quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Queimadas no Cerrado, Pantanal e Amazônia são crimes do agronegócio com a conivência de Bolsonaro e Salles, dizem entidades em carta pública

 

Os grileiros se aproveitam da leniência do governo para incendiar o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia e, assim, destruir a vegetação das terras públicas

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

“Se ainda há Pantanal, Cerrado e Amazônia em pé é porque esses povos estão com os pés em seus territórios, defendendo as matas, as águas, os bichos e a biodiversidade! A eles: nossa gratidão! Com eles, caminhamos em defesa de seus direitos territoriais, que é também a defesa de nossos bens comuns!”, escrevem entidades e organizações da sociedade civil, em carta pública, sobre a destruição de biomas brasileiros pelo fogo e sobre o pronunciamento de Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU.

Eis a carta.

Diante de mentiras que ninguém acredita, é preciso reafirmar o óbvio: As queimadas são culpa do agronegócio!

Bolsonaro mente. Na ONU, para o mundo ver, ridiculariza o Brasil[1]. Inventa uma realidade paralela, cínica, fingida. Os grileiros e desmatadores vibram com a farsa: podem continuar incendiando o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia com a certeza de que o governo não fará nada para impedir. É um crime de lesa humanidade.

Enquanto a sociedade brasileira se indigna e lamenta a devastação, precisamos rememorar e nos inspirar no espírito das lutas dos seringueiros com Chico Mendes realizando os empates amazônicos; da luta das quebradeiras de coco-babaçu com Dona Raimunda, Dona Dijé e até hoje em todo o Cerrado em defesa dos babaçuais; dos tantos heróis e heroínas dos povos indígenas, comunidades quilombolas, pantaneiras, geraizeiras, raizeiras, retireiras, ribeirinhas, assentadas de reforma agrária que, ao longo do tempo, têm defendido as florestas e matas nativas com seus próprios corpos.

É em honra deles e delas, a “história que a história não conta”, que os movimentos, organizações e pastorais sociais do campo; redes, articulações e campanhas; e redes e grupos de pesquisa brasileiros que assinam essa carta afirmam o compromisso com a memória, a verdade e a justiça. Não nos calamos diante de velhos estratagemas autoritários reeditados, que incitam o ódio e o racismo e sustentam farsas e crimes contra os direitos dos povos.

Neste sentido, nos cabe reverberar ao mundo que:

1) A culpa é do agro: as queimadas são estratégias para consolidar a grilagem
Os grileiros se aproveitam da leniência do governo para incendiar o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia e, assim, destruir a vegetação das terras públicas, em sua maioria devolutas e tradicionalmente ocupadas, buscando consolidar processos de grilagem. Contam, desde o princípio, com a perspectiva de posterior regularização fundiária sobre as terras griladas, ou mesmo com a conivência dos Cartórios de Imóveis, e com a anistia do desmatamento ilegal, mesmo sobre áreas de reserva legal obrigatória de imóveis rurais já regularizados. É um ciclo histórico de fogo, desmatamento, grilagem e anistia, baseado na certeza da impunidade, e aprofundado por um governo que desmonta os órgãos de fiscalização e monitoramento e arma as classes proprietárias rurais para avançar com a pistolagem e conflitos no campo.

O Estado brasileiro tem buscado institucionalizar a grilagem de terras através de diferentes ações. As medidas de flexibilização da regularização fundiária e ambiental em múltiplas escalas adotadas na última década, a ausência de fiscalização nos registros de propriedades rurais nos cartórios de imóveis, bem como a atuação conivente de diversos setores do Sistema de Justiça com a apropriação ilegal de territórios tradicionais promovem diretamente o aumento do desmatamento, e impactam os modos de vida dos povos do Pantanal, do Cerrado e da Amazônia. Em especial, o projeto de lei 2633, o “PL da grilagem”, em tramitação, sinaliza aos grileiros a perspectiva de futura anistia.

Ainda que as fronteiras entre o desmatamento legal e ilegal sejam tênues, justamente pelo ciclo histórico de anistia e regularização da ilegalidade, estudos apontam que 62% do desmatamento ilegal estrito senso no Cerrado e na Amazônia (em termos de hectares desmatados), entre 2008 e 2019, esteve concentrado em 2% das fazendas dessas regiões. O Pantanal é emblemático dessa dinâmica: a maior parte da destruição do Pantanal mato-grossense por incêndios (480 mil ha) neste ano ocorreu no período proibitivo do fogo no estado, iniciado em 1º de julho de 2020. Cerca de 67,5% do total (324 mil ha) foram incendiados a partir de nove focos iniciais, cinco dos quais localizados em fazendas inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) como imóveis rurais privados. Os proprietários dessas fazendas comercializam gado para os grupos Ammagi e Bom Futuro que, por sua vez, fornecem gado para conglomerados como JBS, Marfrig e Minerva. Estes focos foram a origem do fogo que queimou aproximadamente 117 mil hectares no Pantanal (área equivalente à cidade do Rio de Janeiro). Outros três pontos de incêndio iniciaram em áreas não cadastradas e impactaram 148 mil hectares. A tríade grilagem-fogo-desmatamento é a marca registrada do governo Bolsonaro.

As áreas desmatadas são postas para a produção de commodities agrícolas – e não alimentos – destinadas, na sua maioria, para a exportação, carregando consigo o sangue dos povos e a devastação dos territórios. Enquanto o governo sacrifica as matas e florestas para exportar commodities, a segurança alimentar se deteriorou no Brasil e regrediu a níveis inferiores a 2004, primeiro ano de medição pelo IBGE.

2) O governo Bolsonaro é cúmplice da devastação por ação e omissão
2020 tem se consolidado como um ano de recordes no Brasil, tanto de exportações do agronegócio, quanto de desmatamento. As queimadas no Pantanal neste ano são as maiores desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) começou a registar os números, em 1998, destruindo 15% da região. De janeiro a meados de agosto de 2020, 560 mil hectares do Pantanal mato-grossense foram queimados, 95% dos quais em área de vegetação nativa. Isso equivale a nove vezes o desmatamento total ocorrido no Pantanal nos últimos dois anos, uma escalada devastadora. Nos últimos 12 meses, a taxa de desmatamento na Amazônia aumentou 34%. Ainda, segundo dados do INPE, os anos de 2019 e 2020 (até setembro) foram de recordes na quantidade de focos de queimadas no Cerrado (50,3 e 43,6 mil), no Pantanal (5,9 e 16,9 mil) e na Amazônia (65,7 e 73,9 mil), totalizando, 141,6 mil focos em 2019 e 153,5 mil focos até 27 de setembro de 2020.

O que não podemos nos esquecer é que por trás de números, fotos de devastação e imagens de satélite com focos de incêndio, estão conflitos por terra e destruição da biodiversidade e de modos de vida indígenas e tradicionais.

O aumento do desmatamento e das queimadas é reflexo do desmonte e militarização de órgãos ambientais em conjunto com a flexibilização das políticas de controle do desmatamento. O Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) são alvos das constantes reestruturações da pasta ambiental, que ocorrem através da redução orçamentária e da nomeação de militares para ocuparem cargos estratégicos, o que resulta na falta de pessoal e de equipamentos no combate ao desmatamento.

O desmonte e a desqualificação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) pelo governo também validam o aumento da devastação ambiental. Desde julho de 2019, ao divulgar o aumento de 88% do desmatamento na Amazônia Legal em relação ao mesmo mês de 2018, o INPE tem sido alvo de ataques do governo Bolsonaro. Além do negacionismo em relação ao avanço do desmatamento, tais posicionamentos do governo são ofensivos e lesivos ao conhecimento científico, deslegitimando as pesquisas desenvolvidas no país.

As ações e omissões não são ocasionais e isoladas, mas convergem em um projeto de Brasil a serviço do agronegócio, em benefício da bancada ruralista no Congresso Nacional, dos latifundiários e dos grileiros, promovendo o desmatamento e o ataque aos direitos territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais.

3) O uso do fogo nos sistemas agrícolas tradicionais é um saber ancestral e muito diferente dos incêndios criminosos do agro
Nos diferentes ecossistemas de florestas, campos, áreas úmidas e savanas, há tradições de manejo por meio do uso do fogo para promover a fertilização da terra para novo plantio (como na roça de toco, coivara ou itinerante), para manejar pasto nativo para criação de gado e/ou para a rebrota de algumas espécies de uso extrativista. Este processo é parte da constituição da agrobiodiversidade ao longo do tempo, ou seja, o cultivo consciente da combinação de uma diversidade de espécies vegetais de interesse humano, seja para alimentação, criação animal, artesanato, arquitetura, medicina ou rituais.

Esse fogo manejado – seja no Cerrado, no Pantanal ou na Amazônia – nos sistemas tradicionais é realizado por meio de regras consuetudinárias que respeitam o tempo e o lugar certo (áreas pequenas e de uso rotativo) e a forma de fazer o fogo, garantindo que ele não se alastre. Os povos e comunidades querem garantir as matas de pé e, por isso, cuidam desse processo e estabelecem protocolos coletivos.

Os incêndios criminosos, ao contrário, têm por objetivo devastar para consolidar a grilagem. São feitos especialmente no tempo seco e a partir de vários focos, muitas vezes usando árvores e galhos em leiras em áreas preparadas para que o fogo se alastre. Os levantamentos sobre os focos de incêndio a partir de propriedades privadas no Pantanal demonstram essa dinâmica criminosa que o governo Bolsonaro quer acobertar, criminalizando os sistemas tradicionais!

4) Quando o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia queimam são os modos de vida de seus povos e comunidades que estão queimando
Os povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionais e assentadas de reforma agrária têm seus modos de vida entrelaçados com as matas, das quais dependem para ter água limpa e abundante, para ter ar puro, para se alimentar e gerar renda vendendo seus produtos nas feiras, para ter suas medicinas tradicionais, para manter suas tradições culturais e espirituais.

É por isso que quando o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia queimam são esses modos de vida que estão queimando, sua reprodução social fica comprometida, a base material da sua existência é usurpada.

O ar poluído pela fumaça do desmatamento que chega nas grandes cidades e as imagens aterradoras dos bichos morrendo devem nos indignar e mobilizar no sentido de lutar por transformações políticas. Mas quando vemos as imagens de devastação, não podemos jamais nos esquecer dos povos e comunidades que são os herdeiros de saberes tradicionais que guiam o manejo e a conservação das águas e da biodiversidade. Eles são os guardiões e defensores desses bens comuns!

5) Assegurar os Direitos territoriais de povos e comunidades do Pantanal, Cerrado e Amazônia é a melhor forma de conter o desmatamento
O governo Bolsonaro tem desmantelado instituições públicas como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), paralisando os processos de demarcação. E, junto com a bancada ruralista no Congresso Nacional, tem promovido legislações que favorecem a grilagem e a anistia aos desmatadores.

Os povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionais e assentadas de reforma agrária defendem as matas e florestas contra as ameaças e a devastação desses grileiros. É por isso que a melhor forma de conter o desmatamento é assegurar seus direitos territoriais, reconhecendo e demarcando suas terras tradicionalmente ocupadas e destinando terras à reforma agrária.

Se ainda há Pantanal, Cerrado e Amazônia em pé é porque esses povos estão com os pés em seus territórios, defendendo as matas, as águas, os bichos e a biodiversidade! A eles: nossa gratidão! Com eles, caminhamos em defesa de seus direitos territoriais, que é também a defesa de nossos bens comuns!

Brasil, 28 de setembro de 2020

Assinam:
Agência 10 Envolvimento
Alternativa para a Pequena Agricultura no Tocantins – APA-TO
AMA – Articulação de Mulheres do Amazonas
APÃWA – Associação do Povo Ãwa
Articulação Nacional de Agroecologia – ANA
Articulação Tocantinense de Agroecologia – ATA
Articulação Pacari
Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil
Articulação Rosalino de Povos e Comunidades Tradicionais – MG
Associação Agroecológica TIJUPÁ
Associação Água Doce – Movimento de Proteção ao Taquaruçu Grande
Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA
Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais – AATR/Bahia
Associação do Assentamento Itamarati – MS
Associação do povo indígena Krahô-kanela-Apoinkk
Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB
Associação Montanha Viva
Associação Nacional da Pastoral do Menor
Associação Paraense de Apoio as Comunidades (APACC)
Associação União das Aldeias Apinajé-Pempxà
Campanha de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo
Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Cáritas Brasileira Regional Maranhão
Cáritas Tocantinópolis
Central Única dos Trabalhadores – CUT
Central Única dos Trabalhadores no Estado de Goiás – CUT Goiás
Centro Acadêmico de Nutrição Maria Emília Pacheco
Centro Burnier de Justiça Socioambiental – MT
Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas
Centro de Terapia Holística Arco-íris
CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço
Clínica de Direitos Humanos e Socioambientais- USJT
COEQTO – Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins
Coletivo de Fecho de Pasto do Oeste da Bahia
Coletivo Ocupações Urbanas Grande Florianópolis
Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Social Transformadora da CNBB NORTE 3
Comissão Nacional de Direitos Humanos
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Comitê Defensor da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira
CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
CONTRAF BRASIL
Cozinha comunitária quilombola de Alcântara – MA
Defend Democracy in Brazil NY
Escola de Formação Política Pedro Casaldáliga
FAOR – Fórum da Amazônia Oriental
FASE – Solidariedade e Educação
FBSSAN – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Fórum de Mobilidade Humana de Passo Fundo
Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental
Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas – FONASC
Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas
Fundacion CAUCE: Cultura Ambiental, Causa Ecologista
Fundo Dema
Gias – Grupo de Intercâmbio em Agroecologia de Mato Grosso
Grassroots International
Grupo Carta de Belém
Grupo de Consciência Negra do Tocantins – GRUCONTO
Grupo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Geografia, Educação do Campo e Questão Agrária – GEOEDUQA (UFGD)
Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia)
Grupo Justiça e Paz ISJ
Grupo Mulher Brasileira
ICSbio – Instituto Cerrado e Sociobiodiversidade
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Instituto Gaia
Instituto Mato Verdinho/Retireiros do Araguaia
Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida
Laboratório de Educação, Restauração e Agroecologia (UNEMAT)
Laboratório de Estudos Afrocentrados em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (LACRI/UnB)
Levante Popular da Amazônia
MIQCB – Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu
Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado – Mopic
Movimento Camponês Popular – MCP
Movimento de Mulheres Camponesas
Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
Movimento Negro Unificado de Pernambuco
Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM
Movimento Quilombola do Maranhão – MOQUIBOM
Núcleo de Estudos Amazônicos (UnB)
Núcleo de Extensão e Desenvolvimento – LABEX (UEMA)
Núcleo de Pesquisa e Extensão em Saberes e Práticas Agroecológicas – Neuza (UFT)
Núcleo em Agroecologia e Agricultura Familiar – NEAF (UFMA)
Núcleo Tramas (UFC)
Pastoral da Juventude Rural
Prelazia de São Félix do Araguaia – MT
Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA
Rede de Agroecologia do Maranhão – Rama
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES
Serviço Pastoral dos Migrantes
Sintrametal – Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Metalúrgicas
Terra de Direitos

Nota:
[1] Em pronunciamento de abertura da Assembleia Geral da ONU em 22 de setembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro disse, entre outras mentiras, que os “incêndios acontecem praticamente, nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”; e que “Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação. Mantenho minha política de tolerância zero com o crime ambiental. Juntamente com o Congresso Nacional, buscamos a regularização fundiária, visando identificar os autores desses crimes.”

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GGN: Xadrez dos três enigmas da pirâmide de Bolsonaro e Guedes, por Luis Nassif

 De um lado, o agravamento da questão social, aumentou o descontentamento popular. A única arma do governo para se contrapor a essa pressão é a renda básica. Aí já se trata de questão de sobrevivência política, da qual Bolsonaro não abrirá mão.


Do Jornal GGN:

Peça 1 – porque governos morrem

Quando não conseguem decifrar o enigma da economia, governos se tornam mais vulneráveis às conspirações ou a mudanças políticas. 

Jango não decifrou o enigma da inflação, e caiu. Figueiredo não administrou a crise externa, a estagnação da economia e a inflação, e a ditadura acabou.

Fernando Henrique Cardoso acabou com o sonho de 20 anos de PSDB quando não administrou a crise externa em 1999. Lula garantiu mais 8 anos de PT quando saiu vitorioso da crise de 2008. E Dilma se tornou suscetível ao golpe do impeachment quando não foi capaz de decifrar o enigma da crise de 2014.

Peça 2 – Guedes, o vendedor de ilusões

Agora, o governo Bolsonaro começa a chegar na mesma encruzilhada que devorou muitos presidentes e consagrou poucos.

Até hoje, Guedes não havia sido submetido a nenhum desafio crônico. Recebeu uma economia morta e a manteve morta, tentando reanimá-la com golpes sucessivos de geração de expectativas inócuas – um estilo muito parecido com o período Guido Mantega, mas tendo uma imprensa mais favorável. Esse apoio permitiu a Guedes exercitar seu estilo de vendedor de Bíblia do mercado de capitais, o sujeito que vende ilusões para captar investidores para seus projetos. Quem o conheceu operando, se surpreendia com sua falta de conhecimento sobre os setores em que investia. Mesmo assim, era capaz de enrolar gestores de carteiras de fundos de pensão e de investimento com promessas mirabolantes.

A razão era uma só. Como os investimentos se davam em novos setores da economia, não havia histórico a ser analisado. Montava-se um finance project, com hipóteses não comprováveis e levava-se no bico o operador de fundos de pensão pouco familiarizado com o mercado, ou seduzido pela proximidade com uma raposa. 

Mais à frente, quando o projeto dava com os burros n´água, realizava-se o prejuízo e jogava na conta da viúva. A Operação Greenfield está aí para comprovar.

Me lembra um personagem dos tempos de juventude, o Boca, que de noite era porteiro da zona da cidade. Um dia ele foi à Bahia e voltou com um patuá para conquistar moças. Quem comprasse que nem se importasse com as cinco primeiras que cairiam aos seus pés. As seguintes seriam melhores ainda. Um amigo comprou só para conferir do que era feita a magia. Era uma cabeça de alho gigante, amassada e fedida.

À frente do Ministério da Economia, o patuá de Guedes são as reformas. Se a reforma da Previdência for aprovada, o Brasil cresce. Se a reforma tributária for aprovada, o Brasil cresce mais ainda, mesmo que não tenha crescido nada com a reforma anterior. Se a reforma administrativa for aprovada, então nem se fala.

Aí o país compra o patuá. Passa um tempo, não aparece nenhuma moça. O Paulo “Boca” Guedes manda esperar que a seguinte será melhor ainda. Mesmo qualquer coisa sendo melhor que nada, não aparece nem a anterior nem a seguinte. Aí reitera a promessa. Depois da terceira ou quarta promessa não atendida, cai a ficha do país que a cabeça de alho não funciona.

Agora, chegou a hora da verdade. 

Há três nuvens no horizonte, um presidente negacionista e um Ministro da Economia inepto. No seu período de graça, Guedes foi incapaz de gerenciar sua equipe,  perdeu-se em uma miríade de prioridades conflitantes, jamais demonstrou conhecer os mecanismos de política pública, nem procurou se aprofundar nos estudos sobre os impactos do Covid-19 na economia. Mesmo assim, o coral de papagaios da mídia não se cansava de tratar a equipe de Guedes como “brilhante”. 

Agora, com as nuvens surgindo no horizonte, acabou o treino e começará o jogo, com três harpias sobrevoando o país. Mas, como diz Adolfo Sachida, Secretário de Política Econômica de Guedes, emulando o discurso do chefe,  “a partir de julho, teremos 18 meses que vão entrar para a história do Brasil, 18 meses de reformas”.

Peça 3 – os 3 enigmas a serem decifrados

Desafio 1 – a inflação

Conforme você pode conferir na Coluna Econômica de hoje, há um movimento de alta disseminada de preços ao produtor que, em breve, entrará nos índices de preços ao consumidor.

Os dados do Índice de Preços ao Produtor (IPP) do IBGE mostram uma alta disseminada em todos os setores da indústria de transformação. Aparentemente a pandemia promoveu uma ampla desestruturação da cadeia produtiva reduzindo a oferta. Ao mesmo tempo, a desvalorização do real aumentou muitos insumos comercializáveis. Agora, com a volta da demanda, criam-se gargalos que levam a aumentos disseminados de preços.

Desafio 2 – as taxas futuras de juros

A fim de fortalecer a Lei do Teto, Guedes desenvolveu um discurso de fim de mundo, marca sua desde os anos 90. Tipo, se a Lei do Teto for desrespeitada, o Brasil acaba.

Ocorre que a lei se tornou inviável: terá que ser revogada. Na voz de um Ministro racional, e com credibilidade, a transição seria tranquila.  Hoje em dia há quase consenso global de que, em momentos de recessão aguda, pode-se emitir moeda, em vez de emitir títulos da dívida, sem nenhuma contraindicação. A emissão ajudaria a financiar programas de apoio social e investimentos públicos. E, com isso, permitir uma recuperação mais rápida da economia e uma redução do déficit público via aumento da arrecadação.

Mas a insistência de Guedes na sacralização da Lei do Teto, tornou-o prisioneiro de uma ficção e criou um gatilho interessante para os grandes investidores de títulos públicos. 

Há dois tipos de taxas de juros básicas na economia: as pré-fixadas e as pós-fixadas, corrigidas pelo IPCA, A pré-fixada tem que levar em conta a inflação futura esperada, mais uma taxa de remuneração. A diferença entre a taxa pré e a pós equivalente é a chamada inflação implícita – ou seja, quanto o mercado está esperando da inflação futura. E essa curva tem aumentado dia a dia.

Os grandes investidores trabalham com gatilhos de expectativa. Por exemplo, criam um jogo de expectativa em relação à reforma A. A cada dia que passa um noticiário financeiro acrítico vai atribuindo oscilações de câmbio e juros às expectativas pela aprovação ou não das reformas. Os grandões vão adquirindo câmbio e juros na medida em que as expectativas açulam as altas. Um pouco antes do fato consumado, vendem seus ativos, fazem lucro e o mercado despenca.

Trata-se fundamentalmente de uma guerra de expectativas, tendo de um lado o Banco Central e o Tesouro; de outro, o mercado. Ocorre que o ponto central de batalha são as declarações e a atuação do Ministro da Economia, autoridade maior. E Guedes é um macaco em loja de louças.

Ao rei entrega-se tudo, menos a dignidade. 

Moro entregou tudo o que Bolsonaro queria, aceitou humilhações, puxadas de orelha em público. Mas a indicação do diretor-geral da Polícia Federal, sem que fosse consultado, seria humilhação demais, que liquidaria definitivamente sua imagem perante a opinião pública. O DG da PF de Guedes é a Lei do Teto. Nos últimos dias, Guedes até amansou a prepotência, tornou-se humilde, acatando os puxões de orelha aplicados por Bolsonaro. Mas o fim da Lei do Teto seria a perda final da dignidade.

A Lei do Teto vai ser revogada, sim. Com ela será impossível qualquer programa de revitalização da economia ou de renda mínima. Mas em lugar de uma transição normal, sem traumas, provocará um terremoto no mercado. 

Desafio 3 – emprego e renda

Ainda não houve um balanço final dos prejuízos do país com o Covid-19. As pessoas ficaram em isolamento, vivendo da renda básica, de poupança guardada ou da ajuda de parentes e amigos. À medida em que a economia for se abrindo, e o IBGE voltar com as pesquisas em domicílio, dará para se ter uma ideia melhor do tamanho do estrago. Que não é pequeno.

Nesse período, houve enorme dispensa de trabalhadores, fechamento de micro e pequenas empresas, desarticulação de setores inteiros. O desemprego está sendo mascarado pela fato de parte dos desempregados não terem voltado a buscar emprego, seja por receio do Covid-19, seja por falta de oferta.

Além disso, a alta de preços tem afetado principalmente a cesta básica, criando um fator a mais de pressão sobre as famílias. Só para efeito de comparação, em São Paulo, segundo levantamentos do DIEESE, o valor atual da cesta básica corresponde a 55,9% do valor do salário mínimo líquido.

Peça 4 – a nova lógica política

O desafio que vem pela frente é para gente grande.

De um lado, o agravamento da questão social, aumentou o descontentamento popular. A única arma do governo para se contrapor a essa pressão é a renda básica. Aí já se trata de questão de sobrevivência política, da qual Bolsonaro não abrirá mão.

Em um primeiro tempo, Bolsonaro acenava para seus fanáticos com retórica e para o mercado com ortodoxia. A popularidade começou a cair.

Ameaçado de cassação por seus arrufos, deixou de lado a retórica e se escudou somente no mercado. A popularidade deixou de cair meramente porque Bolsonaro deixou de falar.

Aí o Congresso lhe mostrou o caminho das pedras, com o aumento dos valores da renda básica. A popularidade começou a subir e Bolsonaro caiu de cabeça, por gravidade, no padrão convencional do populismo de direita: pão e circo. Seu parceiro preferencial passou a ser a população de baixa renda, não mais o mercado e os radicais.

Caberia a Guedes encontrar a forma de conciliar mercado e políticas distributivistas. E, aí, falta imaginação, a retórica já se desgastou. 

Para atender o mercado, não pretende tributar ganhos financeiros e quer restringir os gastos sociais ao que já existe. Ou seja, tirar do pobre para dar ao paupérrimo, hipótese já afastada por Bolsonaro. Para financiar a renda básica, tira-se do Fundeb e dos precatórios. E apresenta essa ideia ao Congresso, logo depois da Casa ter aprovado o novo Fundeb como uma vitória coletiva. Ou seja, um completo sem-noção.

É simbólica a cena de outro dia, com o líder do governo na Câmara e um dos generais arrastando Guedes de uma coletiva para ele parar de falar. E Guedes, mesmo sendo arrastado, tenta continuar a fala. Lembra o velho Boca quando sentava em uma mesa sem ser convidado, não parava de falar sobre o seu patuá da Bahia, mesmo quando era arrastado para longe.

Por outro lado, há um conjunto grande de pressões sobre os preços, e as expectativas do mercado e das empresas estão ancoradas na falsa premissa da manutenção da Lei do Teto.

Guedes não dispõe de nenhuma estratégia para combater a alta disseminada de preços. Seu ideologismo rasteiro impede qualquer intervenção no mercado, mesmo aquelas usuais em economias de mercado, como estoques reguladores ou atuação anticíclica do BC no mercado de taxas.

Peça 5 – as incertezas

Há uma certeza e várias incertezas pelo caminho.

Certeza 1 – O descarte de Guedes. 

Bolsonaro parece ter se dado conta de que foi levado no bico pela conversa de Guedes. O próprio mercado não parece muito paciente com os erros e a falta de funcionalidade do seu Ministro. 

Cada vez mais as prioridades do governo serão a renda cidadã e o Pró-Brasil. Só que, em tempos de procela que se aproximam, não dá para manter um ministro figurativo, que fala pelos cotovelos, não tem o menor senso para administrar expectativas e já se esgarçou com uma longa lista de promessas não cumpridas.

Certeza 2 – Aumento da repressão política. 

Cada vez mais a Polícia Federal está caminhando para se tornar uma polícia política. Prosseguem as intervenções nas universidades federais, o fundamentalismo religioso em todos os níveis. E, na medida em que o nó político aumenta, aumentará a repressão política.

Certeza 3 – o leilão de cargos e dos negócios públicos. 

Ricardo Salles, o Ministro do Meio Ambiente, corre contra o tempo, como se não houvesse amanhã. Em várias partes do governo estão sendo acelerados os negócios, sabendo que as janelas de oportunidade para negociatas poderá se fechar com a crise ou com a eventual perda de popularidade de Bolsonaro.

É uma crise que não terá desfecho amanhã. Mas o cenário acima será o fio condutor da política e da economia brasileira nos próximos meses. E haverá um nó na cabeça dos analistas políticos que trataram Bolsonaro como descartável, antes de virar presidente; o consideraram um gênio, quando a popularidade subiu; e agora terão que reavaliar sua reavaliação, e aceitar que o Brasil é um barco nsendo jogado de um lado para o outro pelas ondas circunstanciais do momento, porque não existe timoneiro nem no Supremo, nem no Congresso, nem nos partidos políticos.

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Através de seus traços e inteligência, a personagem de Quino, Mafalda, já apresentava o que era a Democracia de fachada, ou Fake News, da Casa Grande no Brasil e em toda a América Latina

 



Quino, o criador da personagem Mafalda, morre aos 88 anos

 


Com Mafalda, Quino ganhou mundo e o mundo ganhou ideias progressistas. Ela e seus amigos tornaram-se um símbolo dos anos 60 não só na Argentina, mas geral.

El País

Jornal GGN Joaquin Salvador Lavado, artista gráfico conhecimento mundialmente como Quino, morreu hoje aos 88, na Argentina. Seus traços ganharam o mundo com sua personagem mais conhecida, Mafalda.

Quino nasceu em Mendoza, em 17 de julho e muito cedo iniciou sua caminhada como cartunista e humorista. Em 1954 publicou sua primeira tira no semanário “This is”.

Mundo Quino, seu primeiro livro de humor, foi lançado em 1963 e, em 1964, surge Mafalda, na revista Primera Plana. Com Mafalda, Quino ganhou mundo e o mundo ganhou ideias progressistas. Ela e seus amigos tornaram-se um símbolo dos anos 60 não só na Argentina, mas geral.

Vai-se Quino. Fica conosco sua obra e sua Mafalda.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

A nossa constituição foi levada à falência pela conspiração da Direita entre mídia, Casa Grande, judiciário e militares (expressa na época por Romero Jucá no infame "com o Supremo, com tudo") nos acontecimentos de 2016 e que trouxeram Temer e Bolsonaro ao poder

 

Brasil, terrae incognitae, por Fábio de Oliveira Ribeiro

É evidente que nossa constituição foi levada a falência em 2016.

Do Jornal GGN:

Brasil, terrae incognitae, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No último texto que publicou na internet, o jurista Rubens Casara afirma que:

“Em um país marcado por índices de desigualdade, violência, exploração e insegurança elevadíssimos, “não há muito o que conservar”, diria um verdadeiro conservador.”
https://revistacult.uol.com.br/home/brasil-um-pais-sadomasoquista/#.X3JS8cNHZ8M.twitter

De maneira geral posso concordar com o que ele disse. Mesmo assim, resolvi tecer alguns comentários porque o autor pressupõe que o Brasil é ou pode ser considerado um país. Talvez ele já tenha se transformado naquilo que os romanos chamavam de “terrae incognitae”, conceito requentado por Jean-Christophe Rufin (O império e os novos bárbaros) para se referir aos Estados falidos.

É evidente que nossa constituição foi levada a falência em 2016. Restou o território, povos em conflito e uma imensa estrutura que pode ser descrita como um cabedal de empregos públicos, cuja distribuição será baseada exclusivamente na vassalagem religiosa e/ou ideológica.

O Sistema de (in)Justiça não se compromete com a preservação da legalidade e sim com o predomínio da ideologia racista e da letalidade da orcrim miliciana que assaltou poder. Prova eloquente disso foi o arquivamento pelo CNJ da representação feita contra uma Juíza que usou expressões racistas para qualificar o réu (sobre esse assunto vide https://jornalggn.com.br/cidadania/uma-sentenca-muito-alem-da-imaginacao-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/).

Até meados de 2016 o Brasil era um projeto inacabado de Estado de Direito. Ele virou um bem sucedido Estado fracassado. “Terrae incognitae” sem legislação ambiental disputada por grileiros, invasores de terras indígenas, madeireiros e mineradores, caçadores de animais silvestres, traficantes de drogas e de conceitos jurídicos, pistoleiros que assassinam pessoas nas ruas e seus parceiros que selecionam quem será punido nos Fóruns, censores virtuais da sexualidade alheia e terroristas do direito administrativo.

Tudo que deveria funcionar de uma forma, funciona da maneira oposta. Colapso da ciência, da educação, da segurança alimentar, da saúde pública, da proteção ambiental, da distribuição de Justiça, etc.. O direito à vida deu lugar ao privilégio de matar de uma maneira ou de outra aqueles que são considerados indesejáveis. A dignidade humana virou uma mercadoria cara e rara.

“Quem tem arma de fogo é para usar”, disse Jair Bolsonaro. Há alguns dias um político foi morto durante uma live. Esse é o novo normal.

Para usarmos a linguagem de Rubens Casara, instaurou-se uma espécie de “vale-tudo” em que os direitos constitucionais não valem nada. O triunfo da ignorância, sem dúvida. Mas quem provocou essa transubstanciação do país em  “terrae incognitae”,  dos valores em vícios e das pessoas em coisas, não foram os eleitores fanáticos  de Bolsonaro.

Os arquitetos do golpe de 2016 que degenerou em balbúrdia política e institucional foram os jornalistas e juristas que inventaram o inexistente crime das pedaladas fiscais para derrubar Dilma Rousseff, os escritores e artistas de direita com discurso de esquerda quando se trata de questões sexuais, os empresários e banqueiros que amam o lucro fácil e odeiam a inclusão social, os mestres e doutores sempre prontos a legitimar qualquer coisa em troca de visibilidade na TV, os juízes e procuradores federais que corrompem princípios democráticos para conservar salários acima do teto e aposentadorias abaixo da moralidade. O crime deles foi premeditado, fruto de um cálculo racial/social e executado com grande eloquência e sofisticação doutrinária.

Os “asnos diplomados” são os verdadeiros responsáveis pelo golpe de estado que interrompeu o desenvolvimento político, democrático, econômico, educacional, social e científico do Brasil. Os analfabetos funcionais e fanáticos religiosos foram apenas “idiotas úteis e massa de manobra” como diz Bolsonaro.

Enquanto a extrema direita age sem debater, a esquerda debate sem agir. Tem sido assim desde 2016. Portanto, podemos concluir que o cenário da grande tragédia humanitária está apenas começando a ser construído. Algo muito pior ocorrerá quando a esquerda finalmente  abandonar a letargia. Essa semana tivemos uma prévia do que está por vir https://revistaforum.com.br/brasil/jovem-de-17-anos-e-assassinado-ao-defender-morador-de-rua-de-maltrato-em-mg/amp/.

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Da BBC: A importância dos manguezais, que ficam desprotegidos com decisão do governo Bolsonaro-Mourão e militares

 BBC:

CLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO

Manguezal é considerado um ecossistema essencial para o planeta: é berçário da vida marinha e contribui para o combate do aquecimento global

Duas resoluções que protegiam áreas de preservação permanente como restingas e manguezais e restringiam o desmatamento e a ocupação nesses biomas foram derrubadas na manhã da segunda-feira (28/09) em reunião do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), convocada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. As resoluções estavam em vigor desde 2002.

Salles, que foi gravado neste ano dizendo que era preciso aproveitar a pandemia para "passar a boiada" de aprovação de flexibilização de leis ambientais, já havia reduzido o número de entidades da sociedade que fazem parte do Conama em 2019. O conselho é o principal órgão consultivo do ministério e tinha participação de 96 entidades — hoje, tem 23 membros.

Além das resoluções 302 e 303, que protegem os manguezais, a reunião derrubou a resolução 284/2001, que estabelecia critérios de eficiência de consumo de água e energia necessários para aprovação de projetos de irrigação.

O ministério também liberou a queima de lixo tóxico em fornos usados para produção de cimento — a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que essa queima seja feita em ambiente controlado.

Mas especialistas em ambiente afirmam que essas resoluções eram as únicas normas que de fato protegiam esses biomas, essenciais para manutenção do equilíbrio ambiental no país e no mundo.

Restingas são áreas de vegetação encontradas em regiões arenosas de praias e em dunas.

Manguezais são ecossistemas costeiros, de transição entre a terra e o mar, que ficam em regiões tropicais e subtropicais do planeta. É ali onde ficam aquelas plantas retorcidas por cima da lama escura que, de acordo com a maré, ora ficam cobertas pela água salgada do mar, ora ficam expostas com as raízes fincadas na água que se mistura à dos rios.

Praia de Tamandaré
Legenda da foto,

Manguezais no nordeste foram atingidos por petróleo no ano passado

O Brasil tem quase 14 mil quilômetros quadrados de áreas de manguezais, segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, um documento produzido pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) publicado em 2018.

Além disso, o país tem a maior extensão contínua de manguezais do mundo, e fica em segundo ou terceiro lugar entre os países com maior área de manguezal — a classificação muda de acordo com a metodologia aplicada.

E por que os manguezais são tão importantes?

Eles prestam uma série de "serviços", de acordo com a professora do Instituto Oceanográfico da USP, Yara Schaeffer Novelli, e o biólogo e oceanógrafo Clemente Coelho Júnior, professor da Universidade de Pernambuco que está participando do trabalho de retirada de petróleo das praias.

Ambos são fundadores do BiomaBrasil, instituto que dá capacitações formal e informal sobre conservação da biodiversidade.

Eles citam algumas dessas funções dos manguezais:

1. Berçário natural: de 70% a 80% das espécies de importância econômica passam pelo menos uma fase da vida nos sistemas de manguezal, o que faz com que os mangues sejam conhecidos como os "berçários naturais" da vida marinha.

Ali, os filhotes ficam em seus primeiros estágios de desenvolvimento, aproveitando o ambiente mais calmo, onde as raízes das árvores dão proteção e eles. Como é um ambiente cheio de nutrientes, os filhotes também têm alimentação ali. Depois, migram para o mar aberto.

Praia de Tamandaré
Legenda da foto,

Manguezal em Pernambuco atingido por óleo no ano passado

2. Protege de processo natural de erosão: o mangue atenua o processo de erosão costeiro, protegendo todo litoral. A pressão e energia do mar que atingiriam a costa são dissipadas no mangue.

"O manguezal protege as costas das ações de ressacas, de tsunamis. Isso foi bem provado no tsunami de 2004, no dia 26 de dezembro em Sumatra [Indonésia]. Onde ainda havia manguezal, as comunidades que estavam por trás dessa barreira natural foram menos prejudicadas que aquelas comunidades que já haviam substituído os manguezais por resorts, plantações de arroz e outros", lembra Schaeffer Novelli.

3. Filtro biológico: a floresta tem capacidade de "digerir" matéria orgânica e absorver muitos nutrientes. Se esgoto é lançado no rio, por exemplo, os mangues filtram isso, retendo as substâncias, absorvendo nutrientes e acumulando em sua biomassa.

4. Retenção de sedimentos: os rios correm arrastando solo e sedimentos, e quando chegam no estuário as partículas se acumulam nas raízes do mangue. Isso significa que o mangue cuida do leito do rio, assoreando, retendo os sedimentos antes de chegarem ao mar, garantindo uma água mais limpa na zona costeira.

5. Combate ao aquecimento global: dentro dos ecossistemas, as florestas de mangue são as que mais sequestram carbono da atmosfera. Isso significa que o mangue ajuda a combater o aquecimento global. "O manguezal tem importância nesse contexto moderno das mudanças climáticas por ser muito eficiente fixador e acumulador de carbono", diz Schaeffer Novelli.

6. Importância cultural e cênica: em muitas regiões as áreas de manguezal são tidas como sagradas. Além disso, sua beleza cênica é importante para o turismo.