Conselho Nacional de Direitos Humanos aciona PGR para responsabilizar ex-presidente; no Congresso, o capitão busca anistia dos seus crimes
Cada brasileiro tem seu motivo para ser contra a anistia, em debate no Congresso, ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Tentativa de golpe, desvio de joias das Arábias, gabinete do ódio, usina de fake news, preguiça de governar, ineficiência administrativa…
Ao ingerir a minha pílula diária de memoriol, escolho os crimes durante a pandemia de Covid-19 como a razão maior para rejeitar qualquer papinho sobre anistiar o ex-capitão.
Sigo no embalo e no protesto do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que acaba de entregar uma representação criminal à Procuradoria-Geral da República. É mais uma tentativa de responsabilizar Bolsonaro pelo festival de omissões, erros e mortes em 2020 e 21.
Nesta mesma semana — o efeito memoriol não me deixa esquecer! —, faz aniversário de três anos da entrega do relatório da CPI da Pandemia. A PGR não moveu uma palha até agora. Nem sob Bolsonaro, nem sob Lula.
Seguiremos lembrando.
O ex-presidente teria sido apenas cômico e folclórico se as suas bizarrices não representassem consequências desastrosas, muitas vezes até mortais, na vida dos brasileiros.
Em depoimento à CPI, o epidemiologista Pedro Hallal revelou, baseado em estudos e pesquisas, que pelo menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso o Brasil tivesse adotado medidas mais rígidas de controle da pandemia e imunização mais rápida, ao contrário das orientações espalhadas por Bolsonaro e sua equipe.
Taí a justificativa do título desse texto: 400 mil motivos para não anistiar Jair Bolsonaro.
Ao desempenhar o papel de garoto propaganda de hidroxicloroquina e ivermectina — comprovadamente ineficazes no tratamento de Covid —, o presidente cometeu o crime de charlatanismo, uma das principais acusações da CPI do Senado.
Nas suas “lives” do Facebook e cerimônias oficiais, Bolsonaro exibia as caixas dos remédios e receitava o uso aos brasileiros. Uma cena, em especial, marcou essa obsessão presidencial: ele mostrou as embalagens dos medicamentos para duas emas no gramado do Palácio da Alvorada — as aves saíram correndo, em desespero.
Ao longo de 2020, Bolsonaro sabotou, de forma metódica, as tentativas dos governos estaduais e municipais de combaterem a pandemia, sempre se escorando em uma suposta “imunidade de rebanho” que seria alcançada graças à infecção generalizada da população. Quando começou a ser cobrado pelo número de mortes, ainda no segundo mês depois da chegada do coronavírus ao Brasil, respondeu: “Eu não sou coveiro, tá certo?”. Àquela altura, 20 de abril, o número de vítimas era de 2.575.
O festival de falas bizarras seguiu no rastro das mortes. Em novembro, Bolsonaro associou o medo dos brasileiros diante da pandemia à sexualidade: “Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa?”
No mês seguinte, em Porto Seguro, no sul da Bahia, o presidente seguiu na sua cruzada negacionista contra as vacinas. “Eu não vou tomar. Alguns falam que eu estou dando um mau exemplo. Ô, imbecil, ô idiota. Eu já tive o vírus. Eu já tive anticorpos, para que tomar a vacina de novo? E outra coisa que tem que ficar bem clara aqui: lá na Pfizer tá bem claro no contrato ‘nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’, se você virar um jacaré o problema é de você, pô”, disse, em ritmo de desaforo. A frase levou inúmeros brasileiros a se fantasiar do réptil no momento de tomar a vacina nos postos de saúde.
A tentativa de desacreditar as vacinas seria atrelada a uma série de denúncias de corrupção. Segundo a CPI da Covid, o Ministério da Saúde teria postergado a decisão de comprar os imunizantes ao negociar propina com intermediários nos contratos.
Nesse período, o governo ignorou uma série de ofertas da Pfizer para vender sua vacina para o Brasil. A empresa farmacêutica havia encaminhado 56 e-mails às autoridades, perguntando sobre o interesse nas negociações. A administração federal demorou 47 e-mails para dar a primeira resposta, em 9 de novembro de 2020.
Ao mesmo tempo em que ignorava a Pfizer, assessores do governo andavam metidos em uma negociata paralela com um grupo comandado pelo pastor evangélico Amilton Gomes. A empreitada era um golpe por parte de Gomes, que não tinha qualquer contato com a Johnson e a Astrazeneca, farmacêuticas citadas na trama.
Como se não bastasse o rolo na compra dos imunizantes, conforme mostrou a CPI, Bolsonaro associou as vacinas à transmissão do vírus HIV. “Vacinados contra a Covid estão desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida [Aids]”, alardeou na sua live do dia 21 de outubro de 2021, amparado por notícias falsas. “Posso ter problema com a minha live. Não quero que caia a live aqui, quero dar informações”, disse o presidente. Três dias depois, o Facebook e o Instagram retiraram os vídeos mentirosos do ar.
O negacionismo virou uma marca presidencial. Quando a maioria dos brasileiros já havia tomado, mesmo com atraso, as duas doses do imunizante, Bolsonaro ainda esperneava, em março de 2022, em um evento no Palácio do Planalto: “O problema é meu, a vida é minha. ‘Ah, ele não tomou vacina’. Pô, tem gente que quer que eu morra e fica me enchendo o saco para eu tomar vacina. Deixa eu morrer…”.
Um levantamento da agência de checagem “Aos fatos” concluiu que o presidente deu uma média de 6,9 declarações falsas ou distorcidas por cada dia de 2021, o segundo ano da pandemia. O “normal”, desde o início da sua gestão, era um número de 4,3 mentiras ou inverdades a cada 24 horas.
Xico Sá
Escritor e jornalista, faz parte da equipe de apresentadores do ICL Notícias. Com passagem por diversas redações e emissoras de tv, ganhou os prêmios Esso, Folha, Abril e Comunique-se. Participou de programas como Notícias MTV, Cartão Verde (Cultura), Redação Sportv, Papo de Segunda (GNT) e Amor & Sexo (Globo). É autor de Big Jato (Companhia das Letras) e A Falta (Planeta), entre outros livros. O colunista nasceu no Crato, na região do Cariri cearense, e iniciou sua trajetória profissional no Recife.
GGN. - O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), iniciou os leilões para a construção de 17 escolas estaduais que não serão públicas, mas privadas. Nesta terça (29), o governo de Tarcísio irá vender a duas empresas concessionárias o controle das instituições de ensino que serão responsáveis por cerca de 35 mil alunos, por 25 anos.
Trata-se de um projeto do governo estadual, que pagará as empresas mais de R$ 2 bilhões para construir e manter um total de 33 escolas. Destas, 17 serão leiloadas hoje.
Nesta terça (29), no que o governo denominou “primeiro lote” de venda das escolas estaduais de ensino fundamental e médio, uma empresa ganhará R$ 1 bilhão para construir 17 unidades de ensino. A venda ocorre na bolsa de valores.
Um segundo lote, previsto para ocorrer na próxima semana, venderá outras 16 escolas na bolsa de valores.
Denominado “Novas Escolas”, a iniciativa do governo Tarcísio é mais uma de repasse de políticas públicas ao controle de entes privados, a exemplo do que ocorreu com a privatização da Sabesp, de água e seneamento, também este ano.
Desta vez, o ensino ficará a cargo da empresa privada, por um período de 25 anos. No contrato, a empresa poderá, ainda, contratar empresas terceirizadas para realizar a manutenção, a vigilância e a alimentação das unidades escolares.
Protestos
Na manhã de hoje, estudantes e representantes de escolas de São Paulo e do Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo (Apeoesp) tentaram protestar na frente da B3, a sede da Bolsa de Valores em São Paulo, contra a venda.
Mas a Polícia Militar e a Guarda Civil bloquearam as ruas de acesso à bolsa de valores, impedindo a entrada dos manifestantes nas proximidades do local.
Ao usar uma coletiva de imprensa para acusar Boulos, Tarcísio repete crimes que resultaram na inelegibilidade de Jair Bolsonaro, garante o criminalista
GGN. - Em pleno domingo de eleição (27), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) orientou moradores da periferia a votarem em Guilherme Boulos (PSOL) durante uma coletiva de imprensa ao lado de seu candidato à Prefeitura de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB).
Para o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay), trata-se de um caso quase acadêmico para demonstrar aos alunos o que é um crime eleitoral. “É muito difícil você ter uma materialidade tão absolutamente comprovada com autoria evidente. Um governador de Estado usando a estrutura do Estado, embora ele não estivesse nas dependências do governo, não estava no palácio, você vê que ele estava cheio de pompas e galas, você tinha toda uma estrutura montada para ele falar”, afirmou durante participação no programa TVGGN 20 da última segunda-feira (28).
O criminalista garante ainda que Tarcísio teve a ousadia extrema de fazer uma acusação absolutamente grave. “Se os fatos fossem verdadeiros, se tivesse tido algum tipo de salva entre o pessoal do PCC, que é uma coisa de setembro, pelo que eles dizem, as autoridades teriam que ter sido comunicadas. A Polícia Federal já disse que não foi comunicado, o Tribunal Regional já disse que não foi comunicado.”
Ao tentar associar Boulos ao PCC, o governador de São Paulo cometeu dois crimes, que são os mesmos que levaram o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à inelegibilidade: abuso de poder e abuso de poder midiático.
Resposta do TSE
Ainda no dia do pleito, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), garantiu que Guilherme Boulos terá uma resposta rápida à notícia-crime contra Tarcísio.
“É assim que tem de ser. Então, me parece muito claro que existe uma hipótese real de inelegibilidade do Tarcísio, sem sombra de dúvida, que foi ele que falou, e eu tenho, não sou especialista em eleitoral, friso mais uma vez, mas eu tenho séria percepção de que também o candidato pode ser tornado inelegível. Por quê? Porque, nesse caso, ele sequer tomaria posse. Ou, se tomar posse, porque o processo pode demorar a correr, ele perde o cargo”, continua o entrevistado.
Kakay afirma que Nunes também pode ser penalizado tendo em vista a satisfação que demonstrou durante as acusações de Tarcísio.
Ao longo da entrevista, Kakay falou ainda sobre o papel do Judiciário na manutenção da democracia após a tentativa de golpe de Estado no 8 de Janeiro, sobre a importância de concluir os julgamentos dos golpistas e virar essa página da história brasileira, além dos problemas gerados pelo uso da inteligência artificial na área penal, tendo em vista a reprodução de racismo praticada pelos algoritmos das plataformas. Confira em:
"O Coringa do filme famoso, ou seja, na sua primeira versão, espelhava exatamente este desalento e a raiva sem direção que ela provoca. O sentimento originário da extrema direita é a desorientação de não se saber quem ou o que causa o sofrimento. Se não há direção, se nunca se identifica os reais causadores da pobreza, então a extrema direita entra realizando o seu trabalho de canalizar a raiva sem explicação de modo a criar um estado de guerra entre os pobres."
Jamil Chade fez uma reportagem muito interessante há poucos dias sobre uma fila quilométrica de milhares de pessoas nos Estados Unidos. Davam voltas em vários quarteirões, querendo uma vaga dos poucos empregos oferecidos por uma empresa. Cada um tinha um formulário preenchido e ficaram horas em pé na espera. Para Jamil, são muito prováveis eleitores de Trump, no que eu acredito também. O trabalhador médio americano tem seu salário estagnado há 50 anos. Se reclamar, outros ocupam o seu lugar.
O Coringa do filme famoso, ou seja, na sua primeira versão, espelhava exatamente este desalento e a raiva sem direção que ela provoca. O sentimento originário da extrema direita é a desorientação de não se saber quem ou o que causa o sofrimento. Se não há direção, se nunca se identifica os reais causadores da pobreza, então a extrema direita entra realizando o seu trabalho de canalizar a raiva sem explicação de modo a criar um estado de guerra entre os pobres.
A questão principal aqui é como compreender essa opção de pessoas e partidos de elite pelos pobres? O ponto principal aqui é a desinformação que acompanha a privatização da mídia e das redes sociais no mundo todo.
A mídia não explica como e por quem essas pessoas são oprimidas e humilhadas. Sem saber o que causa seu sofrimento, as pessoas podem ser abusadas na sua vulnerabilidade pelo apelo da extrema direita que é o de basicamente apontar como causa da pobreza grupos já estigmatizados e ainda mais vulneráveis por conta disso. Os bodes expiatórios são muitos e todos intercambiáveis, dependendo do contexto e momento. Podem ser mexicanos ou muçulmanos nos Estado Unidos, assim como o nordestino, tido como preguiçoso, e o negro, visto como bandido no Brasil.
Paralelamente, para fazer a tragédia grande, os sindicatos foram enfraquecidos e não podem mais manter o contraponto de uma visão específica para os de baixo da escala social. Sem isso, a mídia e redes sociais movidas pelo dinheiro fazem a festa. Também falta um mínimo de inteligência e imaginação política aos partidos do campo democrático. A reação ao discurso dominante é praticamente nula. E este é o quadro muito especialmente nos Estados Unidos e Brasil, países de empobrecimento visível dos grupos marginalizados como os negros e os marginalizados.
Na Europa, a tradição social-democrata é mais forte e você não tem partidos defendendo a demagogia de um Pablo Marçal e dizendo que tudo depende do empenho individual. O que distingue um partido como o linke na Alemanha, mais à esquerda, e o partido nazista, o AFD, é a questão da imigração, mas se protege do mesmo modo nos dois casos os ganhos do trabalhador médio. Também não tem a influência nefasta da religiosidade neopentecostal.
Este é ponto central aqui: a singularidade da extrema direita americana e brasileira é muito parecida e tem a ver com empobrecimento não compreendido nas suas causas. Aí entra o racismo, por meio de suas máscaras, para transformar o negro em criminoso e o nordestino em aproveitador, como explicação espontânea do mundo social para quem não tem outra explicação. O “mapa racial” vem ocupar este lugar vazio. Outra similaridade fundamental com a política americana. Por conta disso, as extremas direitas que mais se parecem são a americana e a brasileira. Não por acaso existe até similitude nos casos de tentativa de golpe de Estado.
À medida que o Brasil se posiciona na cúpula do BRICS de 2024, o cenário geopolítico se torna um campo de batalha para narrativas antagônicas. Enquanto think tanks e mídias ocidentais tentam marginalizar a cooperação entre países do Sul Global, o Brasil se vê no epicentro de uma estratégia de criminalização que busca deslegitimar nações como Venezuela e Cuba.
Cúpula de Kazan: Como Think Tanks e Fundações Ocidentais Criminalizam o BRICS e o Sul Global
por Reynaldo Aragon Gonçalves e Wanderley Anchieta.
À medida que o Brasil se posiciona na cúpula do BRICS de 2024, o cenário geopolítico se torna um campo de batalha para narrativas antagônicas. Enquanto think tanks e mídias ocidentais tentam marginalizar a cooperação entre países do Sul Global, o Brasil se vê no epicentro de uma estratégia de criminalização que busca deslegitimar nações como Venezuela e Cuba. Neste artigo, exploramos como essa dinâmica revela uma operação psicológica orquestrada para reforçar a hegemonia ocidental e o desafio de construir uma narrativa soberana no contexto atual.
Desde sua fundação, os BRICS têm sido alvo de uma campanha sistemática de marginalização conduzida por think tanks, fundações e agências ocidentais e mídias tradicionais. O temor de que essa coalizão emergente possa ameaçar a hegemonia econômica dos Estados Unidos e o dólar como moeda central impulsiona a construção de narrativas negativas sobre o grupo e seus parceiros no Sul Global. Esses discursos, promovidos por instituições como o Atlantic Council, Carnegie Endowment e National Endowment for Democracy (NED), entre um ecossistema vasto de outras instituições, não apenas reforçam a falsa dicotomia entre o progresso ocidental e a “ameaça externa”, mas também operam como ferramentas de guerra cultural e operações psicológicas (psyops), modelando a percepção pública e influenciando políticas globais.
As guerras e operações psicológicas (psyops) são estratégias utilizadas para influenciar percepções e comportamentos, frequentemente visando deslegitimar adversários e controlar narrativas. No contexto das tensões geopolíticas atuais, essas operações são empregadas para criminalizar os BRICS e demais iniciativas de fora do eixo ocidental, apresentando-os como uma ameaça à ordem mundial, criando uma imagem negativa perante a opinião pública, assim como em setores da economia, que visa justificar intervenções e isolar essas nações no cenário internacional. Ao moldar a opinião pública por meio de desinformação e campanhas midiáticas, essas instituições buscam reforçar a hegemonia ocidental e deslegitimar iniciativas de cooperação entre os países do Sul Global, por exemplo. O bloco BRICS surgiu visando reestruturar as relações internacionais, promovendo uma governança mais equilibrada e descentralizada, algo que desafia a arquitetura do poder estabelecida desde a Segunda Guerra Mundial. Além de buscar alternativas ao domínio das instituições financeiras tradicionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, o bloco propõe a diversificação das moedas usadas no comércio global, questionando a primazia do dólar. Essa agenda desperta reações intensas entre as elites ocidentais, que enxergam o grupo como uma ameaça ao status quo, temendo que uma ordem multipolar comprometa tanto o poder financeiro dos EUA quanto a influência diplomática do Ocidente.
Think tanks como o Atlantic Council e fundações como a NED, entre muitos outros, passaram a produzir uma vasta quantidade de relatórios como “The BRICS and the Future of Global Governance” de 2012, The Rise of BRICS: Implications for U.S. Interests de 2013 e Are the BRICS a Threat to the US? de 2023, são exemplos destas análises que retratam o BRICS como uma coalizão autoritária e antidemocrática. Essas publicações, embora travestidas de estudos imparciais, funcionam como apitos de cachorro (dog whistles) para um ecossistema midiático que amplifica essas narrativas. Esses relatórios são rapidamente absorvidos pelas grandes agências de notícias do Ocidente, como Reuters, CNN, The New York Times e BBC, que os utilizam como base para pautar coberturas enviesadas sobre o BRICS e os países do Sul Global. Think tanks são instituições que, embora frequentemente apresentem suas análises como baseadas em ciência e dados rigorosos, muitas vezes utilizam métodos questionáveis para corroborar interesses não científicos ou corporativos. A produção de relatórios e estudos por essas entidades passa raramente por processos de revisão por pares, o que compromete sua legitimidade e validade científica. Em vez de promover um debate informado e fundamentado, essas instituições tendem a veicular narrativas que servem a agendas políticas específicas, minando a confiança no discurso acadêmico e na busca por soluções justas e equitativas para os problemas globais. Essa falta de rigor metodológico contribui para a construção de um consenso artificial que marginaliza iniciativas como o BRICS, colocando em xeque a integridade da pesquisa e a autenticidade das informações disseminadas.
O discurso, inicialmente construído por essas instituições, é replicado por portais, jornais e redes de televisão ao redor do mundo, incluindo a mídia brasileira, alimentando um ciclo contínuo de criminalização e desprestígio das iniciativas soberanistas e autônomas desses países. Os veículos da mídia mainstream ocidental atuam em sinergia com think tanks e fundações, como o Atlantic Council e o NED, que funcionam como uma espécie de incubadora para as narrativas que serão reverberadas pela mídia tradicional. Essa relação simbiótica se manifesta na cobertura seletiva de eventos e na amplificação de discursos que deslegitimam iniciativas como o BRICS, contribuindo para a construção de uma visão polarizada do mundo. Ao adotar essas perspectivas, a mídia não apenas informa, mas também molda a opinião pública, consolidando uma agenda que favorece os interesses geopolíticos do Ocidente. Dessa forma, o ethos dos BRICS, que defendem uma governança multipolar e um caminho independente para o desenvolvimento dos povos do Sul Global, é sistematicamente distorcido e apresentado como uma ameaça à ordem liberal, criando um clima de perseguição constante ao bloco e seus valores. Os discursos sugerem que o bloco seria não apenas uma ameaça econômica, mas também ideológica, posicionando-o como antagonista da ordem liberal ocidental. Essa propaganda é disseminada em múltiplos canais, alimentando a mídia corporativa e moldando a opinião pública para justificar pressões diplomáticas, sanções econômicas e isolamento político. Assim, a construção dessa polarização – Ocidente versus BRICS/Sul Global – reflete uma disputa inevitável pela manutenção do seu poder hegemônico, mas uma narrativa artificial que favorece os interesses das potências ocidentais. Por meio de operações psicológicas sofisticadas, essas organizações buscam manter a hegemonia do Ocidente enquanto deslegitimam qualquer tentativa de reorganização da ordem mundial. Nos próximos parágrafos, examinaremos como essas instituições produzem essas narrativas e as consequências que elas têm para o Sul Global e, particularmente, para o Brasil.
O Discurso da Ameaça do Sul Global e dos BRICS
No atual cenário global, marcado por instabilidade política e econômica, a guerra informacional tornou-se uma ferramenta central de disputa entre potências. Em um contexto de Sociedade 4.0 — caracterizada pela interconexão digital, automação e fluxo massivo de dados —, narrativas estratégicas são moldadas para influenciar percepções públicas e consolidar interesses políticos e econômicos. O BRICS, como bloco emergente que propõe alternativas à hegemonia ocidental, desperta reações intensas nesse campo de batalha informacional. Ameaçando o status quo financeiro, político e geopolítico liderado pelo Ocidente, o BRICS torna-se alvo de campanhas de desinformação e operações psicológicas que buscam deslegitimá-lo. Essas ofensivas, conduzidas por think tanks, governos e grandes veículos de mídia, alimentam a polarização, retratando o bloco e seus membros como ameaças à “ordem liberal” e justificando sanções e pressões econômicas.
Desde o surgimento do BRICS em junho 2009, as reações do Ocidente foram marcadas por agressividade, refletindo a resistência à possibilidade de uma ordem global multipolar, lideram essa ofensiva ideológica e geopolítica, sempre instrumentalizadas por instituições de Estado como Central Intelligence Agency CIA, National Security Agency (NSA), U.S. Agency for International Development (USAID) entre outros, assim como instituições privadas dos países centrais, em especial dos EUA. Embora essas instituições se apresentem como defensoras da democracia, dos direitos humanos e da liberdade econômica, suas práticas revelam outra faceta: uma intervenção ativa em processos políticos e econômicos globais, com o objetivo de proteger a hegemonia do Ocidente e marginalizar qualquer projeto alternativo, como o promovido pelo BRICS e por outras nações do Sul Global. A NED, por exemplo, foi criada nos anos 1980 com a missão declarada de promover a democracia ao redor do mundo. No entanto, desde sua fundação, a instituição tem sido acusada de interferir em processos políticos internos de vários países, financiando movimentos alinhados aos interesses dos Estados Unidos. De forma semelhante, o Atlantic Council tem desempenhado um papel fundamental na construção de narrativas que associam a ascensão de países não ocidentais, como China e Rússia, a ameaças globais, promovendo a ideia de que a única alternativa legítima é a manutenção da ordem liberal liderada pelos EUA. A Heritage Foundation e a Carnegie Endowment também se inserem nesse ecossistema, cada uma com abordagens distintas – conservadora e liberal, respectivamente – mas convergindo na defesa da hegemonia ocidental. Tanto os conservadores quanto os neoliberais enxergam qualquer projeto que promova soberania econômica e autonomia política como uma ameaça aos seus interesses globais, atuando de maneira coordenada para desacreditar e desestabilizar essas iniciativas.
Além das influências internacionais, no Brasil, think tanks ultraliberais também desempenham um papel relevante na disseminação de narrativas alinhadas ao Ocidente e contrárias ao BRICS. Instituições como o Instituto Millenium[1], o Centro de Liderança Pública (CLP), a Fundação Lemann e o Livres reforçam o discurso de que a aproximação com o bloco representa um risco para o país, defendendo uma maior adesão ao modelo econômico e geopolítico liderado pelos EUA e pela Europa. O Instituto Millenium, por exemplo, promove desde 2005 uma visão de mercado livre que se opõe a projetos de desenvolvimento autônomo e soberano, característicos do ethos do BRICS. Sua retórica sugere que o Brasil deveria se afastar de alianças com China e Rússia e aprofundar laços com as potências ocidentais, sob a justificativa de modernização econômica.
De forma semelhante, o CLP, ao capacitar lideranças e influenciar políticas públicas, reproduz o discurso neoliberal e desconfia de arranjos multipolares que escapem à órbita de influência ocidental. Embora voltada principalmente para a educação, a Fundação Lemann também exerce um papel relevante nesse contexto. Com laços estreitos com instituições internacionais como o Atlantic Council e a Carnegie Endowment, a fundação participa de discussões globais que promovem uma visão tecnocrática e favorável ao alinhamento do Brasil aos interesses das economias centrais. Por meio de parcerias e programas de formação, seus projetos reforçam a narrativa de que iniciativas de cooperação com o Sul Global são secundárias ou inviáveis. O Livres[2], por sua vez, adota uma postura ultraliberal que critica não apenas a política econômica brasileira, mas também a política externa ativa e autônoma que busca estreitar relações com o BRICS. A organização apresenta frequentemente a aproximação com potências emergentes como arriscada, sustentando que o caminho mais seguro para o Brasil é a adesão plena ao mercado global liderado pelo Ocidente.
Esses think tanks operam em sinergia com fundações internacionais e ajudam a moldar o debate público e a opinião da elite econômica e política brasileira. Suas publicações, eventos e colaborações internacionais reforçam uma narrativa de que os BRICS representam uma ameaça à estabilidade global e aos interesses do Brasil, alinhando-se ao esforço mais amplo de marginalização do bloco e de promoção de uma ordem unipolar. Dessa forma, esses atores locais funcionam como peças-chave em uma rede mais ampla de think tanks, governos e mídia ocidentais, replicando as mesmas narrativas e sustentando a hegemonia do Ocidente. Neste contexto, a Atlas Network emerge como um influente ecossistema de think tanks que atua globalmente na promoção de ideais ultraliberais, com forte ênfase na deslegitimação de iniciativas como o BRICS.
Ao financiar e coordenar instituições ao redor do mundo, a Atlas Network contribui para a criminalização do bloco, fomentando narrativas que o apresentam como uma ameaça à ordem liberal e aos interesses ocidentais. Além da produção de relatórios, essas instituições moldam o discurso internacional e influenciam políticas públicas por meio de conferências, seminários e lobby político, nos quais participam autoridades, empresários e lideranças de opinião. Essas plataformas se tornam espaços para legitimar narrativas de confronto, promovendo a imagem de que o BRICS e o Sul Global representam uma ameaça à estabilidade mundial. Os estudos produzidos por esses think tanks são amplamente disseminados na mídia ocidental e acabam pautando governos e políticas externas, incluindo no Brasil, que frequentemente replica o discurso de desconfiança e criminalização do bloco.
Operações Psicológicas: A Manipulação da Percepção Global Sobre do BRICS
O resultado desse esforço conjunto é uma operação psicológica (psyop) sofisticada e sistemática que sustenta uma polarização artificial entre o Ocidente e o BRICS. De um lado, o Ocidente se posiciona como o guardião da ordem global, da democracia e dos direitos humanos; de outro, os países do BRICS são rotulados como autoritários, instáveis ou ameaçadores, como nos casos de China, Rússia e Irã, os dois últimos rotulados como sendo do “eixo do mal”. Essa narrativa se constrói não por meio de uma ação isolada, mas por um ecossistema coordenado que envolve instituições diversas privadas, mídia corporativa e governos, todos atuando de forma orquestrada para minar qualquer projeto alternativo à hegemonia ocidental. As técnicas mais comuns de psyops incluem campanhas de desinformação, manipulação seletiva de dados e uso de narrativas alarmistas. Um exemplo claro disso são as análises publicadas pelo Atlantic Council, que frequentemente caracterizam o BRICS como uma coalizão que ameaça “desestabilizar a ordem democrática global”, associando os países do bloco a regimes autoritários. Essa associação busca criar uma imagem negativa que molda o debate público e legitima a desconfiança contra o bloco, mesmo em países que têm interesses concretos na cooperação Sul-Sul. Outra técnica utilizada é a amplificação coordenada de relatórios e estudos por meio de mídias tradicionais e redes sociais. Fundações como a NED (National Endowment for Democracy) produzem relatórios que rotulam o BRICS como uma força desestabilizadora e autoritária, enquanto esses conteúdos são repercutidos por grandes veículos de imprensa, como CNN, The New York Times, e Financial Times. Essa narrativa também é reproduzida pela mídia brasileira, que adota o enquadramento ocidental e apresenta as iniciativas do BRICS de maneira enviesada, reforçando a percepção de ameaça ao “bom funcionamento” da ordem global. O uso de think tanks conservadores e neoliberais também é estratégico. Instituições como a Heritage Foundation e a Rand Corporation, publicam estudos que reforçam a necessidade de os EUA e seus aliados manterem a primazia econômica e militar. Esses relatórios influenciam diretamente formuladores de políticas públicas e governos, moldando decisões internacionais e fomentando a desconfiança em relação ao BRICS. Um exemplo concreto foi o tratamento dado ao Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do BRICS, apresentado em diversos estudos como um instrumento de influência chinesa, embora tenha sido concebido como uma alternativa legítima ao sistema financeiro dominado pelo FMI e pelo Banco Mundial. Além disso, campanhas de medo e suspeição são utilizadas para fortalecer a imagem de um BRICS hostil ao Ocidente. Exemplos incluem acusações de espionagem cibernética por parte da China, Irã e da Rússia, associação da política energética do bloco com a insegurança energética global, e a acusação de que o BRICS apoia regimes autoritários na África e na América Latina. Essas campanhas utilizam uma linguagem sutil, mas eficaz, para criar uma percepção pública de que qualquer aproximação com o bloco é um risco econômico ou diplomático. Essas operações não se limitam ao campo da política e da economia, mas avançam também para o campo ideológico e cultural. A promoção de valores neoliberais e a deslegitimação de modelos alternativos de desenvolvimento buscam enfraquecer as bases de cooperação do Sul Global e criar divisões internas nos países que integram o BRICS. Assim, qualquer tentativa de soberania econômica, tecnológica ou geopolítica por parte desses países é rapidamente rotulada como “ameaça à estabilidade global”. Esse ecossistema coordenado de psyops revela que a guerra cultural e ideológica conduzida pelo Ocidente não se dá por força militar explícita, mas pela manipulação da percepção pública, controle narrativo e criminalização de projetos autônomos. Dessa forma, a narrativa hegemônica é constantemente reforçada, garantindo que alternativas multipolares como o BRICS permaneçam marginalizadas no debate público global. As organizações internacionais do Ocidente constroem e disseminam uma narrativa de ameaça em torno do BRICS e do Sul Global, apresentando essas nações como riscos à “ordem liberal” liderada pelos EUA e seus aliados. Esse discurso é moldado com o objetivo de manter o status quo geopolítico e econômico, criminalizando projetos que defendam soberania nacional e desenvolvimento independente. A narrativa da ameaça é central para sustentar a hegemonia ocidental, justificando a necessidade de intervenções políticas, pressões econômicas e campanhas de desinformação. Essa narrativa é alimentada pela demonização de dois dos principais membros do BRICS, China e Rússia, apresentadas como potências revisionistas que desafiam o poder hegemônico dos EUA. O Brasil, especialmente durante governos progressistas, também é alvo desse discurso. Ao tentar promover um desenvolvimento soberano e alianças com o Sul Global, o país é frequentemente enquadrado como um “desalinhado” com os interesses do Ocidente. Governos que investem em políticas de desenvolvimento independente, como no Brasil sob Luiz Inácio Lula da Silva, são frequentemente apresentados pela mídia e por essas instituições como populistas, ineficientes ou inclinados ao autoritarismo. A narrativa de ameaça também é reforçada por meio da pressão diplomática e econômica. A mídia ocidental e relatórios desses think tanks vendem a ideia de que alianças fora dos padrões ocidentais são arriscadas, desincentivando a aproximação entre países do Sul Global. Assim, qualquer tentativa de integração fora da órbita do Ocidente é vista como uma ameaça à ordem internacional, reforçando a dependência econômica e política desses países em relação aos EUA e à Europa.
A Falsa Polarização: Ocidente vs Sul Global
As campanhas de psyops e desinformação são frequentemente utilizadas para dividir o campo do Sul Global e impedir a consolidação de blocos alternativos como o BRICS. Exemplos disso incluem a campanha de desinformação sobre a infraestrutura digital chinesa, como a Huawei[3], rotulada como uma ameaça à segurança nacional em diversos países. Outro exemplo concreto é a campanha de demonização da Rússia, que, além de ser apresentada como uma ameaça militar, é constantemente acusada de interferir em eleições e crises políticas ao redor do mundo. Essa estratégia é parte de uma guerra informacional que visa isolar diplomaticamente a Rússia e, por extensão, enfraquecer o BRICS como um todo. A criminalização de projetos soberanos é uma das táticas mais recorrentes. Quando governos do Sul Global, como o Brasil, a Índia ou a África do Sul, defendem políticas econômicas autônomas, são frequentemente alvo de pressões internacionais e campanhas de descrédito. As instituições ocidentais promovem a ideia de que esses projetos representam uma ameaça à estabilidade regional e aos mercados globais, restringindo a margem de manobra desses países e promovendo a ideia de que somente alianças com o Ocidente garantem progresso e segurança. Portanto, o discurso da ameaça em torno do BRICS e do Sul Global não é apenas retórico, mas faz parte de uma estratégia deliberada de guerra cultural e operações psicológicas. Think tanks, fundações e mídia corporativa trabalham em sintonia para garantir que qualquer alternativa à ordem liberal seja percebida como ilegítima ou perigosa. Ao manter o controle sobre a narrativa global, essas instituições bloqueiam o surgimento de modelos alternativos de cooperação e desenvolvimento, preservando a hegemonia ocidental.
É importante destacar que o Sul Global não busca antagonismo, mas alternativas à hegemonia ocidental. Na verdade, países como Brasil, China, Índia e África do Sul têm se engajado em fóruns multilaterais e tentativas de construir uma nova ordem econômica que priorize suas necessidades e interesses, sem necessariamente se opor ao Ocidente. A polarização promovida por instituições ocidentais é, portanto, uma construção artificial, utilizada como justificativa para intervenções políticas, pressões econômicas e sanções que visam neutralizar qualquer projeto que desafie a hegemonia global. Esse tipo de retórica desumaniza os países do Sul Global, reduzindo-os a meras ameaças, enquanto ignora suas legítimas aspirações por desenvolvimento e autonomia. Casos concretos ilustram essa dinâmica de polarização e manipulação. Por exemplo, durante a crise do petróleo, think tanks ocidentais e veículos de comunicação propagaram a ideia de que as ações dos membros do BRICS eram responsáveis pela volatilidade dos preços, sem considerar os fatores globais que realmente influenciavam o mercado. Além disso, em contextos eleitorais, como nas eleições na África do Sul, campanhas de desinformação foram lançadas para sugerir que o apoio ao BRICS equivalia a um alinhamento com regimes autoritários, uma narrativa que se replicou em várias partes do mundo. Essas campanhas são frequentemente apoiadas por estudos e relatórios que legitimam a pressão econômica e política sobre os países do BRICS, criando um ciclo vicioso de desinformação e intervenção que busca manter a hegemonia ocidental.
Brasil no BRICS: O Papel do Brasil na Reorganização das Relações Internacionais
O Brasil, como um dos membros fundadores do BRICS, desempenha um papel crucial na tentativa de reorganizar as relações internacionais e desafiar a hegemonia ocidental. A partir de sua liderança, o Brasil tem buscado promover uma agenda que prioriza a soberania e o desenvolvimento autônomo, destacando a importância de um novo paradigma que respeite as diversidades e aspirações dos países do Sul Global. No entanto, essa postura tem gerado reações negativas das elites ocidentais, que veem o fortalecimento do BRICS como uma ameaça aos seus interesses econômicos e políticos. A mídia mainstream, muitas vezes alinhada com essas elites, têm contribuído para a construção de narrativas que criminalizam o Brasil, distorcendo suas ações e intenções no cenário internacional. A cobertura da mídia sobre o BRICS e suas iniciativas é frequentemente marcada por uma perspectiva negativa, enfatizando supostas falta de democracia ou desrespeito aos direitos humanos nos países membros. Essa abordagem não apenas marginaliza as vozes do Sul Global, mas também promove uma narrativa que legitima a intervenção ocidental, distorcendo a verdadeira natureza das relações e cooperações que estão sendo construídas. Assim, o Brasil se vê, por um lado, como um ator importante na formação de um novo bloco de poder e, por outro, como alvo das operações de desinformação que buscam desacreditar seu papel e sua liderança.
Neste momento crucial em que ocorre a cúpula do BRICS de 2024, a mídia nacional tem adotado uma postura cada vez mais crítica em relação ao bloco, especialmente no que tange à posição do Brasil e à inclusão de países como Venezuela e Cuba. Artigos e editoriais têm sido veiculados com o intuito de afastar o Brasil do BRICS e de criminalizar esses países, que são frequentemente retratados como exemplos de regimes autoritários que ameaçam a estabilidade e a segurança da América Latina. Em um editorial recente do G1[4], a cobertura enfatiza a necessidade de “definir critérios claros” para a participação de novos países no BRICS, insinuando que a inclusão de nações como Venezuela e Cuba não é apenas indesejável, mas potencialmente danosa ao prestígio e à imagem do Brasil no cenário internacional. Essa narrativa é reforçada pela BBC[5], que destaca as preocupações em torno do apoio brasileiro a governos percebidos como ditatoriais, insinuando que tal aliança poderia comprometer a credibilidade do Brasil frente à comunidade internacional. Essa abordagem midiática não apenas deslegitima a atuação do Brasil dentro do BRICS, mas também busca construir uma percepção de que as cooperações com países do Sul Global, particularmente aqueles que desafiam a hegemonia ocidental, são riscos à democracia e ao desenvolvimento. Essa estratégia de criminalização é uma tentativa clara de polarizar a opinião pública, sugerindo que o fortalecimento do BRICS e a presença de nações como Venezuela e Cuba representam uma ameaça à ordem liberal estabelecida. Através de uma cobertura tendenciosa e alarmista, a mídia nacional alimenta uma narrativa que visa não só desacreditar os valores e as aspirações dos países do Sul Global, mas também assegurar que a agenda ocidental permaneça dominante nas discussões sobre geopolítica e desenvolvimento. Dessa forma, a cúpula do BRICS se torna não apenas um evento de cooperação internacional, mas também um campo de batalha discursivo onde a luta pela narrativa hegemônica se intensifica.
A afirmação de que a entrada da Venezuela no BRICS não convém aos interesses do Brasil levanta uma dicotomia interessante sobre a obrigação moral e ideológica de apoiar um país vizinho que enfrenta profundas crises políticas e econômicas. Enquanto alguns argumentam que a Venezuela representa uma ameaça à estabilidade da região e aos interesses brasileiros, outros sustentam que, em um mundo multipolar, é imperativo que o Brasil assuma uma postura solidária em relação aos seus parceiros do Sul Global, independentemente das divergências ideológicas. Por um lado, a perspectiva de que a Venezuela sempre foi parte da esfera de influência dos Estados Unidos, pela sua proximidade geográfica, sugere que o Brasil deveria se afastar de um país que poderia ser visto como um agente desestabilizador na geopolítica sul-americana. Essa visão pragmática aponta para a necessidade de o Brasil priorizar suas relações com países que, historicamente, têm compartilhado uma aliança estratégica, como a Argentina. No entanto, essa lógica pode simplificar uma realidade complexa, onde as condições de vida e as aspirações do povo venezuelano deveriam ser consideradas ao oferecer oportunidades de desenvolvimento dentro do BRICS e com isso não ficar refém das sanções dos EUA. Por outro lado, a obrigação moral e ideológica de apoiar a Venezuela pode ser vista como um imperativo ético em tempos em que a solidariedade entre nações do Sul Global se torna crucial para contrabalançar a hegemonia ocidental. Essa perspectiva argumenta que o Brasil, como uma potência emergente, tem o dever de apoiar nações que enfrentam sanções e pressões externas, promovendo uma narrativa de resistência e cooperação em vez de uma divisão baseada em interesses geopolíticos. Assim, a reflexão sobre essa dicotomia leva à conclusão de que a política externa brasileira deve encontrar um equilíbrio entre os interesses pragmáticos e as responsabilidades éticas. A questão não é apenas se a Venezuela deve ou não ser incluída no BRICS, mas como o Brasil pode liderar uma coalizão que busca não apenas a estabilidade geopolítica, mas também a justiça social e o desenvolvimento sustentável para todos os povos do Sul Global. Essa abordagem não apenas fortalece a posição do Brasil como um ator global responsável, mas também contribui para a construção de um mundo mais justo, onde a colaboração supera a polarização.
O discurso de marginalização do Sul Global e dos BRICS é uma construção estratégica lideradas pelas elites ocidentais que, ao longo do tempo, têm sistematicamente reforçado a narrativa de que a cooperação entre esses países representa uma ameaça à ordem liberal. Esse esforço conjunto não só distorce a realidade, mas também desumaniza nações inteiras, reduzindo suas aspirações legítimas a meras ameaças à estabilidade global. Ao expor essa dinâmica, fica claro que a luta contra essas narrativas hegemônicas é fundamental para a defesa da soberania dos países do Sul Global, e o Brasil, como membro do BRICS, tem um papel central nesse processo. É imperativo que o Sul Global se prepare para combater essas operações psicológicas e construa uma narrativa independente e soberana, que reflita suas realidades e aspirações. Isso envolve não apenas uma maior conscientização sobre as táticas de desinformação e marginalização, mas também a promoção de uma cooperação que transcenda as divisões artificiais impostas pelas elites ocidentais. Ao fazer isso, os países do Sul Global podem reivindicar seu espaço no cenário internacional de forma digna e autêntica. É fundamental que se combata as narrativas hegemônicas e se fomente a cooperação global fora da lógica de antagonismo fabricado. Em um mundo cada vez mais interconectado, a colaboração entre os países do Sul Global pode oferecer alternativas viáveis ao modelo ocidental, promovendo um futuro mais justo e equilibrado. Que esta reflexão sirva como um convite à ação, inspirando líderes, acadêmicos e cidadãos a unirem forças na construção de um novo paradigma que respeite as diferenças e busque a justiça global.
Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista, Coordenador Executivo da Rede Conecta de inteligência Artificial e Educação Científica e Midiática, é membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI).
Wanderley Anchieta é pesquisador de Pós-Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF), membro do (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT-DSI).
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Novembro vai ter um gosto amargo para Jair Bolsonaro e alguns de seus ex-ministros: a Polícia Federal vai indiciar, em meados do mês, o ex-presidente; os ex-ministros e generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto; o ex-comandante da Marinha e almirante Almir Garnier Santos; o ex-ministro Anderson Torres; e o ex-ministro Paulo Sérgio Nogueira, entre outros. Os seis serão indiciados no inquérito que apura a tentativa de golpe de Estado, após a derrota para Lula, em 2022.
A Polícia Federal tem elementos que mostram a participação dos cinco na trama golpista colocada em prática ao longo de 2022, e, em especial, após o resultado do segundo turno da eleição daquele ano.
Mensagens encontradas recentemente pela PF ligam Bolsonaro à minuta golpista que implementava instrumentos jurídicos que permitiram contestar o resultado das eleições, à margem da Constituição. No texto, encontrado posteriormente com o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid, constava o decreto de Estado de Sítio e de uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem.
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A situação de Bolsonaro também foi agravada pela confirmação dos ex-comandantes do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes, e da Força Aérea Brasileira (FAB), tenente-brigadeiro do ar Carlos Baptista Júnior, de que Bolsonaro os pressionou a aderir a um golpe de Estado para se manter no poder.
O ex-comandante da Marinha Almir Garnier foi o único dos três chefes militares a, segundo a investigação da PF, colocar suas tropas à disposição para uma intentona golpista. O ex-ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, é listado como pertencente ao núcleo de oficiais de alta patente que teriam se valido do cargo “para influenciar e incitar o apoio aos demais núcleos de atuação, por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas, para a consumação do golpe de Estado”.
Já Anderson Torres, fora a omissão no 8 de Janeiro — quando ele, mesmo sendo secretário de Segurança e sabendo do risco de invasão das sedes dos Três Poderes, decidiu tirar férias e deixar Brasília —, será indiciado por ter servido, nas palavras dos ex-comandantes militares, como “tradutor jurídico” da minuta golpista.
Augusto Heleno e Braga Netto
Contra o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional Augusto Heleno, uma das principais provas encontradas pela Polícia Federal foram anotações de teor golpista em uma agenda apreendida em sua casa. O compilado reunia medidas que poderiam ser adotadas pelo governo Bolsonaro, por exemplo, para frear a Polícia Federal e o Supremo, prevendo até a prisão de delegados que se dispusessem a cumprir ordens judiciais consideradas ilegais pelo governo.
A Polícia Federal encontrou provas documentais e colheu depoimentos confirmando que o ex-ministro da Defesa e candidato derrotado à Vice-Presidência, Walter Braga Netto, tentou pressionar o ex-comandante do Exército Freire Gomes a aderir ao golpe de Estado. Numa das mensagens, ele chama o general de “cagão” por não ser golpista.
A PF também encontrou no celular de Braga Netto mensagens trocadas em dezembro de 2022 entre ele e Ailton Gonçalves Moraes Barros, amigo de Bolsonaro, com orientações para que o ex-comandante da Aeronáutica Baptista Júnior fosse atacado, pela mesma razão.
Diante da resistência de Baptista Júnior em aderir aos planos golpistas, Braga Netto o classificou como “traidor da pátria”, enquanto fazia elogios a Garnier, comandante da Marinha, em concordância com o golpismo bolsonarista.
Todos os seis negam que tenham participado de qualquer plano ilegal ou golpista.