quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Fomentador de golpes na América Latina e senhor da guerra pelo mundo, morre o sinistro Henry Kissinger

 


Eminência parda e articular de crimes pelo mundo à favor dos Estados Unidos, Henry Kissinger morre aos cem anos.


Henry Kissinger

Henry Kissinger (Foto: Reuters/Annegret Hilse)

247 Em 29 de novembro, Henry Kissinger, um influente diplomata que serviu como conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado sob dois presidentes dos Estados Unidos, faleceu aos 100 anos. A notícia foi divulgada pela Reuters. Kissinger, cujas ações como diplomata deixaram uma marca indelével na política externa dos EUA e lhe renderam um controverso Prêmio Nobel da Paz, morreu em sua casa em Connecticut. A Kissinger Associates Inc., sua firma de consultoria geopolítica, confirmou o falecimento, mas não divulgou as circunstâncias de sua morte. Um serviço funerário privado em família está planejado, seguido por um serviço memorial público em Nova York em uma data posterior, segundo reportagem da Reuters.

Kissinger permaneceu ativo mesmo após seu centenário, participando de reuniões na Casa Branca, publicando um livro sobre estilos de liderança e testemunhando perante um comitê do Senado sobre a ameaça nuclear da Coreia do Norte. Em julho de 2023, ele fez uma visita surpresa a Pequim para se encontrar com o Presidente chinês Xi Jinping.

Durante a década de 1970, no auge da Guerra Fria, Kissinger teve um papel fundamental em diversos eventos globais que mudaram a época, como o golpe de estado no Chile, enquanto servia como conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado sob o presidente republicano Richard Nixon. O refugiado judeu nascido na Alemanha liderou a abertura diplomática dos EUA com a China, conversas de controle de armas entre os EUA e a União Soviética, fortalecimento de laços entre Israel e seus vizinhos árabes, e os Acordos de Paz de Paris com o Vietnã do Norte.

Após a renúncia de Nixon em 1974 durante o escândalo de Watergate, Kissinger continuou como uma força diplomática como secretário de Estado sob o sucessor de Nixon, o presidente Gerald Ford, mantendo opiniões fortes pelo resto de sua vida.

Apesar de muitos o aclamarem por sua inteligência e vasta experiência, Kissinger também foi rotulado como um criminoso de guerra por seu apoio a ditaduras anticomunistas, especialmente na América Latina. Em seus últimos anos, suas viagens foram limitadas por esforços de outras nações em prendê-lo ou interrogá-lo sobre políticas externas dos EUA passadas.

Seu Prêmio Nobel da Paz de 1973, concedido conjuntamente a Le Duc Tho do Vietnã do Norte, que recusou o prêmio, foi um dos mais controversos. Dois membros do comitê do Nobel renunciaram devido à seleção, enquanto surgiam questões sobre o bombardeio secreto dos EUA no Camboja.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O processo golpista da direita no Brasil não cessa, por Francisco Celso Calmon

 A luta de classes no Brasil não se dá no convívio e respeito à democracia, mas golpeando-a com frequência.

Foto: Pedro França/Agência Senado

Publicado em 


GGN. - Não há harmonia e nem independência entre os poderes, o que há é troca de favores, de farpas e dependências.

A funcionalidade dos poderes constitucionais da República Federativa do Brasil, sob a égide e organização do Estado Democrático de Direito, enviesam pelo autocratismo.

Temos uma democracia que se afunila num centralismo de um ou de alguns mandatários que se transformam em déspotas.

Pressões e chantagens entres os poderes vem se tornando o modo de ser da República.

Através de elaboração de leis, o Congresso atinge os demais poderes. O Executivo, dono do cofre, faz o troca-troca com o Legislativo e a sua função de executar políticas públicas fica, em parte, condicionada às emendas parlamentares (antes era pior, era concentrado no relator).

O STF, quando acionado (e ocorre amiúde) e às vezes de ofício, decide o que é ou não constitucional e é recebido como atropelo a outro poder.

Recentemente o Parlamento golpeou o Executivo com a chancela do STF impichando a presidente Dilma, e ao fazer isso, desrespeitou a soberania popular e mudou o rumo da história.

Antes, porém, numa decisão monocrática, canhestra, açodada e pueril, o ministro Gilmar Mendes impediu o chefe do Executivo de nomear um ministro da Casa Civil, Lula, e mudou o destino do governo Dilma. 

Uma nomeação interna corporis foi ceifada por um togado do STF, com base em notícia de jornal.

O Executivo, quando bolsonarista, corrompeu o Parlamento e através da emenda secreta do relator tornou, ilegitimamente, o presidencialismo numa caricatura, num Frankenstein, nem presidencialista e nem parlamentarista, e sim na autocracia de Lira e Pacheco, sob olhos plácidos do Judiciário.

Um judiciário que manteve preso um inocente por 580 dias, tem muito de autocrática a fazer antes de rejubilar-se como corajoso e altaneiro. 

A luta de classes no Brasil não se dá no convívio e respeito à democracia, mas golpeando-a com frequência.

 O histórico e insuperável antagonismo de interesses entre as classes no capitalismo se dá através da política.

Nessa arena as antinomias ocorrem dentro de cada um dos poderes, pois são, em última instância, sintomas e reflexos das ideologias em históricos e permanentes conflitos.

De forma que, não basta a racionalidade de um projeto, mas, outrossim, da oportunidade; é necessário que seja discutido no tempo certo e entendido por todos os poderes envolvidos, visto que a dialógica deve ser o modo de convívio entres os poderes, ditos harmônicos e independentes pela Carta Magna, todavia, não pela história. 

O presidente do Senado não levou em conta essas regrinhas, por isso mesmo, é encarada a PEC do Senado, que reorganiza a funcionalidade do STF, como inoportuna politicamente e de retaliação bolsonarista.

Afinal, o STF teve papel fundamental no desmonte à intentona bolsonarista e continua a ter no processo de criminalização dos envolvidos, cujo exemplo e resultados podem ser inibidores a novas aventuras extremistas.  

Foi também nesse sentido a derrapada do Senador Jacques Wagner, pois um líder não pode vestir e desvestir a casaca da função ao seu bel prazer e conveniência pessoal. Não existe o ora sou líder e ora somente senador. Pior: abstraiu da contradição principal que o país vive desde o advento do lavajatismo, do golpe de 2016 e do bolsonarismo.

Não obstantes as derrapadas e da importunidade, a PEC colocou na ordem do dia o debate: a idade mínima para ingresso na Suprema Corte e as decisões monocráticas, as quais merecem séria e apropriada análise, sem reações intempestivas.  

No artigo “Episódios marcantes da semana”, de 10 de outubro, neste blog, interroguei: Vitaliciedade ou mandato temporário dos ministros do STF?

A vitaliciedade serve para garantir ao STF ser contramajoritário e não estar sujeito a maiorias politicas sazonais. Ocorre que a permanência, dependendo da idade do ingressante, pode durar algumas décadas.

A humanidade está vivendo mais, a idade média de vida do brasileiro aumentou para 77 anos. Em 1940 a expectativa de vida era de apenas 45,5 anos. Vivemos hoje, em média, 31,5 anos a mais do que em meados do século passado.

Por outro lado, o processo de amadurecimento do jovem também está mais demorado. Jovens de 35 anos hoje não têm a mesma maturidade dos jovens das gerações passadas, como a nossa que enfrentou à ditadura militar e nem a da geração getulista.

A permanência dos ministros do judiciário foi de 70 anos para 75 (PEC da bengala, 2015), quando ocorre a aposentadoria compulsória, entretanto, a idade mínima permaneceu a mesma, 35!

Diante disso, considero que a solução imediata, que reduziria a permanência dos ministros no STF e aumentaria o tempo de formação, experiência e consequente maturidade dos futuros ingressantes, seria elevar a idade mínima de 35 para 50 anos.

O requisito de aferição da reputação ilibada não seria de um tempo de vida curto, sujeito a modificações de caráter. O tempo maior, probabilisticamente, mostraria a pessoa em sede de mando de alguma função de chefia, de poder, e a famosa frase: se quer conhecer o caráter de uma pessoa dê-lhe poder, estaria testado na vida pregressa. 

Evitaria também projetos juvenis de pessoais arrivistas para galgar a Suprema Corte.

Ingressar aos 50 e ficar até os 75 anos, manteria a vitaliciedade, condição para sustentar a posição contramajoritário, sempre que mister.  

Por outros lados, a delação do tenente-coronel Mauro Cid continua revelando muitas verdades que só comprovam que o governo anterior afrontava a Constituição amiúde e perseguia a realização de um golpe de estado, se mister, violento, para a implantação da autocracia nazifascista, com consequências inimagináveis.

Contudo, vem sendo noticiado e recebido politicamente com normalidade, sem espanto e indignação crescente, o que teria sido a mais recente e funesta tragédia para a democracia brasileira.

Os mentores e autores militares do 8 de janeiro continuam livres a articular novos atentados à democracia, espraiando seus tentáculos criminosos a outros países do cone sul. A famiglia bolsonarista age à luz do dia para novas investidas extremistas.  

Cercar o Executivo e limitar o Judiciário é a continuidade da implementação do projeto do semiparlamentarismo do Pacheco e Lira, consoante à ideação de parte da direita e do bolsonarismo.

Entretanto, é preciso separar o joio do trigo, evitar os antolhos de uma visão binária, e as circunstâncias nublarem o mérito. 

Não é jogo de dama e nem Fla x Flu, é xadrez. É estratégia. Não dá para esquecer o reloginho, o timing.

O lamentável e perigoso é que o povo está alheio. Os partidos democráticos não informam e nem fomentam o debate sobre questões conjunturais e estratégicas como essas. E a militância, infelizmente, sem formação, embarca no binário, contra ou a favor, sem acuidade para enxergar mais profundamente.

O podcast do Lula não atinge o povo e comícios estão no regra três.

A comunicação virtual tem importância, mas não empolga, não atinge os corações.

Está na hora de voltar as caravanas da cidadania.

O 8 de janeiro não está superado e nem o Estado de direito recomposto.

Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral – E o PT com isso?, Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula. Coordenador do canal Pororoca e um dos organizadores da RBMVJ.

A verborragia do império e as fantasias tecnológicas do Pentágono, William D. Hartung

 

Para dissuadir a China, armas com IA, como “enxames de drones”, são alardeados pelos EUA. Em sua maioria, irreais ou ineficazes – e uma trilionária mina de ouro para a indústria bélica. Jogada pode acirrar disputas e pavimentar a Grande Guerra

Publicado 25/10/2023 às 20:23 - Atualizado 26/10/2023


Por William D Hartung, no Consortium News

No dia 28 de agosto, a vice-secretária de Defesa, Kathleen Hicks, escolheu a ocasião de uma conferência de três dias, organizada pela Associação Industrial de Defesa Nacional (NDIA, na sigla em inglês), o maior entidade comercial da indústria de armas, para anunciar a “Iniciativa Replicador”. Entre outras coisas, envolveria a produção de “enxames de drones” que poderiam atingir milhares de alvos na China num curto espaço de tempo. Chame isso de lançamento em máxima escala da guerra tecnológica.

O seu discurso aos fabricantes de armas reunidos foi mais um sinal de que o complexo militar-industrial (CMI), sobre o qual o presidente Dwight D. Eisenhower nos alertou há mais de 60 anos, ainda está vivo, passa muito bem e está tomando um novo rumo. Pode chamá-lo de CMI da era digital.

Hicks descreveu o objetivo da Iniciativa Replicador nos seguintes termos:

“Para nos mantermos à frente [da China], vamos criar um novo estado da arte… alavancando sistemas autônomos atritáveis [attritable] em todas as áreas, pois são menos caros, colocam menos pessoas em risco e podem ser alterados, atualizados ou melhorados com prazos de entrega substancialmente mais curtos… Iremos combater o ELP [Exército de Libertação Popular] com a nossa própria massa, mas a nossa será mais difícil de figurar, mais difícil de atingir e mais difícil de vencer.”

Pense isso como se a inteligência artificial (IA) fosse para a guerra – e, bem, a palavra “atritável” (attritable), um termo que não funciona bem na língua e que não quer dizer muita coisa para o contribuinte médio, é puro “pentagonês” para falar da capacidade de reposição pronta e rápida de sistemas perdidos em combate. Vamos verificar adiante se o Pentágono e a indústria de armas sequer são capazes de produzir os sistemas de guerra tecnológica do tipo que Hicks elogiou no seu discurso: baratos, eficazes e facilmente replicáveis. Porém, em primeiro lugar, gostaria de me concentrar no objetivo de um tal esforço: confrontar a China.

Alvo: China

Independentemente da avaliação que se tenha quanto ao apetite da China por um conflito militar – em vez de confiar com mais força em suas ferramentas de influência política e econômica cada vez mais poderosas –, o Pentágono está claramente propondo uma solução militar-industrial para o desafio representado por Pequim.

Como sugere o discurso de Hicks aos fabricantes de armas, a nova estratégia se baseará em uma premissa crucial: a de que qualquer corrida tecnológica armamentista futura estará fortemente calcada no sonho de construir sistemas bélicos cada vez mais baratos e mais poderosos, baseados no desenvolvimento rápido de comunicações quase instantâneas, em inteligência artificial e na capacidade de implantar tais sistemas num curto espaço de tempo.

A visão que Hicks apresentou à NDIA é, como você deve ter notado, desvinculada do mínimo desejo de responder pela via diplomática ou política ao desafio de Pequim como uma grande potência em ascensão. Pouco importa que essas seriam, sem dúvida, as maneiras mais eficazes de evitar um futuro conflito com a China.

Um tal abordagem não militar se basearia em um recuo claramente articulado em relação à longa e permanente posição chinesa em sua política “Uma China”. Nesse cenário, os EUA renunciariam a qualquer traço de reconhecimento político formal da ilha de Taiwan como um Estado separado, enquanto Pequim se comprometeria a limitar a meios pacíficos os seus esforços por absorver essa ilha.

Há inúmeros outros temas em que a colaboração entre as duas nações poderia conduzir os EUA e a China de uma política de confronto para uma de cooperação, tal como apontado em artigo recente pelo meu colega Jake Werner do Quincy Institute:

“1) desenvolvimento no Sul Global; 2) enfrentar as mudanças climáticas; 3) renegociar as regras comerciais e econômicas globais; e 4) reformar as instituições internacionais para criar uma ordem mundial mais aberta e inclusiva.”

Alcançar esses objetivos neste planeta, hoje, pode parecer uma tarefa difícil, mas a alternativa – a retórica belicosa e as formas agressivas de competição que aumentam o risco de guerra – deve ser considerada perigosa e inaceitável.

Do outro lado da equação, os proponentes do aumento dos gastos do Pentágono para enfrentar os supostos perigos da ascensão da China são mestres em inflacionar a ameaça. Para eles é fácil e satisfatório exagerar tanto as capacidades militares de Pequim como as suas intenções globais, com o propósito de justificar a manutenção do complexo militar-industrial amplamente financiado até um futuro distante.

Como observou Dan Grazier, do Projeto de Supervisão Governamental, em um relatório de dezembro de 2022, embora a China tenha feito progressos militares significativos nas últimas décadas, a sua estratégia é “inerentemente defensiva” e não representa nenhuma ameaça direta aos Estados Unidos. Atualmente, de fato, Pequim está consideravelmente atrás de Washington tanto em despesas militares quanto em capacidades militares essenciais, incluindo ter um arsenal nuclear muito menor (embora ainda sem dúvida devastador), uma Marinha menos capaz e menos aviões de combate importantes. Contudo, nada disso soa minimamente óbvio se os únicos a serem ouvidos são os alarmistas do Capitólio e dos corredores do Pentágono.

Mas, como salienta Grazier, isto não deverá surpreender ninguém, uma vez que “a inflação da ameaça tem sido há décadas o instrumento preferido dos ‘falcões’ dos gastos com defesa”.

Para citar um exemplo, esse foi notadamente o caso do final da Guerra Fria no século passado, após a derrocada da União Soviética, quando o então presidente do Estado-Maior Conjunto, Colin Powell, disse, em discurso antológico:

“Pensem bem sobre isso. Estou ficando sem demônios. Estou ficando sem vilões. Estou reduzido a [Fidel] Castro e Kim Il-sung [o falecido ditador norte-coreano].”

Desnecessário dizer que isso representava uma grave ameaça para o futuro financeiro do Pentágono e, de fato, o Congresso insistiu na ideia de reduzir significativamente o tamanho das forças armadas, oferecendo menos fundos para gastar em novos armamentos nos primeiros anos pós-Guerra Fria.

Mas o Pentágono foi rápido em destacar um novo conjunto de supostas ameaças ao poder americano para justificar a retomada dos gastos militares. Sem nenhuma grande potência à vista, começou a concentrar-se nos perigos que poderiam representar as potências regionais como Irã, Iraque e Coreia do Norte. Também exagerou fartamente a força militar desses países no esforço de obter financiamento para vencer, não um, mas dois grandes conflitos regionais ao mesmo tempo. Este processo de mudança de foco para novas alegadas ameaças, como justificativa para majorar o establishment militar, foi capturado de forma impressionante no livro de Michael Klare de 1995, Rogue States and Nuclear Outlaws [Estados malfeitores e bandidos nucleares].

Após os ataques de 11 de Setembro, a lógica dos “Estados malfeitores” foi, durante algum tempo, substituída pela desastrosa “Guerra Global ao Terror”, uma resposta claramente equivocada a esses atos terroristas. O resultado disso foram gastos de trilhões de dólares em guerras no Iraque e no Afeganistão e uma presença global antiterrorista que incluiu operações dos EUA em 85 – sim, 85! – países, processo notavelmente documentado pelo Costs of War Project [Projeto Custos da Guerra] da Brown University.

Todo esse sangue e tesouro, incluindo centenas de milhares de mortes diretas de civis (e muito mais mortes indiretas), bem como milhares de mortes de estadunidenses e enormes quantidades de danos físicos e psicológicos devastadores ao pessoal militar dos EUA, resultaram na instalação de regimes instáveis ​​ou repressivos, cuja conduta – no caso do Iraque – ajudou preparar o cenário para a ascensão de uma organização terrorista como o Estado Islâmico (ISIS).

No final das contas, essas intervenções provaram ser tudo menos o “passeio” ou o florescer da democracia previstos pelos defensores das guerras estadunidenses pós-11 de Setembro. No entanto, eles estão de parabéns. Provaram ser uma máquina de dinheiro extraordinariamente eficiente para os habitantes do complexo militar-industrial.

Construindo a “Ameaça Chinesa”

Quanto à China, o seu estatuto de “ameaça do dia” ganhou especial força durante os anos do ex-presidente Donald Trump. Na verdade, pela primeira vez desde o século XX, o documento de estratégia de defesa do Pentágono de 2018 apontou a “competição entre as grandes potências” como a onda do futuro.

Um documento particularmente influente daquele período foi o relatório dessa comissão com mandato do Congresso, a Comissão de Estratégia de Defesa Nacional. O órgão criticou a estratégia de então do Pentágono, afirmando bravamente (sem sustentação em informações significativas) que o Departamento de Defesa não estava planejando gastar o suficiente para enfrentar o desafio militar colocado pelas grandes potências rivais, com foco principal na China.

A comissão propôs aumentar o orçamento do Pentágono entre 3% e 5% acima da inflação nos próximos anos – uma medida que o elevou a um nível inédito de US$ 1 trilhão (ou mais) dentro de poucos anos. Esse relatório seria tão fartamente citado pelos defensores dos gastos do Pentágono no Congresso, e com especial ímpeto pelo ex-presidente do Comitê de Serviços Armados do Senado, James Inhofe, que costumava literalmente acenar às testemunhas nas audiências e pedir-lhes um juramento de fidelidade às suas duvidosas conclusões.

Esse índice de crescimento real de 3% a 5% pegou muito bem para os proeminentes falcões no Congresso e, até o recente caos na Câmara dos Representantes, as despesas enquadravam-se efetivamente nesse padrão.

O que não foi muito debatido foi a pesquisa feita pelo Project on Government Oversight [Projeto de Supervisão do Governo] demonstrando que a comissão que redigiu o relatório e deu gás a esses aumentos de gastos estava pesadamente nas mãos de indivíduos ligados à indústria armamentista. O seu co-presidente, por exemplo, fez parte do conselho de administração da gigante fabricante de armas Northrop Grumman, e a maioria dos outros membros eram ou haviam sido conselheiros ou consultores dessa indústria, ou trabalharam em think tanks fortemente financiados precisamente por essas empresas. Portanto, nunca houve propriamente uma avaliação que fosse mesmo vagamente objetiva das necessidades de “defesa” dos EUA.

Cuidado com o “tecnoentusiasmo” do Pentágono

Só para garantir que ninguém perdesse o ponto central de seu discurso no NDIA, Hicks reiterou que a proposta de transformar o desenvolvimento de armas com a futura guerra tecnológica em mente visava, direta e precisamente, Pequim. “Devemos”, disse ela,

“garantir que o líder da República Popular da China acorde todos os dias, considere os riscos de agressão e conclua: ‘hoje não é o dia’ – e não apenas hoje, mas todos os dias, de agora a 2027, de agora a 2035, de agora a 2049, e além… Inovação é o modo como fazemos isso.”

A noção de que a tecnologia militar avançada poderia ser a solução mágica para desafios complexos de segurança vai diretamente contra o registro real do Pentágono e da indústria de armamento ao longo das últimas cinco décadas. Naqueles anos, novos sistemas supostamente “revolucionários” como as aeronaves de combate F-35, o Sistema de Combate Futuro do Exército (FCS) e o Navio de Combate Litoral da Marinha têm sido notoriamente atormentados por custos excessivos, atrasos de cronograma, problemas de desempenho e desafios de manutenção que, na melhor das hipóteses, limitam severamente suas capacidades de combate. Na verdade, a Marinha já está planejando aposentar cedo vários desses navios de combate litorâneos, e todo o programa FCS foi abertamente cancelado.

Em suma, o Pentágono põe agora suas fichas em uma transformação completa da forma como ele e a indústria fazem negócios na era da IA ​​– uma aposta remota, para dizer o mínimo.

Mas de uma coisa podemos estar certos: a nova abordagem provavelmente será uma mina de ouro para os fornecedores de armas, mesmo que o armamento resultante não apresente nem o cheiro do desempenho anunciado. Essa busca não será isenta de desafios políticos, tais como a obtenção dos muitos bilhões de dólares necessários para dar prosseguimento aos objetivos da Iniciativa Replicador, evitando ao mesmo tempo o lobby dos fabricantes dos produtos atuais de grande valor, como porta-aviões, bombardeiros e aviões de combate.

Os membros do Congresso irão defender os sistemas da geração atual para manter os gastos com armas a fluir para grandes empresários fornecedores e, assim, para os principais distritos eleitorais. Uma solução para o potencial conflito entre o financiamento dos novos sistemas alardeados por Hicks e os dispendiosos programas existentes que atualmente alimentam os titãs da indústria armamentista: aumentar o já enorme orçamento do Pentágono e rumar para aquele pico de um trilhão de dólares, que seria o mais elevado nível desses gastos desde a Segunda Guerra Mundial.

O Pentágono há muito constrói a sua estratégia circundando supostas maravilhas tecnológicas como o “campo de batalha eletrônico” na era do Vietnã; a “revolução nos assuntos militares”, divulgada pela primeira vez no início dos anos 1990; e as munições guiadas com precisão, elogiadas pelo menos desde a Guerra do Golfo Pérsico, em 1991.

Pouco importa que tais armas maravilhosas nunca tenham funcionado como anunciado. Por exemplo, um relatório detalhado do Gabinete de Responsabilidade Governamental sobre a campanha de bombardeios na Guerra do Golfo descobriu que

“a afirmação do DOD [Departamento de Defesa] e dos fornecedores de que as munições guiadas por laser ofereceriam o poder ‘cada alvo, uma bomba’ não foi demonstrada na campanha aérea em que, em média, 11 toneladas de munições guiadas e 44 toneladas de munições não guiadas foram despejadas em cada alvo destruído com sucesso.”

Nas situações em que esses sistemas de armas avançados podem funcionar, com enormes dispêndios de tempo e dinheiro, revelam-se quase invariavelmente de limitada valia, mesmo contra adversários relativamente mal armados (como no Iraque e no Afeganistão, neste século).

No caso da China, uma grande potência rival com uma base industrial moderna e um arsenal crescente de armamento sofisticado, a questão é completamente outra. A busca por uma superioridade militar decisiva sobre Pequim e a capacidade de vencer uma guerra contra uma potência com armas nucleares deveria ser (mas não é) considerada uma missão insensata, com maior probabilidade de estimular uma guerra do que de impedi-la, com consequências potencialmente desastrosas para todos os envolvidos.

Talvez o mais perigoso de tudo seja o fato de um esforço para a produção em grande escala de armamento baseado em IA apenas aumentar a probabilidade de futuras guerras poderem ser travadas de forma demasiado desastrosa sem intervenção humana.

Como Michael Klare apontou em um relatório para a Associação de Controle de Armas, confiar em tais sistemas também aumentará as probabilidades de falhas técnicas, bem como de decisões equivocadas de seleção de alvos baseadas em IA, que poderão estimular o abate não intencional e a tomada de decisões sem intervenção humana. O mau funcionamento potencialmente desastroso de tais sistemas autônomos poderá, por sua vez, apenas aumentar a possibilidade de um conflito nuclear.

Ainda seria possível controlar o entusiasmo tecnológico do Pentágono desacelerando o desenvolvimento dos tipos de sistemas destacados no discurso de Hicks e, ao mesmo tempo, criando regras internacionais para o seu desenvolvimento e implantação futuros. Mas o momento de começar a se opor a mais uma “revolução tecnológica” equivocada é agora, antes que a guerra automatizada aumente o risco de uma catástrofe global. Enfatizar o novo armamento em detrimento da diplomacia criativa e das decisões políticas inteligentes é uma receita para o desastre nas próximas décadas. Tem que haver uma maneira melhor.

O capitalismo anti-vida, de novo, em crise existencial em artigo do economista Michael Roberts

 

Governos estão inertes frente ao colapso climático. Endividamento global e fome atingem picos. Enquanto isso, EUA insistem em guerras infinitas para adiar seu declínio. À beira do abismo, sistema é incapaz de forjar saídas ao caos que criou

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Imagem: Liana Buszka/Filmsforaction

Por Michael Roberts, no The next recession blog | Tradução: Eleutério Prado

No início deste ano, escrevi um post sobre o que alguns chamam de “policrise”. O termo indica que o modo de produção capitalista está se defrontando com diversas tensões disruptivas simultâneas: econômica (inflação e recessão); ambiental (clima e pandemia); e geopolítica (guerra e divisões internacionais). Tudo isso começou a acontecer já no início do século XXI.  Palavra da moda na esquerda conectada às novidades, resume, em muitos aspectos, a minha própria descrição das contradições do sistema. Aquilo que designei como “longa depressão” já da década de 2010 está agora atingindo o seu auge.

Como neste mês de outubro as principais agências econômicas internacionais, o FMI e o Banco Mundial, se reúnem em Marraquexe, vale a pena atualizar aquela postagem. É bom verificar o que está a acontecer com as contradições que compõem a policrise do capitalismo.

Comecemos pelo clima e pelo aquecimento global. As temperaturas globais atingiram um novo recorde em setembro; subiram acima do valor histórico por enorme margem. Cientistas do Copernicus Climate Change Service vem dizendo que 2023 está a caminho de ser o ano mais quente já registrado na história. A temperatura média global em setembro foi 1,75°C mais quente do que a média registrada entre 1850-1900, período ainda pré-industrial, após o qual as mudanças climáticas induzidas pelo homem começaram a ocorrer e a produzir efeitos.

O setembro mais quente já registrado segue o agosto mais quente; este, por sua vez, segue o julho mais quente. Ora, o primeiro referido – último observado – foi o mês mais quente já registrado cientificamente. O nível de setembro de 2023 bateu o recorde anterior daquele mês em 0,5ºC, o maior salto de temperatura já visto. Este calor recorde é o resultado dos elevados níveis de contínuas emissões de dióxido de carbono, combinados com uma rápida mudança no maior fenômeno climático natural do planeta, o El Niño. Ora, este “mês extremo” colocou provavelmente este ano de 2023 no topo. Ele está recebendo, assim, a “honra duvidosa”de se posicionar em primeiro lugar como o ano mais quente, com temperaturas cerca de 1,4ºC acima das temperaturas médias pré-industriais.

O mundo está muito longe de enfrentar efetivamente as alterações climáticas. Ao contrário, continua permitindo que um aumento da temperatura média de até 2,6ºC possa ser alcançado. Medidas contrariantes urgentes deveriam estar sendo tomadas – mas não estão. Foi isso o que pediu a organização internacional do comércio, UNCTAD, em seu último relatório sobre a economia global. Os seus técnicos afirmaram que os países precisam ser “mais ambiciosos na ação”; eles precisam, ademais, definir “metas mais ambiciosas” para reduzir as emissões nos 43% exigidos até 2030 e em 60% até 2035 em comparação com os níveis de 2019, a fim de evitar as terríveis consequências de um planeta mais quente.

Isto exigiria uma transformação “radical” dos sistemas econômicos e sociais em todos os setores, incluindo o reforço das energias renováveis, o fim da utilização de todos os combustíveis fósseis, a redução do metano e de outros gases com efeito de estufa, o fim da desflorestação e a melhoria da eficiência energética.

Nada disso está acontecendo numa medida necessária. A organização International Energy Agency (IEA) tem afirmado que a demanda por combustíveis fósseis teria de cair mais de 25% até 2030 e 80% em 2050. E até 2035, as emissões precisariam diminuir 80% nas economias avançadas e 60% nos mercados emergentes e nas economias em desenvolvimento, em comparação com para o nível de 2022.

Mas as atuais contribuições dos países não estão alinhadas com os compromissos de emissões líquidas zero assumidos por eles próprios. E esses compromissos, ademais, não são suficientes para colocar o mundo no caminho de zerar as emissões líquidas até 2050. O nível das emissões consistente com a limitação do aquecimento a 1,5°C. em 2030 está sendo ultrapassado em até 24 bilhões de toneladas.

O financiamento global para a ação climática atingiu cerca de 803 bilhões de dólares anuais para 2019-20, menos de um quinto do investimento anual estimado de 4 bilhões de dólares em tecnologia de energia limpa, necessário para limitar os aumentos de temperatura a 2ºC ou 1,5ºC. Entretanto, os subsídios globais aos combustíveis fósseis atingiram um recorde de 7 biliões de dólares em 2022, estima o FMI. O estudo desse órgão internacional afirma que os subsídios ao carvão, petróleo e gás natural em 2022 foram equivalentes a 7,1% do PIB global. Isto representou mais do que os governos gastaram na educação e dois terços do que foi gasto na saúde.

Na recente reunião do G20, uma das principais ações políticas necessárias para salvar o planeta, nomeadamente o fim da produção de combustíveis fósseis, foi ignorado.  Para ter alguma chance de cumprir a meta de limitação de temperatura de 1,5°C estabelecida pelo Acordo de Paris, reduções acentuadas na produção e uso de todos os combustíveis fósseis… são essenciais e, nesta questão, os líderes do G20 estão em falta na ação”, disse Alden Meyer, associado sênior da E3G, uma consultora climática. Por trás desse fracasso estão os enormes e grotescos lucros obtidos pelos gigantes do petróleo e do gás no período de inflação pós-pandemia. A sua “relutância” em se “despojar” das suas fontes naturais de lucros (ou seja, não os utilizar e não os explorar para obter mais petróleo e gás) não vem a ser surpresa alguma.

Que respostas políticas foram oferecidas pelas empresas e pelos governos para acabar com o aquecimento global? Primeiro, há os ridículos esquemas de “compensações de carbono”. Muitas das maiores empresas do mundo usaram tais “créditos de carbono” em seus “esforços para garantir a sustentabilidade”; assim, esse mercado voluntário, não regulamentado, cresceu e cresceu, tendo chegado agora a 2 bilhões de dólares (1,6 bilhões de libras esterlinas) em 2021. Esse ano, além disso, viu os preços dos créditos de carbono subirem estratosfericamente.

Os créditos de carbono são muitas vezes gerados com base no pressuposto de que vão contribuir para a mitigação das alterações climáticas; exigem em princípio a cessação do desflorestamento tropical, a plantação de árvores e a criação de projetos de energias renováveis ​​nos países em desenvolvimento. As investigações mostram que mais de 90% desses créditos compensatórios relativos à manutenção das florestas tropicais – os quais são os mais utilizados pelas empresas – constituem-se provavelmente em “créditos fantasmas”, os quais não representam reduções genuínas da emissão de carbono na atmosfera.

Há, também, os impostos e as elevações dos preços relativos à emissão de carbono.  Esta solução de mercado para dissuadir a utilização de combustíveis fósseis é a principal plataforma do FMI para resolver o aquecimento global.  Os regimes de fixação de preços da emissão de carbono, na verdade, apenas escondem a realidade. Nada tem bons resultados, ao mesmo tempo em que a indústria dos combustíveis fósseis e as outras grandes multinacionais emissoras de gases com efeito de estufa permanecerem intocadas.

Seria preciso que essas empresas fossem incluídas num plano para a eliminação progressiva dessas emissões, antes que o ponto de viragem – aquele em que o aquecimento global se torna irreversível – venha a ser ultrapassado. Em vez de esperar que o mercado regulado fale e aja para o bem de todos, o que precisamos é de um plano global em que as indústrias de combustíveis fósseis, as instituições financeiras e os principais setores emissores sejam colocados sob a propriedade e controles públicos. 

Faltam dois meses para os países se reunirem em Dubai na cúpula climática COP28 da ONU. Dado que esta conferência internacional sobre o clima está sendo organizada por um importante país produtor de petróleo e gás, não se pode esperar que aí nasça qualquer ação radical em relação aos combustíveis fósseis.

A outra dimensão da policrise é a pobreza e a desigualdade. Em reunião neste mês, o Banco Mundial apresenta um novo relatório sobre a pobreza. Segundo o Banco Mundial, a pobreza global recuou para níveis mais próximos dos anteriores à pandemia, mas isto ainda significa que foram perdidos três anos na luta contra a pobreza. A recuperação também é desigual: embora a pobreza extrema nos países de rendimento médio tenha diminuído, a pobreza nos países mais pobres e nos países afetados por fragilidades, conflitos ou violência ainda é pior do que antes da pandemia.  

Depois de muitas críticas ao seu limiar ridiculamente baixo para a pobreza a nível mundial, o Banco agora tem três níveis. Em 2023, prevê-se que 691 milhões de pessoas (ou 8,6% da população mundial) vivam em “pobreza extrema” (ou seja, aquelas que vivem abaixo de 2,15 dólares/dia), o que é um pouco abaixo do nível anterior ao início da pandemia. Na linha de 3,65 dólares/dia, a taxa de pobreza e o número de pobres são ambos inferiores aos de 2019. No nível mais realista (mas ainda muito baixo) de 6,85 dólares/dia, uma percentagem menor da população global também vive agora abaixo daquele observado antes da pandemia. Mas devido ao crescimento populacional, o número total de pobres que vivem abaixo desta linha ainda é maior do que antes da pandemia. E quando olhamos para os países mais pobres, eles ainda têm taxas de pobreza mais elevadas do que antes, ou seja, não estão reduzindo o “gap” que os separam de uma condição mais satisfatória.

Estas taxas de pobreza são enganosas, como antes já me esforcei para demonstrar. Quase toda a redução registada na pobreza global (seja qual for o nível utilizado) nos últimos 30 anos deve-se ao fato de que a China tirou cerca de 900 milhões de chineses dessa condição. Excluindo a China, a pobreza global não caiu quer em percentagem quer em número absoluto. Na verdade, mesmo incluindo a China, ainda existem 3,65 bilhões de pessoas no planeta abaixo do limiar de pobreza de 6,85 dólares/dia, segundo o Banco Mundial.

Em 2021, a Lloyd’s Register Foundation, numa parceria com o Instituto Gallup, entrevistou 125 mil pessoas em 121 países, perguntando por quanto tempo as pessoas poderiam cobrir as suas necessidades básicas se os seus rendimentos fossem suspensos. O estudo concluiu que um número impressionante de pessoas, ou seja, 2,7 bilhões, só poderiam cobrir as suas necessidades básicas durante um mês ou menos. E, desse número, 946 milhões poderiam sobreviver durante uma semana, no máximo.

A meta da ONU de acabar com a “pobreza” até 2030 é, pois, uma miragem.

A fome global ainda está muito acima dos níveis anteriores à pandemia. Estima-se que entre 690 e 783 milhões de pessoas no mundo enfrentaram a fome em 2022. Isto representa 122 milhões de pessoas a mais do que antes da pandemia do covid-19. Prevê-se que quase 600 milhões de pessoas sofrerão de subnutrição crônica em 2030. Portanto, a meta da ONU de fome zero até essa data está muito longe de ser cumprida. Mais de 3,1 bilhões de pessoas no mundo – ou 42% – não tinham condições de pagar uma dieta saudável. Em todo o mundo, em 2022, estimava-se que 148,1 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade (22,3%) sofriam de atraso no crescimento, 45 milhões (6,8%) estavam debilitadas e 37 milhões (5,6%) tinham excesso de peso.

De um total de 2,4 mil milhões de pessoas no mundo que enfrentavam a “insegurança alimentar” em 2022, quase metade (1,1 mil milhões) estavam na Ásia; 37% (868 milhões) estavam em África; 10,5% (248 milhões) viviam na América Latina e no Caribe; e cerca de 4% (90 milhões) estavam na América do Norte e na Europa. Um bilhão de indianos não tem condições de ter uma dieta saudável. Isso é 74% da população. A Índia tem um desempenho ligeiramente melhor que o Paquistão, mas está atrás do Sri Lanka. O número correspondente para a China é de 11%.

E depois há desigualdade de riqueza e de renda. O último relatório do Credit Suisse sobre a riqueza pessoal global mostrou que, em 2022, 1% dos adultos (isto é, 59 milhões de pessoas) possuía 44,5% de toda a riqueza pessoal do mundo, um pouco mais do que antes da pandemia em 2019. No outro extremo da riqueza pirâmide, os 52,5% mais pobres da população mundial (2,8 mil milhões de pessoas) tinham uma riqueza líquida de apenas 1,2%.

A desigualdade de riqueza dentre todos países também não está diminuindo em geral. Veja-se: o coeficiente de Gini (a medida habitual da desigualdade) para a riqueza chegou a valores enormes nos Estados Unidos, ou seja, 85,0 (note-se que se esse número fosse 100, isso significaria que um único adulto possuiria toda a riqueza norte-americana). Na verdade, nos Estados Unidos, todas as medidas de desigualdade registaram uma tendência ascendente desde o início da década de 2000. Por exemplo, a parcela de riqueza do 1% dos adultos mais ricos aumentou de 32,9% em 2000 para 35,1% em 2021 nos Estados Unidos.

A desigualdade de riqueza e renda é a contrapartida de um sistema econômico voltado para o lucro e não para o atendimento das necessidades dos povos. Num relatório da UNCTAD lê-se que “durante o período de elevada volatilidade dos preços desde 2020, algumas grandes empresas de comércio de alimentos obtiveram lucros recordes nos mercados financeiros, mesmo quando os preços dos alimentos dispararam globalmente e milhões de pessoas enfrentaram uma crise de custo de vida”O gráfico abaixo mostra isso de forma iniludível:

Na verdade, a pandemia e o subsequente aumento da inflação deixaram a sua marca nos rendimentos médios dos agregados familiares. Tomemos como exemplo o Reino Unido: nunca na memória das famílias trabalhadoras atuais, elas ficaram tão pobres como agora. De acordo com o grupo de reflexão da Resolution Foundation, “esta legislatura está a caminho de ser, de longe, a pior para os padrões de vida desde a década de 1950. Os rendimentos familiares típicos em idade ativa deverão ser 4% mais baixos em 2024-25 do que eram em 2019-20. Nunca, na memória viva, as famílias ficaram tão mais pobres por causa de um parlamento.”

O vencedor do prêmio Nobel (na verdade, prêmio Riksbank) de economia relativo ao ano de 2015, Angus Deaton lançou um novo livro chamado Economics in America: an immigrant economist explores the land of inequality Nele, ataca o fracasso da economia neoclássica em abordar de alguma forma as questões da pobreza e da desigualdade. Os principais economistas dos EUA ignoram deliberadamente os níveis crescentes de desigualdade e o terrível impacto da pobreza, alegando que este não é uma questão para a Economia (Economics).

Veja-se o que diz neste livro: “os salários reais estagnaram desde 1980, enquanto a produtividade mais do que duplicou e os ricos perderam os lucros. Os 10% mais ricos das famílias dos EUA possuem agora 76% da riqueza. Os 50% mais pobres possuem apenas 1%.” Impôs agora um sistema de luta de classes: “a guerra contra a pobreza tornou-se uma guerra contra os pobres”.

Deaton salienta que uma maior igualdade não será alcançada simplesmente por meio de transferências dos recursos coletados de impostos, ou seja, por meio de pagamentos de assistência social; dificilmente – disse ele – esse tipo de interferência no mercado fará qualquer diferença. Uma melhor resposta, para ele, consistiria na elevação dos gastos do Estado na educação e na criação de empregos para todos.

Deaton se opõe às políticas mais radicais: “Não precisamos de abolir o capitalismo ou nacionalizar seletivamente os meios de produção. Mas precisamos colocar novamente o poder da concorrência ao serviço das classes média e trabalhadora. Existem riscos terríveis pela frente se continuarmos a gerir uma economia organizada para permitir que uma minoria ataque a maioria.”

Mas esse ataque da minoria à maioria não seria na verdade a própria essência das sociedades de classes e do capitalismo moderno em particular? Na minha opinião, a solução política de Deaton é tão utópica quanto aquela que ele critica. Pois ela não aborda o controle e a propriedade dos meios de produção pelo capital; assim como não atenta para o fato de que o trabalho submetido ao capital é o que garante que uma pequena minoria tenha grande parte da riqueza e do rendimento, enquanto a sociedade como um todo não tem o suficiente para satisfazer nem mesmo as necessidades básicas.

A pandemia e o subsequente aumento da inflação e das taxas de juro a nível mundial expuseram muitos dos países mais pobres do mundo no Sul Global ao descumprimento de suas obrigações de dívida com o exterior. Devem bilhões a credores, tanto públicos como privados, que estão no chamado Norte Global. Só conseguem pagar isto cortando serviços e quaisquer despesas para satisfazer as necessidades dos seus cidadãos – e cada vez mais não conseguem pagar.

A dívida global atingiu um novo máximo, de acordo com o Instituto Internacional de Finanças (IIF). A dívida total – abrangendo governos soberanos, empresas e famílias – aumentou 10 biliões de dólares, para cerca de 307 biliões de dólares, nos seis meses até junho, ou seja, 336% do PIB mundial. O Banco Mundial estima que 60 por cento dos países de baixo rendimento estão fortemente endividados e correm um elevado risco de ficarem inadimplentes. Ao mesmo tempo, muitos países de rendimento médio também enfrentam desafios orçamentários significativos.

Os aumentos dos juros por parte dos bancos centrais também provocaram um forte aumento dos custos dos empréstimos. Conforme o FMI, eles podem atualmente atingir o nível de 8%. O peso do pagamento de taxas de juro elevados ao próprio FMI está em processo de crescimento: “Se o pior cenário do FMI, de deterioração das condições econômicas globais, se materializar, a procura de apoio do FMI aumentará ainda mais.”

Portanto, o FMI criou uma armadilha da dívida para o próprio FMI! Na reunião deste mês, essa instituição global alertará que os governos “deveriam tomar medidas urgentes para ajudar a reduzir as vulnerabilidades da dívida e inverter as tendências da dívida de longo prazo”.  Mas como? Não há propostas dos países ricos para amortizar estas dívidas ou mesmo para acabar com as tarifas comerciais e as restrições às exportações dos mercados emergentes; ou, claro, parar a enorme extração de lucros dos países pobres e ricos em recursos por parte de empresas multinacionais.

Aquecimento global, pobreza e desigualdade globais sem fim, desastre do endividamento, todas essas vertentes da “policrise” do capitalismo no século XXI estão ligadas entre si devido à crise econômica insolúvel e crescente.

O volume de comércio global está agora caindo e do modo mais rápido desde a pandemia. Os volumes de comércio caíram 3,2% em julho em comparação com o mesmo mês do ano passado, a queda mais acentuada desde os primeiros meses da pandemia do coronavírus em agosto de 2020. A reviravolta nos volumes de exportação é ampla; a maior parte dos países do mundo reportam agora que veem uma queda nos volumes de comércio.

A China, o maior exportador mundial de bens, registou uma queda anual de 1,5%; a zona euro, por sua vez, apontou uma contração de 2,5%; nos EUA, ocorreu uma diminuição de 0,6%. O Banco Mundial também informou que a produção industrial mundial caiu 0,1% em comparação com o mês anterior, impulsionada por quedas acentuadas na produção no Japão, na zona euro e no Reino Unido – e tem diminuído ano após ano.

O Banco Mundial acaba de publicar um relatório no qual considera que a Ásia enfrenta uma das piores perspectivas econômicas em meio século. Os anteriormente chamados “tigres asiáticos”, formados pela Coreia, Taiwan, Singapura, Hong Kong etc., deverão expandir-se a taxas mais baixas em cinco décadas, à medida que o protecionismo dos EUA e os níveis crescentes de dívida representam um entrave econômico.

O Banco Mundial previu que o crescimento da China abrandaria para 4,4% em 2024, a taxa mais baixa em décadas, embora ainda mais do dobro da taxa de qualquer economia do G7. A deterioração das previsões reflete também que grande parte da região está a começar a ser afetada pelas novas políticas industriais e comerciais dos EUA ao abrigo da lei de redução da inflação e da lei protetora dos chips e da ciência associada (Inflation Reduction Act and the Chips and Science Act).

O último relatório da UNCTAD sobre a economia mundial considera que a economia mundial estagnou e os riscos durante o próximo ano estão a aumentar. A UNCTAD prevê que “o crescimento hesitante para o período 2022-24 ficará aquém da taxa pré-Covid na maioria das regiões da economia mundial. O peso da dívida está a esmagar demasiados países em desenvolvimento. O serviço da dívida pública externa em relação às receitas do governo aumentou de quase 6% para 16% entre 2010 e 2021.”

Há muito otimismo nos EUA de que a economia alcançará uma “aterragem suave”, ou seja, que a taxa de inflação voltará em breve à taxa-alvo de 2% ao ano sem que o PIB real entre em recessão.  Tenho discutido essa possibilidade. Mesmo que isso venha a acontecer, uma “aterragem suave” não se aplica ao resto das principais economias capitalistas avançadas. A área do euro está se contraindo fortemente. Ademais, países como o Canadá, o Reino Unido e várias economias menores, como a Suécia estão sofrendo; o Japão, por sua vez, está à beira do precipício.

Na verdade, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no seu último relatório, prevê que o crescimento global em 2024 será inferior ao de 2023, caindo de 3% este ano para 2,7% em 2024. Apesar da economia global, nos primeiros seis meses de 2023, estar provando que é “mais resiliente do que o esperado”, as perspectivas de crescimento “permanecem fracas”. O crescimento real do PIB nas economias capitalistas avançadas abrandará de 1,5% este ano para apenas 1,2% em 2024; já o PIB per capita estará próximo da contração.

Os economistas da OCDE consideram que a inflação não regressará tão cedo aos níveis anteriores à pandemia; em consequência, os bancos centrais deverão manter as taxas de juro elevadas. Na verdade, o FMI também apela aos bancos centrais para que continuem a miserável política de elevar os encargos da dívida na “guerra contra a inflação”. No entanto, como argumentei, como a inflação mais elevada advinha de um problema do “lado da oferta”, o aperto monetário do banco central pouco faz para reduzir a inflação e é apenas uma receita para a “recessão”.

E há duas outras vertentes da policrise do século XXI que ainda estão em desenvolvimento. Há o enfraquecimento do domínio dos EUA nos assuntos mundiais. A “globalização” do comércio e das finanças durante os últimos 40 anos sob a hegemonia dos EUA acabou. O gráfico em sequência mostra isso:

A capacidade do capital dos EUA para expandir os recursos produtivos e sustentar a rentabilidade tem diminuído. Isto explica o seu esforço intensificado para estrangular e conter a crescente força econômica da China e assim manter a sua hegemonia na ordem econômica mundial. 

Um estudo recente de Sergio Camera mostrou “uma estagnação prolongada” da taxa de lucro dos EUA no século XXI. A taxa geral de lucro foi de 19,3% na “era de ouro” da supremacia dos EUA nas décadas de 1950 e 1960; mas depois caiu para uma média de 15,4% na década de 1970; a recuperação neoliberal (coincidindo com uma nova onda de globalização) empurrou essa taxa para 16,2% na década de 1990. Mas nas duas décadas deste século a taxa média caiu para apenas 14,3% – um mínimo histórico.

Isso levou a um menor investimento e ao menor crescimento da produtividade nessa década. Por isso, indiquei já na década de 2010 que se estava na presença de uma “longa depressão”. Usando as palavras de Camera, tem-se que a “base econômica dos EUA ficou seriamente debilitada”.  Ora, isso está a enfraquecer a posição hegemônica do capitalismo norte-americano no mundo. Agora há o que é descrito como “fragmentação geopolítica”, isto é, a ascensão de blocos alternativos que tentam romper com o bloco imperialista liderado pelos EUA. A invasão russa da Ucrânia põe em evidência essa “fragmentação” de um modo dramático.

O que o mundo precisa é de cooperação global para superar a policrise do capitalismo. Em vez disso, o capitalismo está se fragmentando; na verdade, ele é inerentemente incapaz de forjar uma unidade internacional que promova um planeamento global. Os custos econômicos desta fragmentação já foram até medidos: devido à contração do comércio, ela será de até 7% do PIB mundial; com a adição da dissociação tecnológica, a perda de produção poderá atingir 8-12% em alguns países.

A longo prazo é a crescente perturbação econômica trazidas pela ascensão da inteligência artificial (IA). Os economistas da Goldman Sachs consideram que se a nova tecnologia de IA cumprisse a sua promessa (o que é duvidoso), isso traria “perturbações significativas” ao mercado de trabalho. O equivalente a 300 milhões de trabalhadores ficariam expostos ao desemprego em tempo integral nas principais economias devido à automatização do trabalho que eles realizam. Calcula-se que cerca de dois terços dos empregos nos EUA e na Europa estão expostos a algum grau de automatização por meio da IA. Chegou-se a essa conclusão com base em dados sobre as tarefas normalmente executadas em milhares de profissões.

A humanidade e o planeta enfrentam uma crise existencial devido ao aquecimento global e às alterações climáticas; mas será que o trabalho humano será substituído por máquinas pensantes mesmo antes que sobrevenha a catástrofe climática, ampliando assim as desigualdades e aumentando a riqueza para os proprietários das máquinas (capital) e a pobreza para os milhares de milhões (trabalho)? A policrise do capitalismo no século XXI apenas começou.