EUA para coibir o crescimento econômico e a influência da China
Em 2007, Vladimir Putin proferiu um famoso discurso em Munique, criticando o domínio monopolista dos EUA e “o hiperuso quase incontido da força – força militar – nas relações internacionais, força que está mergulhando o mundo em um abismo de conflitos permanentes”.3
No mesmo ano, foi criado o Centro para uma Nova Segurança Americana (Center for New American Security – CNAS). Em 2009, telegramas secretos dos EUA para Washington, revelados pelo Wikileaks, afirmavam:
Xi sabe o quanto a China é corrupta e sente repulsa pela ampla comercialização da sociedade chinesa e seus consequentes novos-ricos, pela corrupção entre funcionários do governo, pela perda de valores, dignidade e respeito próprio, além dos “males morais” como drogas e prostituição… Quando Xi assumir o comando do partido, ele poderá tentar resolver esses males de forma agressiva, talvez às custas da nova classe endinheirada.4
Os alarmes estavam tocando em Langley e Foggy Bottom. O sonho do Ocidente de ver surgir um “Gorbatchov chinês” foi destruído em 2012 e ficou nítido que não havia derrota iminente à vista para uma China que ascendia economicamente. Assim, a estratégia de reorientação para a Ásia começou a integrar seus aliados para conter o país. A então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, declarou publicamente que “o século XXI será o século do Pacífico dos Estados Unidos”.5 Em contrapartida, Xi Jinping disse ao presidente dos EUA, Barack Obama, que “o Oceano Pacífico é grande o suficiente para acomodar o desenvolvimento tanto da China quanto dos Estados Unidos”.6
Em 2016, o PIB da China, calculado pela paridade do poder de compra, já havia ultrapassado o dos Estados Unidos. Em 2020, o Centro de Pesquisa Econômica e Empresarial (Centre for Economics and Business Research) previu que, em 2028, o PIB da China, medido em dólares estadunidenses, ultrapassaria o dos EUA, uma previsão que se tornou uma “barreira demoníaca”.7 As autoridades estadunidenses definiram a China reiteradamente como a ameaça estratégica mais significativa que o país e o Norte Global enfrentam.
O declínio relativo do poder dos EUA, a ascensão da China socialista e o crescimento econômico do Sul Global são os principais motivos por trás da subordinação ativa e da subsequente integração, pelos EUA, do restante dos países imperialistas. Isso levou a um bloco militar, político e econômico completamente sob o controle dos EUA. Em 1998, o ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, alertou: “O cenário mais perigoso seria uma grande coalizão entre China, Rússia e talvez Irã… não por um amor repentino entre eles, mas por uma oposição compartilhada à potência predominante (os EUA)”.8
Formado por uma combinação de neoconservadores e liberais defensores do intervencionismo, o CNAS gerou um núcleo de quadros das elites políticas dos EUA – dos dois partidos – que se concentrou no desenvolvimento de uma nova estratégia geopolítica para os EUA. Em 2021, ignorando o aviso de Brzezinski, o Centro começou a promover publicamente a preparação para guerras simultâneas. Entre as figuras importantes do CNAS estão o secretário de Estado Antony Blinken, o vice-secretário de Estado Kurt Campbell e a ex-subsecretária de Políticas de Defesa Michèle Flournoy. Ex-funcionários e consultores do CNAS têm permeado os órgãos estratégicos do Estado, inclusive o Conselho de Segurança Nacional.
O Conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, embora não seja membro do CNAS, agora desempenha um papel dominante na presidência e segue a mesma estratégia internacional. Em abril de 2023, Sullivan fez um discurso intitulado “Renovando a liderança econômica americana” no Brookings Institute.9 Esse discurso foi relevante por três motivos. Primeiro, é muito incomum que um discurso tão importante sobre a economia dos EUA seja proferido por um Conselheiro de Segurança Nacional. Historicamente, esses conselheiros, como Henry Kissinger, restringem-se ao âmbito da segurança nacional, da geopolítica e dos assuntos militares. Em segundo lugar, o discurso de Sullivan buscou criar um “novo Consenso de Washington” para restabelecer a hegemonia econômica dos EUA. Terceiro, Sullivan reconheceu a profundidade da crise estrutural dos EUA, incluindo sua estagnação econômica.
Esse plano econômico é necessário para dar suporte à expansão militar. Em julho de 2023, os EUA propuseram um projeto de lei para acrescentar US$ 345 milhões em ajuda militar a Taiwan.10 De Tel Aviv a Kiev e Taipei, os EUA estão intensificando operações militares até as portas da Eurásia.
As guerras frias, necessariamente associadas a conflitos entre potências nucleares, são sempre perigosas. Em 1988, Edward Herman e Noam Chomsky publicaram A manipulação do público: Política e poder econômico no uso da mídia, no qual criticavam o “modelo de propaganda” utilizado pela mídia corporativa dos EUA, muitas vezes em parceria com o Estado. Os autores já apontavam isso muito antes de esse sistema poder se valer das novas ferramentas tecnológicas de vigilância e comunicação direcionada que caracterizam a era digital. Graças às denúncias de Edward Snowden, o mundo pôde vislumbrar a vasta expansão do controle dos EUA sobre todas as comunicações e a forma como integraram todas as plataformas do monopólio tecnológico de TI dos EUA em adjuntos da infraestrutura de segurança nacional dos EUA.
“Colete tudo” foi como um ex-oficial sênior de inteligência descreveu a abordagem do ex-diretor da Agência de Segurança Nacional, Keith Alexander, com relação à coleta de dados. Todos os e-mails, todas as chamadas telefônicas e mensagens de texto de todos os tipos (incluindo os do WhatsApp, Telegram e Signal), cada toque de tecla e cada URL, tudo da grande maioria da população mundial é capturado (fora da China, da Rússia e de alguns outros países). Esses dados são armazenados em imensas redes de discos rígidos em locais como Bluffdale, no estado de Utah. Os EUA criaram uma rede global capaz de captar e administrar quase todos os pacotes de dados de todos os cabos submarinos de fibra óptica, todo o tráfego de celulares e o tráfego de dados via satélite.
Apesar da hegemonia militar, o capital ainda precisa de algo próximo do consentimento. Com o tempo, novas técnicas, como o aprendizado de máquina, proporcionaram um salto qualitativo na capacidade dos EUA de conduzir uma guerra psicológica secreta contra o povo, o Sul Global e suas populações.11
Os modelos econômicos de todas as empresas de mídia entraram em colapso com o advento da internet e a criação de monopólios econômicos de tecnologia, que desintermediaram todos os lucros da mídia. Começou uma nova era de total transformação de meios de comunicação em arma – um desdobramento que faz parte da estratégia geral de guerra híbrida (incluindo sanções econômicas e isolamento diplomático), utilizada pelo establishment dos EUA em todo o mundo.
A reorientação para a Ásia, que na realidade volta-se para a China, começou formalmente em 2012, sob o comando de Obama. Os EUA combinaram estratégias diplomáticas, econômicas, políticas e de propaganda para tentar conter, a princípio, o desenvolvimento econômico da China e, posteriormente, sua crescente influência em instituições como o Brics. A partir de 2016, Trump tentou evitar o conflito com a Rússia e começou a concentrar todas as energias dos EUA contra a China.
Nos últimos oito anos, os EUA utilizaram um conjunto de temas selecionados com curadoria para definir a narrativa da mídia ocidental sobre a China. Apesar dos milhões de pessoas muçulmanas mortas pelas mãos das forças da Otan no Iêmen, na Síria, no Iraque e no Afeganistão, o Ocidente conseguiu integrar seu formidável conjunto de recursos de soft power para travar uma guerra fria virulenta contra a China. Até o principal agente de propaganda nazista, Joseph Goebbels, teria se espantado com a arrogância do Ocidente ao reivindicar o manto dos direitos humanos e tentar usar Xinjiang como ponto de ataque contra a China.
Lawrence Wilkerson, ex-chefe de gabinete do secretário de Estado Colin Powell e ex-coronel do exército, observou que um importante objetivo estratégico da invasão militar dos EUA e de sua longa presença no Afeganistão era conter a Nova Rota da Seda da China (2013-atual) e criar divisões étnicas e agitação social em Xinjiang.12 Os veículos The New York Times, The Guardian e BBC se tornaram os principais apoios em uma campanha de operação psicológica característica dos EUA.
Como explicamos na análise das economias ocidentais, não é irracional que o Ocidente procure retardar o crescimento da China. O ponto central do próximo estágio de desenvolvimento chinês é a promoção de uma economia de dupla circulação, ou seja, aumentar o peso do mercado interno e, ao mesmo tempo, continuar a aumentar seu comércio internacional, passar a um desenvolvimento de alta qualidade e promover o desenvolvimento econômico das províncias do oeste do país. O ataque a Xinjiang atende simultaneamente a muitos interesses ocidentais: enfraquece as estratégias de crescimento interno da China, isola o país internacionalmente, mascara a violência dos EUA contra os países muçulmanos e mantém o apoio a grupos extremistas para desestabilizar seus adversários.
As alegações forjadas de genocídio entre a população uigur em Xinjiang, sem nenhuma comprovação pelo Departamento de Estado dos EUA, permitiram que o governo dos EUA impusesse sanções à China, com o objetivo de atingir toda a cadeia do setor têxtil chinês, que exporta mais de US$ 300 bilhões e responde por mais de um terço das exportações têxteis do mundo, ocupando o primeiro lugar no ranking global.13
Mas, apesar dessas sanções, o comércio exterior de Xinjiang aumentou 51,25% em relação ao ano anterior, atingindo US$ 30 bilhões nos três primeiros trimestres de 2023, e o comércio com cinco nações da Ásia Central cresceu 59,1%.14
A China acaba de anunciar uma zona de livre comércio em Xinjiang para promover a conectividade com os países da região da Nova Rota da Seda.
Além da guerra de “soft power“, os EUA não pouparam esforços para conter o desenvolvimento da China em setores de alta tecnologia, sobretudo para enfraquecer a capacidade chinesa de produzir ou mesmo comprar chips semicondutores de ponta. Ao impor uma competência de longo alcance sobre tecnologias como as máquinas de litografia ultravioleta extrema (EUV) fabricadas pela empresa holandesa ASML, os EUA buscam impedir que a China entre no futuro da tecnologia dos chips. O governo Biden acredita que o impacto disso vai muito além de enfraquecer os avanços militares da China, mas também ameaçará o crescimento econômico e a liderança científica do país.
Gregory C. Allen, diretor do Projeto de Governança de Inteligência Artificial e membro sênior do Programa de Tecnologia Emergente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington, acredita que a mensagem transmitida pelos controles de exportação contra a China, emitidos pelo Escritório de Indústria e Segurança (Bureau of Industry and Security – BIS) dos EUA, em outubro de 2022, faz parte de “uma nova política dos EUA de estrangular ativamente grandes segmentos do setor de tecnologia chinês – estrangular com a intenção de matar”.15 C.J. Muse, analista da indústria nos EUA, declarou: “Se você me falasse sobre essas regras cinco anos atrás, eu teria dito que trata-se de um ato de guerra – seria necessário estar em guerra”.16

Apesar das severas restrições impostas pelos EUA, a China continua crescendo mais do que o Norte Global (Figura 50).
Por meio da Nova Rota da Seda, a China fortalece suas conexões econômicas com o Sul Global. De 2013 a 2022, o volume total de comércio da China com os países participantes da Nova Rota da Seda atingiu US$ 19,1 trilhões, com um aumento médio anual de 6,4%. O investimento bilateral acumulado ultrapassou US$ 380 bilhões, e o investimento estrangeiro direto da China ultrapassou US$ 240 bilhões. Os novos projetos contratados pelo país atingiram US$ 2 trilhões, concluindo um volume de negócios acumulado de US$ 1,3 trilhão.17
Ironicamente, a contenção dos EUA nos campos de alta tecnologia apenas fortaleceu a determinação da China de ser autossuficiente em inovação. Nos últimos anos, o país asiático fez avanços significativos em inovação independente em chips de ponta, veículos elétricos e tecnologia digital, tornando o bloqueio e a contenção dos EUA em campos da alta tecnologia cada vez mais impraticáveis.
O Norte Global empurrando o mundo para a guerra
A ascensão pacífica dos países do Sul Global, liderada pela Ásia e sobretudo pela China, representa um desafio econômico abrangente ao domínio mundial imperialista. É a primeira vez em 600 anos que as potências imperialistas do Atlântico se deparam com uma força econômica não branca capaz de se contrapor a elas.
Para conter a ascensão da China, os EUA estão intensificando a integração interna dentro do campo imperialista, permitindo e exigindo o rearmamento de dois países fascistas derrotados na Segunda Guerra Mundial, Japão e Alemanha. De forma unânime, os líderes políticos dos EUA consideram essencial conter e derrotar a China, como um inimigo estratégico central, e deram início a uma nova guerra fria. Os líderes militares estadunidenses fazem declarações alarmantes sobre a China. O objetivo geopolítico dos EUA é derrubar os regimes da China e da Rússia, desnuclearizar e, se possível, desmembrar os dois países, dividi-los em vários países pequenos e garantir que nunca mais possam desafiar sua hegemonia militar e econômica.
Na fronteira ocidental da Rússia, a expansão da Otan para o leste levou a questão da segurança da Ucrânia a um ponto crítico de ebulição. Antes da dissolução da União Soviética, os Estados Unidos haviam prometido a Gorbatchov que a Otan não se expandiria para o leste, já que sua missão original – combater a União Soviética e conter o comunismo europeu – havia terminado com o fim da Guerra Fria. No entanto, a Otan não cumpriu esse “acordo de cavalheiros” e incorporou 14 novos Estados-membros, incluindo diversas antigas repúblicas soviéticas. Em 2018, a Ucrânia alterou sua Constituição para priorizar a entrada na Otan e na União Europeia como estratégia nacional, o que representa uma ameaça significativa à segurança nacional da Rússia. Como Kiev está localizada a apenas 760 km de distância de Moscou, permitir que a Otan implante armas nucleares na Ucrânia constituiria uma ameaça militar incontrolável para a Rússia.
Ao mesmo tempo, as forças neonazistas no oeste da Ucrânia estavam em ascensão. Em janeiro de 2022, foram realizadas procissões com tochas em cidades como Kiev e Lviv, comemorando o aniversário do colaborador nazista Stepan Bandera. Em conflitos anteriores, extremistas nacionalistas da mesma região hasteavam bandeiras nazistas e ameaçavam aniquilar ucranianos do leste do país e pessoas favoráveis à Rússia. A população russa étnica do leste da Ucrânia teve que organizar a resistência e buscar ajuda russa. Nessas circunstâncias, a Rússia lançou uma “operação militar especial” na Ucrânia, essencialmente enfrentando um confronto direto com a força militar da Otan.
No Pacífico Ocidental, os Estados Unidos fazem tentativas contínuas de alimentar as tensões em torno do Mar do Sul da China e de Taiwan. Em agosto de 2022, apesar da forte oposição e das demonstrações diplomáticas de descontentamento da China, a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan, cometendo uma grave violação do princípio de “Uma só China” e das disposições dos três comunicados conjuntos EUA-China, afetando seriamente a base política das relações sino-estadunidenses. É importante lembrar que, em 1972, no comunicado de Xangai, os Estados Unidos aceitaram a política de “Uma só China”, que reconhece que existe apenas uma China e que Taiwan não é um Estado soberano separado. Em agosto de 2023, a Marinha dos EUA, juntamente com as forças do Canadá e da República da Coreia, realizou exercícios militares conjuntos no Mar do Japão e no Mar Amarelo.18 No entanto, os exercícios terminaram abruptamente após, apenas cinco horas, devido às mobilizações militares direcionadas da China.19
Desde que Ferdinand Marcos Jr. assumiu a presidência das Filipinas, em junho de 2022, o país abriu diversas bases militares para os EUA, fortaleceu os laços de segurança com a Austrália e o Japão e desencadeou disputas com a China sobre questões de soberania no Mar do Sul da China. Navios de guerra dos EUA, do Canadá, da Austrália e de outros países também patrulham e fazem exercícios com frequência no Mar do Sul da China, provocando diversos contatos imediatos e atritos com a Marinha chinesa.
Até o momento, diante das contínuas provocações dos Estados Unidos e de seus aliados, a China tem mantido uma postura contida, esforçando-se para evitar conflitos militares com esses países, pois um confronto desse tipo poderia se transformar em uma guerra nuclear global. No entanto, Taiwan tem uma importância especial. Como parte da China historicamente e segundo a lei internacional, a continuação da separação de Taiwan significa que não houve fim para a guerra civil da China e até mesmo para o “século de humilhação”, que começou com as Guerras do Ópio em 1840. A divisão de Taiwan é inaceitável para a China, mesmo que isso signifique o risco de uma guerra direta contra os Estados Unidos.
Com o apoio direto de Biden e Blinken, Israel está promovendo uma limpeza étnica e o genocídio da população civil palestina em Gaza. A situação deixa evidente a verdadeira face do campo imperialista do Norte Global como um coletivo de colonizadores brancos: quando surgem conflitos entre colonos brancos e pessoas não brancas colonizadas, o campo imperialista apoia em uníssono o lado dos colonos.
As fraturas na Ucrânia e na Palestina exacerbaram a polarização dos social-democratas, sendo que alguns de seus setores se mostraram incapazes de superar o desejo de aceitabilidade e de se unir a um movimento robusto pela paz.
Voltemos à citação da Otan e da UE de que estariam “protegendo nosso bilhão de cidadãos, preservando nossa liberdade e democracia… contra todas as ameaças”. Essa frase, que aparece no primeiro parágrafo do comunicado da Otan-UE de 2023, descreve nitidamente a estrutura do mundo atual: o campo imperialista, centrado nos EUA e baseado na infraestrutura da Otan, está totalmente unido e mobilizado militar, política e economicamente, pronto para sufocar quaisquer forças emergentes que possam representar uma ameaça ao seu status hegemônico. Essa inédita e imensa pressão imperialista obrigou muitos no “resto do mundo” (aqueles que estão fora do campo imperialista) a identificar estruturas e identidades alternativas de autopreservação.
1Se houver evidências de que a indústria tem uma conversão significativamente menor do que outros elementos do PIB, os números da PPC que apresentamos superestimariam as porcentagens do Sul Global. Acreditamos que, apesar desse possível erro, a direção dessa abordagem oferece contribuições úteis. A composição percentual do PIB por setor depende dos dados de preço usados para medir o valor agregado de cada um deles. Os fatores de conversão de PPC são estimativas estatísticas baseadas em cestas de bens e serviços relativos a anos de referência que são posteriormente aplicadas ao PIB relativas às estimativas de PIB (PPC).
2Barbara Kollmeyer, “‘Right Now There Are Changes, the Likes of Which We Haven’t Seen in 100 Years.’ Here’s What China’s Xi Said to Putin before Leaving Russia”, Market Watch, 22 de março de 2023, https://www.marketwatch.com/story/right-now-there-are-changes-the-likes-of-which-we-havent-seen-in-100-years-what-china-president-xi-said-to-putin-before-leaving-russia-d15150ce.
3Agnieszka Bryc, “The Russian Federation and Reshaping a Post-Cold War Order”, Politeja 5, no. 62 (31 de outubro de 2019), p. 161–74, https://doi.org/10.12797/Politeja.16.2019.62.09; Vladimir Putin, discurso proferido no Conselho de Segurança de Munique, Munique, Alemanha, 10 de fevereiro de 2007, https://is.muni.cz/th/xlghl/DP_Fillinger_Speeches.pdf.
4“Special Report: Cables Show US Sizing up China’s Next Leader”, Reuters, 17 de fevereiro de 2011, https://www.reuters.comarticle/idUSTRE71G5WH/.
5Luke Hunt, ‘The World’s Gaze Turns to the South Pacific”, The Diplomat, 4 de setembro de 2012, https://thediplomat.com/2012/09/the-worlds-gaze-turns-to-the-south-pacific/.
6Xi Jinping, “Remarks by President Obama and President Xi Jinping in Joint Press Conference”, 12 de novembro de 2014, Casa Branca, https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2014/11/12/remarks-president-obama-and-president-xi-jinping-joint-press-conference#:~:text=At%20the%20same%20time%2C%20I,instead%20of%20mutually%20exclusive%20ones.
7“China to Leapfrog US as World’s Biggest Economy by 2028 – Think Tank”, Reuters, 26 de dezembro de 2020, https://www.reuters.com/article/idUSKBN290003/.
8Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives (New York: Basic Books, 1997), 55; 30–31.
9Editores, “Notes from the Editors”, Monthly Review 75, no. 4 (1 de setembro de 2023), https://monthlyreview.org/2023/09/01/mr-075-04-2023-08_0/; Jake Sullivan, “Remarks by National Security Advisor Jake Sullivan on Renewing American Economic Leadership at the Brookings Institution”, Casa Branca, 27 de abril de 2023, https://www.whitehouse.gov/briefing-room/speeches-remarks/2023/04/27/remarks-by-national-security-advisor-jake-sullivan-on-renewing-american-economic-leadership-at-the-brookings-institution/.
10Nomaan Merchant et al., “US Announces $345 Million Military Aid Package for Taiwan”, TIME, 29 de julho de 2023, https://time.com/6299419/us-military-aid-taiwan/.
11Apesar das recentes denúncias de práticas fraudulentas, a economia comportamental foi utilizada com sucesso como arma pela inteligência dos EUA em campanhas de mídia on-line.
12Daniel McAdams, “‘What Is The Empire’s Strategy?” – Col Lawrence Wilkerson Speech At RPI Media & War Conference”, Instituto Ron Paul pela Paz e a Prosperidade, 22 de agosto de 2018, https://ronpaulinstitute.org/what-is-the-empires-strategy-col-lawrence-wilkerson-speech-at-rpi-media-war-conference/.
13Colum Lynch, “State Department Lawyers Concluded Insufficient Evidence to Prove Genocide in China”, Foreign Policy, 19 de fevereiro de 2021, https://foreignpolicy.com/2021/02/19/china-uighurs-genocide-us-pompeo-blinken/; ‘Textile Exports by Country 2023’, World Population Review, acessado em 26 de dezembro de 2023, https://worldpopulationreview.com/country-rankings/textile-exports-by-country; “China’s Major Exports by Quantity and Value, December 2022 (in USD)”, Administração Geral de Alfândegas, República Popular da China, 8 de janeiro de 2023, http://english.customs.gov.cn/Statics/aeb5aefa-b537-4ef3-8e13-59244228cb0e.html.
14Li Xuanmin, “A Decade of BRI Development Transforms China’s Xinjiang Region into a Core Area of the Silk Road Economic Belt – Global Times”, Global Times, 1 de outubro de 2023, https://www.globaltimes.cn/page/202310/1299158.shtml.
15Gregory C. Allen, “Choking off China’s Access to the Future of AI”, Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, 11 de outubro de 2023, https://www.csis.org/analysis/choking-chinas-access-future-ai.
16Alex W. Palmer, ” ‘An Act of War’: Inside America’s Silicon Blockade Against China”, The New York Times, 12 de julho de 2023, https://www.nytimes.com/2023/07/12/magazine/semiconductor-chips-us-china.html.
17Xinhua, “The Belt and Road Initiative: A Key Pillar of the Global Community of Shared Future”, Escritório de Informações do Conselho de Estado, República Popular da China, 10 de outubro de 2023, http://english.scio.gov.cn/whitepapers/2023-10/10/content_116735061_5.htm.
18David Choi, “US, South Korean, Canadian Warships Train in Yellow Sea Ahead of Incheon Anniversary”, Stars and Stripes, 15 de setembro de 2023, https://www.stripes.com/branches/navy/2023-09-15/trilateral-naval-drill-yellow-sea-incheon-11383145.html.
19An Dong, ‘Apenas cinco horas depois de inicar exercício naval no Mar Amarelo, pseudo-porta-aviões dos EUA foge, carregador se acidenta e exército é forçado a mandar buscas para encontrá-lo]”, IFENG, 18 de setembro de 2023, https://i.ifeng.com/c/8TBMF5tH2bY.
Agência Pública: Enfrentamento do crime na terra Yanomami revelou mais mentiras da era bolsonarista
Segue o artigo de Rubens Valente, publicado na Agência Pública:
Passados dois anos da decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de enfrentar o garimpo e o caos sanitário na Terra Indígena Yanomami, o governo federal divulgou na semana passada uma série de dados positivos, como “a redução de 91% dos garimpos consolidados” e de 95,76% “na abertura de novos garimpos”, o funcionamento de “100% dos polos-base de saúde”, o aumento de 155% no número de profissionais de saúde no território e a redução de 68% “dos óbitos por desnutrição no primeiro semestre de 2024 em comparação a 2023”.
A redução expressiva do garimpo é confirmada por fontes independentes a partir de imagens de satélite. Porém é mais difícil checar o atual status da mortalidade, pois o atendimento à saúde e o controle estatístico dentro do território são exclusivos do governo federal, por meio do Ministério da Saúde. Os números não são públicos.
Solicitei ao ministério os números da mortalidade em todo o ano de 2024 e não apenas do primeiro semestre. Há conhecidas dificuldades técnicas no abastecimento dessa base de dados, mas é difícil entender o motivo pelo qual não existam dados consolidados dos últimos seis meses. O ministério respondeu que “os dados de 2024 ainda estão em qualificação”.
Segundo o ministério, “a periodicidade de divulgação do Informe Yanomami foi ajustada de mensal para semestral para assegurar maior rigor e fidedignidade na análise dos dados”. A pasta disse que a mudança permite que as informações dos indicadores da saúde “sejam comunicadas com maior qualificação e precisão”.
Reconheça-se que há diversos sinais de que houve, sim, uma melhora na condição geral de vida dos Yanomami nos últimos dois anos. Por exemplo, o depoimento insuspeito de Júnior Hekurari, que foi um dos principais denunciantes do genocídio Yanomami durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Ele disse à revista Cenarium no começo deste mês que “hoje o povo Yanomami e a floresta estão enxergando uma nova esperança e uma luz para melhores condições”.
“O governo federal devolveu o nosso bem-estar dentro das nossas comunidades, com as operações [de retirada dos garimpeiros] nós conseguimos voltar para nossa casa para, enfim, se organizar novamente. Agora, retornamos aos antigos costumes, como os rituais, festas e os trabalhos comunitários para reconstruir as vidas perdidas.”
Parte da imprensa enxerga nas informações positivas um “triunfalismo governista”, conforme o O Estado de S. Paulo definiu em editorial neste domingo (26). É sempre necessário ficar com os dois pés atrás diante de manifestações oficiais. Cabe ao jornalismo exercer o olhar crítico sobre o governo – qualquer governo –, incluindo, obviamente, os números que ele anuncia.
Por outro lado, rejeitar dados verificáveis também representa risco à objetividade jornalística, que impõe equilíbrio e justiça na apresentação e na análise dos fatos. Nesse sentido, é difícil deixar de concluir que, na comparação com o período do governo Bolsonaro, a realidade hoje na terra Yanomami é diferente para melhor.
A Agência Pública tem feito uma cobertura crítica e extensa sobre a crise humanitária Yanomami. Mostramos as evidências de sabotagem das Forças Armadas, o desrespeito dos militares às diretrizes da Presidência, o controle aéreo deficiente, a persistência do garimpo em diversos pontos do território, inclusive ameaçando um povo isolado, falhas na distribuição de cestas básicas, o uso de antenas Starlink pelos garimpeiros criminosos e até o caso de uma criança indígena adotada por um casal ligado ao garimpo.
De um ano para cá, alguns dos principais problemas foram superados por uma medida tomada pelo governo – que deveria, aliás, ter sido definida já no início das operações: a instalação de uma Casa de Governo em Boa Vista (RR) sob o comando não de um militar, mas de um civil, capaz de ter uma visão conjunta e organizada dos problemas no território.
Quem comanda uma ação dessa envergadura não pode mesmo ter tolerância com o garimpo ilegal dentro das terras indígenas, uma simpatia disseminada entre os militares na Amazônia. Basta ouvi-los informalmente para entender que eles veem o garimpo como uma espécie de colonização necessária para a “integração e a soberania nacionais”, papel semelhante ao dos bandeirantes dos séculos 16 e 17 e dos projetos megalomaníacos da ditadura militar nos anos 1970 alimentados pelo teoria conspiratória da “internacionalização” da Amazônia.
O servidor da Casa Civil da Presidência da República escolhido para a chefia da Casa de Governo em Roraima, o gaúcho Nilton Tubino, 63 anos, tinha, antes de 2012, pouca experiência no tema das terras indígenas. Ele registrava uma longa passagem como assessor parlamentar na Câmara dos Deputados. Foi chefe do gabinete do deputado federal Adão Pretto (PT-RS), parlamentar falecido em 2009 cuja trajetória esteve vinculada ao tema da reforma agrária.
Há 12 anos, contudo, já no primeiro governo de Dilma Rousseff (PT-RS), Tubino passou a atuar no campo da proteção das terras indígenas. Participou, desde então, de quatro operações de retirada de invasores em diferentes terras indígenas, três das quais desencadeadas no governo Lula 3 (Alto Rio Guamá e Apyterewa, no Pará, e Yanomami). Tubino, que se mudou para Roraima de mala e cuia, revelou-se o coordenador certo na hora certa.
Para todas essas ações, o governo mobilizou centenas de servidores e diversos órgãos como o Ibama, a Funai, a Polícia Federal (PF), militares e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Na Apyterewa, mais de 2 mil invasores foram expulsos em 2023. Simultaneamente ao caso Yanomami, o governo desencadeou ações do gênero nas terras Trincheira Bacajá, Karipuna e Munduruku.
Todas essas terras têm uma característica em comum: durante o governo Bolsonaro, a destruição e a dilapidação das riquezas naturais e a degradação do modo de vida dos indígena foram, para dizer o mínimo, toleradas de 2019 a 2022.
Os invasores eram apoiados, exaltados e até recebidos em gabinetes de Brasília por políticos bolsonaristas e membros do Executivo, como fez o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, com um grupo de garimpeiros do Pará. As poucas ações contra essas invasões foram pontuais, débeis e quase sempre por pressão do Judiciário.
Altos membros do governo Bolsonaro, como o vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão, diziam que era muito difícil ou inútil retirar os invasores. Complexo era a palavrinha da moda. Expulsar os garimpeiros da terra Yanomami? “Complexo” demais.
Em 2021, Mourão disse que “a situação” dos Yanomami era “complicada” e que a solução passaria não pela retirada dos invasores, e sim pela regularização do garimpo. “A Constituição prevê isso e enquanto não se regulamentar vai continuar esse eterno jogo de gato e rato”, relativizou Mourão. Era assim que as coisas eram repassadas pelo bolsonarismo tanto aos indígenas quanto aos garimpeiros: não adianta fazer nada.
Mourão disseminava desinformações sobre a terra Yanomami, como o projeto Fakebook Eco exaustivamente demonstrou no início de 2023. Em 2020, em meio à crise da pandemia de covid-19, ele sugeriu que os indígenas bebessem água diretamente dos rios, muitos dos quais hoje contaminados pelo mercúrio do garimpo ilegal que rasga suas terras.
Mourão acumulou a presidência de um certo Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), criado por ele e Bolsonaro cheio de militares e sem representantes indígenas e do Ibama e da Funai. Documentos trazidos à tona pela Pública revelaram que, ao longo das suas dez reuniões ordinárias, em apenas uma o tema Yanomami foi discutido pelo CNA – sem nenhuma ação prática.
De acordo com a documentação, Mourão reconheceu a invasão garimpeira no território, mas nada fez de concreto para solucioná-la, ponderando apenas que seria necessária uma “operação de grande envergadura”. Pois bem, essa operação só foi feita no governo Lula 3.
As vozes indígenas eram repetidamente abafadas e jogadas para escanteio. A maior liderança Yanomami, Davi Kopenawa, já disse que enviou cerca de 60 pedidos de socorro ao governo Bolsonaro, todos olimpicamente ignorados. Dario Yanomami, filho de Kopenawa, relatou ter estado em audiência com o próprio Mourão, em Brasília. O resultado? “Não aconteceu nada.”
O resultado do virtual abandono do Estado na terra Yanomami produziu os efeitos que hoje o mundo inteiro conhece. As mortes por desnutrição cresceram 331% no período 2019-2022 na comparação com os quatro anos anteriores. Em dezembro de 2022, a Pública revelou que as crianças Yanomami morriam 13 vezes mais por causas evitáveis do que a média nacional.
Desde 2023, a PF investiga os crimes cometidos contra os Yanomami. O delegado responsável pelo inquérito, contudo, já foi trocado quatro vezes. Atualmente, quem toca o caso mora em Minas Gerais, e não em Roraima, mas a PF diz que a investigação prossegue. Vamos ver.
A tragédia que atingiu os Yanomami era tão grande que dificilmente seria alterada em curto prazo. No primeiro ano do governo Lula, o território registrou 363 mortes, 20 acima das registradas em 2022. Mas a subnotificação dos casos na era Bolsonaro impede uma comparação confiável. Agora o governo diz que houve uma redução de 68% nos “óbitos por desnutrição no primeiro semestre de 2024 em comparação a 2023”.
Os resultados, a médio e longo prazos, das ações e operações desencadeadas pelo governo Lula 3 na terra Yanomami e em outros territórios indígenas ainda demandam muita atenção e análise. Mas reconhecer que ações positivas têm sido feitas para resgatar a dignidade dos povos indígenas não representa triunfalismo oficial. A desgraça bolsonarista é de fato incomparável.
Trump, Big Techs e a nova ameaça fascista – com Ladislau Dowbor
Do Canal Outras Palavras:
Com a posse de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos na segunda-feira (20 de janeiro) abre-se uma nova temporada de especulações sobre como será a conduta econômica do país. Mas um fato é concreto: as Big Techs já se alinharam ao novo governo e as consequências desta união são inúmeras. O economista Ladislau Dowbor analisa o cenário ao programa Outra Manhã, no Outras Palavras TV.
Outras Palavras: Capitalismo em xeque: como a Inteligiência Artificial chinesa do DeepSeek expõe as contradições do modelo dos EUA
Do Canal Outras Palavras:
O lançamento do DeepSeek, uma plataforma chinesa de inteligência artificial generativa, não apenas capturou a atenção global em questão de dias, mas também expôs as fragilidades do modelo capitalista praticado pelos Estados Unidos. Enquanto as Big Techs americanas, como Microsoft, Amazon e Google, dominam o mercado com práticas que muitas vezes travam a inovação e consolidam monopólios, o DeepSeek surge como uma alternativa disruptiva, questionando a necessidade de investimentos exorbitantes e a dependência de tecnologias proprietárias. Além disso, o sucesso rápido da plataforma chinesa levanta debates sobre a eficácia do capitalismo americano, a concentração de poder nas mãos de poucas empresas e os impactos ambientais e sociais desse modelo. Confira o comentário do jornalista Glauco Faria, no Outra Manhã, programa do Outras Palavras TV.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
Donald Trump e a destruição da hipocrisia americana, por Jessé Souza
Talvez não exista país no mundo mais servil e com mentalidade de escravo do que o Brasil
Do ICL Notícias:
Toda forma de dominação social e política precisa combinar violência física e simbólica. Como a violência física é um ataque explícito à dignidade das pessoas, o domínio pela violência física tende a operar e produzir seus efeitos em períodos limitados, agindo, normalmente, como recurso de última instância e ameaça potencial. Isso significa que o domínio, ao longo do tempo, tem que ser assegurado de outra maneira, por meio de uma “violência simbólica”, ou seja, àquela que conta com a conivência do oprimido que passa a se ver como inferior e a admirar o dominador.
A história do imperialismo europeu é uma excelente ilustração do que estamos dizendo. Tanto o imperialismo clássico francês ou inglês usavam o expediente simbólico ao lado da agressão física para oprimir povos colonizados. Eram utilizadas clivagens tribais e raciais de modo a cooptar, por exemplo, os segmentos “mais claros” contra os mais escuros de países africanos ou asiáticos sacralizando socialmente a hierarquia da supremacia branca. De resto, a oposição entre civilização, representada pelos europeus, e barbárie, representada pelos outros povos, terminava convencendo também muitos nativos — especialmente os educados na cultura europeia — de culturas oprimidas.
No entanto, foram os Estados Unidos que privilegiaram o uso da violência simbólica como arma cultural criando o imperialismo “soft” (suave) americano. A partir da Segunda Guerra Mundial, a vitória contra a tirania sem disfarces, que havia sido ganha antes de tudo pela União Soviética, mas que Hollywood transformou em triunfo americano, permitiu que os EUA pudessem ser vistos como uma potência benigna, amiga da liberdade e da autodeterminação dos povos.
Isso induziu os americanos a perceberem que o domínio global poderia ser conseguido mais facilmente se eles abdicassem, pelo menos em condições normais, do domínio militar e político explícito em favor da violência simbólica. É muito mais eficiente deixar uma elite nativa e do “atraso”, como a nossa, comandar e assaltar o país em nome dos interesses americanos.
Para isso é necessário usar o prestígio científico como arma de dominação. A “ciência americana”, comandada por Talcott Parsons, o intelectual americano mais influente, criou a ideia do “excepcionalismo americano” que permitiu ver a riqueza dos Estados Unidos como advinda não do saque e da força militar, mas de sua colonização protestante ascética tida como supostamente empreendedora, honesta e voltada ao bem comum. Essa bobagem foi retirada da interpretação abstrusa que Parsons fez da famosa tese weberiana sobre o espírito protestante, mas o mundo todo acreditou nela, inclusive os vira-latas de todas as latitudes.
Cerca de 90% de nossa ciência política, por exemplo, foi contaminada por este lixo e ainda é até hoje. A influência da ciência em si é muito importante porque ela constrói o paradigma de pensamento e interpretação dos fatos que vai prevalecer para dominados e dominantes. As universidades do mundo inteiro, que vão formar todas as elites dirigentes em todos os lugares, foram contaminadas por estas ideias envenenadas.
Mas foi a transformação dessas ideias em filmes, séries, livros e todas as mercadorias simbólicas da indústria cultural, com Hollywood à frente, que logrou internalizar dentro dos povos oprimidos o preconceito criado para oprimi-lo e roubar sua inteligência. Não é à toa que todos os criminosos nos filmes e séries americanas são mexicanos ou latino-americanos, quase sempre se opondo à honestidade do policial e do cidadão americano em geral. A corrupção, como sempre, passa a ser a arma principal desse ataque. Toda a indústria cultural vai opor a honestidade supostamente inata dos americanos às sociedades tidas como essencialmente corruptas do Sul Global: América Latina, África e Ásia, afinal quem é corrupto tem sua humanidade negada, e podem e até “devem” ser comandados e explorados pelos honestos e inteligentes.
Talvez não exista país no mundo mais servil e com mentalidade de escravo do que o Brasil e os brasileiros em relação aos Estados Unidos. O golpe de 2016 mostra isso ao lado de outros milhares de exemplos possíveis. Só um povo imbecilizado e servil pode aplaudir a entrega da Petrobrás, por exemplo, aos estrangeiros, dado que nossos políticos seriam corruptos e os americanos seriam tão honestos, bonitos e inteligentes. Agora temos as redes sociais, todas empresas privadas americanas mancomunadas com os interesses de Estado americano, que permite manipular as emoções e fragilidades dos oprimidos ao ponto de criar o “patriotário” bolsonarista que somos obrigados a testemunhar.
Os recentes episódios com os brasileiros algemados e maltratados pelas autoridades americanas mostram um outro país. Um país que quer ser conhecido e temido, agora, pela truculência. É uma mudança radical do imperialismo americano nesta sua fase terminal. Como diria Gramsci, é neste lusco-fusco que os monstros aparecem. Alguns podem comemorar o fim da hipocrisia americana de quase cem anos. O risco, no entanto, é termos saudade dessa hipocrisia que preferia mandar Brad Pitt e Marilyn Monroe, junto com os seus estereótipos envenenados, no lugar de armas e deportações humilhantes. E a nova fase está só no começo. Quem sabe o que ainda vai vir por aí?