Aqui, uma coletânea de artigos que publiquei no período, alertando para os riscos de um jornalismo comprometido apenas com o sensacionalismo. E a defesa enfática do garantismo como única maneira de não se soçobrar na selvageria.
Por
Luis Nassif
Hoje, na Folha,
o repórter Rogério Pagan traz informações importantes sobre um dos mais graves crimes de imprensa dos anos 90, o caso do Bar Bodega. Mostra o trabalho solitário do segurança do bar, quando percebeu a armação da polícia imputando o crime aos cinco rapazes, negros é claro, de uma favela próxima.
Faltou o dado mais relevante, o papel da mídia no episódio. O sensacionalismo barato, os assassinatos de reputação, o desrespeito aos direitos fundamentais, já eram parte integrante do jornalismo dos anos 90. Estava sendo gestado lá o ovo da serpente do bolsonarismo.
Mas havia ainda um pluralismo, do qual me vali para denunciar as mazelas, cobrar responsabilidades. Esses crimes estão narrados no livro “O jornalismo dos anos 90”, que padece de um grande erro: a conclusão final de que a competição com a Internet poderia moderar a irresponsabilidade da cobertura da imprensa.
Aqui, uma coletânea de artigos que publiquei no período, alertando para os riscos de um jornalismo comprometido apenas com o sensacionalismo. E a defesa enfática do garantismo como única maneira de não se soçobrar na selvageria.
Introdução ao jornalismo dos anos 90
Em geral, há dois grupos ideologicamente diferentes beneficiários da catarse popular. Um, mais à esquerda, explorando qualquer evento que envolva a chamada “classe dominante” –incluídos nessa generalização qualquer membro de classe média remediada para cima. Outro, mais à direita, explorando qualquer episódio de violência urbana da marginalidade, e mais restrito às emissoras de rádio.
O caso “bar Bodega” fez a festa do segundo grupo. No dia 10 de agosto de 1996 bandidos entraram em um bar frequentado por jovens de classe média, atiraram e mataram o dentista José Renato Tahan e a estudante Adriana Ciola. O episódio provocou comoção popular e abriu espaço para explorações de toda natureza. Uma rádio paulistana deu início a uma campanha contra a violência, exortando empresas e famílias a colocarem faixas brancas nas fachadas. Até a Federação das Indústrias de São Paulo aderiu ao movimento.
Através de seu repórter policial, Valmir Salaro, a TV Globo mais uma vez foi a que mais repercutiu o episódio, graças à sua notável audiência. Pressionado pela campanha, em quinze dias o delegado responsável pelo inquérito prendeu nove suspeitos do crime, rapazes e meninos moradores de uma favela das imediações. Os rapazes permaneceram detidos por 60 dias. Três deles “confessaram o crime”.
Dois meses depois, o promotor Eduardo Araújo da Silva divulgou a suspeita de que os meninos haviam sido torturados, confessado sob tortura, e pediu sua libertação. Imediatamente foi alvo de campanha maciça de protestos, especialmente por parte das rádios e televisões.
Meu primeiro artigo foi escrito aí, em pleno tiroteio, defendendo a posição do promotor.
Em novembro, a Divisão de Homicídios prendeu seis acusados, e a Justiça condenou cinco, como os verdadeiros culpados pelo crime do Bar Bodega.
Mais: descobriu-se que os meninos haviam sido torturados na delegacia. Pior: com o conhecimento dos repórteres que cobriam o caso. A campanha conseguira isso, não apenas o de cegar a opinião pública em relação aos argumentos da defesa, como tornar jornalistas cúmplices de tortura.
Anos depois, um homem de aspecto jovem, acompanhado de esposa e filho, me aborda no Pátio Higienópolis, e se apresenta. Era o promotor Eduardo Araújo da Silva. Lá, me relatou as pressões que sofreu. Quanto às de fora, não se importava. A pressão maior foi da própria corporação, preocupada com a própria imagem em função da campanha encetada pelos meios de comunicação.
O primeiro artigo saiu em 26 de outubro de 1996. O segundo no início de novembro, quando o erro geral da mídia estava suficientemente comprovado e –pior que isso— estavam confirmadas as acusações de tortura, testemunhadas e não denunciadas pelos jornalistas que cobriram o episódio.
Aparentemente, a coluna conseguiu sensibilizar consciências jornalísticas. No dia seguinte o “Jornal Nacional” publicou uma reportagem candente sobre os erros da imprensa, curiosamente preparada por seu repórter policial Valmir Salaro, jornalista que cobriu os escândalos mais clamorosamente errados da mídia.
27/10/1996 Caso Bar Bodega
A atitude do promotor Eduardo Araújo da Silva –de pedir a revogação, por falta de provas, da prisão preventiva dos sete acusados pelas mortes no bar Bodega, em São Paulo—, engrandece o Ministério Público paulista. Ao obter acusações sob tortura, e eventualmente incriminar inocentes, a polícia fere direitos humanos dos acusados e os direitos de quem necessita de segurança –já que se livra da pressão pública, sem ter cumprido seu dever, deixando soltos os verdadeiros culpados.
O promotor e o juiz não correriam risco perante a opinião pública, se cedessem ao “clamor das ruas” e mantivessem presos os acusados, mesmo sem o amparo de provas. Mas correm risco efetivo de incompreensão, se no futuro surgirem evidências da culpa dos acusados.
Conhece-se um grande homem justamente por essa capacidade de correr riscos, em nome de suas convicções. Principalmente quando estão em jogo os direitos de humildes cidadãos anônimos.
No meio da semana, nós, da imprensa, abrimos chamadas burocráticas em rádios, televisões e jornais: “Mais um erro da polícia”. Referíamo-nos ao caso Bodega: dois rapazes de classe media assassinados em um assalto; sete suspeitos presos, quase todos pretos, todos pobres.
Algumas semanas atrás, um promotor corajoso opinou por sua libertação, denunciando que tinham sido vitimas de tortura. E foi alvo de criticas candentes.
Soltos os suspeitos, o caso muda de delegacia e chegam-se a novos suspeitos. E as chamadas burocráticas na imprensa repetem mais uma cerimonia de lava-mãos: mais um erro da policia.
Só́ isso? E as reportagens que condenaram a todos antecipadamente? Como ficamos nós, com fica nossa responsabilidade social?
Os sete jovens confessaram o crime sob tortura. Durante dias, jornalistas se tornaram íntimos do delegado. Receberam as informações que ele quis passar, frequentaram a delegacia, tiveram acesso aos suspeitos. E não saiu uma linha sequer informando a opinião publica de que tinham sido torturados!
O que está acontecendo com a gente? Anos de resistência contra a ditadura, luta contra a censura, pelos direitos humanos, tudo reduzido a uma busca sôfrega de sensacionalismo, a um vale-tudo onde tudo é permitido, desde que se tenha a matéria de impacto. Processos reiterados de linchamentos, com jornalistas comportando-se como policiais ou como linchadores vulgares.
Criamos essa oitava maravilha da impunidade que é o jornalismo sem riscos
Mas será́ que é isso que queremos? É cômoda essa posição de, em vez de respeito, infundir temor? É agradável estar numa roda e sentir que todos se calam quando descobrem que há um jornalista no meio?
Ou se recuperam rapidamente os valores éticos fundamentais da profissão, ou corremos o risco de até continuarmos poderosos. Mas sem nenhuma condição de permanecermos respeitados.
A busca da justiça tem que se dar com um Judiciário forte. As críticas contra seus vícios têm que ser daqueles que, antes de mais nada, acreditam que só haverá respeito aos direitos individuais com um Judiciário forte. E que a melhor ferramenta para o respeito aos direitos individuais é o processo judicial aprimorado, dando todo direito às partes de serem ouvidas -seja ela um honesto dono de escola da Aclimação ou um bandido com crimes comprovados.
O maior desafio que um juiz pode enfrentar é sobrepor sua consciência individual às pressões de toda espécie -da qual a mais insidiosa é a busca da notoriedade.
Por isso, ao receber a Medalha do Mérito Judiciário Ministro Nelson Hungria -outorgada ontem pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região- , dedico aos valentes, que investiram contra os linchadores e colocaram seus princípios acima do seu medo -o juiz que deu a sentença do caso Herzog; o promotor Eduardo Araújo da Silva, que pediu a libertação dos meninos acusados pelo crime do bar Bodega; a juíza Sandra de Santis de Mello, que não mandou a júri os rapazes que queimaram os pataxós; o juiz Hélder Girão, que se voltou contra os abusos de seus pares; e a jovem juíza Raecler Baldesca, que impediu que, sem base legal, se consumasse a prisão do empresário Luiz Estevão, mas que, tenho certeza, lhe aplicará a pena mais severa, quando as acusações contra ele forem comprovadas.
O sacrifício ritual dos rapazes permite malhar figurativamente o “governo”. “Governo”, na maioria dos casos, é visto como uma entidade abstrata, que sintetiza todas as mazelas do mundo, toda injustiça, toda opressão. Afinal, nenhum dos rapazes -nem seus pais- pertence ao “governo” nem à chamada “elite de Brasília”. Ao governo, pertence o presidente FHC, que -para vergonha do intelectual FHC- sancionou o linchamento.
Os defensores do direito absoluto das maiorias são, por definição, propensos ao autoritarismo. Alguns disfarçam, outros são bastante explícitos, como é o caso do leitor em questão: “É revoltante que um jornal como a Folha abra seu espaço, por três dias seguidos, para um senhor chamado Luís Nassif fazer a apologia de quatro assassinos! (…) De minha parte espero uma posição da Folha a respeito desse episódio, uma vez que penso seriamente em suspender minha assinatura”.
Esse tipo de público não se prende muito a análises críticas de fatos. Busca a catarse, e alguns perdem o prumo quando acontece algo que atrapalhe essa celebração ritual. Em alguns casos, mais raros, os leitores não extravasam frustrações nem buscam outros inimigos na “malhação dos Judas”, mas advogam simplesmente a lei de talião -o famoso “olho por olho”, ultrapassado pelos processos judiciais modernos. É o caso do leitor G: “Li seu artigo hoje e gostaria de lhe dizer que, segundo a Bíblia, aqui colhemos o que semeamos. Podemos (e devemos) perdoar nossos inimigos, como nos diz Jesus Cristo, mas Deus não vai deixar de puni-los”.
Esse sentimento -de que o processo judicial, o contraditório (ou seja, contrapor os fatos), é uma maneira de evitar a punição- está presente em boa parte dos e-mails, demonstrando o descrédito na Justiça. Diz o leitor C.: “O “coitadismo” não pode prevalecer sobre a idéia de Justiça. E será que o que você chama de linchamento não é simplesmente uma reação legítima diante da verdade incontroversa dos fatos apurados?”. Mesmo sem ter consultado os autos, o leitor considera a verdade “incontroversa”, inclusive acerca da motivação e dos antecedentes dos jovens, mostrando o excepcional poder de convencimento da mídia.
É evidente -e não poderia ser diferente- que no meio dos e-mails apareceriam os membros das torcidas organizadas de futebol. Como o leitor A.C.S., que mandou o e-mail todo em maiúsculas: “LUIS NASSIF, CADA VEZ MAIS V. TORNA-SE UM JORNALISTA CHAPA-BRANCA. DEFENDEU A CPMF, ESTÁ DEFENDENDO ASSASSINOS FILHINHOS DE JUÍZES. AFINAL, QUEM LHE PAGA? A FOLHA DE SP, PARA UM JORNALISMO ISENTO, COERENTE, JUSTO, OU ALGUM PISTOLÃO DO GOVERNO FEDERAL?”.
Fazer parte dessas maiorias autoritárias expõe seus membros a companhias desse naipe. No fundo, é apenas uma diferença de verniz.
Se os acusados são pretos e pobres, levantam-se os porta-vozes da direita exigindo seu linchamento (caso Bodega). Se são brancos e de classe média, levantam-se os porta-vozes da esquerda querendo levá-los à fogueira (caso Galdino). Invariavelmente, não analisam o episódio nem respeitam os direitos individuais dos acusados. Não lhes importam os fatos, mas a simbologia, o álibi para obter projeção. Não existe nada mais semelhante do que os justiceiros de direita e de esquerda.
(…) Essa incapacidade de perseguir objetivamente os fatos reflete-se em todo o noticiário -não apenas no policial. É um vício de cobertura, que apequena o papel da imprensa e impede que realidades complexas sejam transmitidas com isenção aos leitores.
A diferença de padrão entre as reportagens de publicações internacionais e as nossas é patética. Naquelas, a capacidade de descrever conflitos, mostrando ângulos diferentes dos casos e permitindo ao leitor fazer seu julgamento.
Aqui, o monolitismo absoluto, primário. Qualquer explicação que possa reduzir o impacto das matérias é deixada de lado, para não “esfriar” a denúncia. Leitores que já dispõem de uma exigência maior de qualidade são obrigados a engolir fatos de um ângulo só, como um pianista que só sabe tocar com um dedo.
Vai mudar, não se tenha dúvida. A cada dia que passa, mais leitores, mais jornalistas e mais jornais se chocam com esse primarismo. Nos veículos mais responsáveis, já se nota claramente a preocupação com a ética e a qualidade jornalística. Há um movimento nos sindicatos e nas faculdades para discutir essas questões.
É questão de tempo para que esse primarismo seja varrido do mapa, institua-se o verdadeiro pluralismo que caracteriza as sociedades democráticas e a mídia avance degraus no sentido da qualidade e da defesa dos direitos individuais.
Mas quantos mortos a mais serão deixados pelo caminho?
A propósito do bar Bodega, recebo carta de Fernando Moreira Gonçalves, promotor de Justiça de Jundiaí, narrando o que ocorreu no âmbito interno do próprio Ministério Público em função desse tal “clamor das ruas”.
Diz ele: “Lendo sua coluna deste domingo, não pude deixar de me lembrar do caso Bodega, no qual sua manifestação de apoio ao promotor de Justiça Eduardo Araújo da Silva, num momento em que ele era questionado dentro do próprio Ministério Público, foi fundamental para a preservação da atuação independente daquele promotor”. E, se alguém não tivesse remado contra a maré, o que seria dos rapazes que haviam virado alvo preferencial da turba?
O mesmo ocorreu no caso Escola Base. Segundo livro publicado sobre o assunto, o desembargador Bruno de Andrés só ganhou coragem para investir contra o malfadado “clamor das ruas” e libertar inocentes após minha manifestação, pela TV Bandeirantes e pela Folha. E se não tivesse sido rompido o pacto de unanimidade?
Continua o promotor:
“Em fatos de grande repercussão social, como os acima citados, existe uma grande tensão entre a segurança pública, que todos desejamos, e os direitos e garantias individuais das pessoas investigadas. Tenha a certeza de que sua atuação tem sido importantíssima para a construção de um Estado democrático de Direito em nosso país”.
O que está em jogo não são os rapazes de Brasília ou o proprietário da Escola Base, mas princípios de direitos individuais que têm de ser seguidos, seja qual for o episódio, seja qual for o criminoso, se aspiramos, de fato, a nos tornar uma nação civilizada.
Outro engano é supor que a busca do sensacionalismo barato é inerente ao exercício do moderno jornalismo.
Recentemente, Boni -o homem da TV Globo- proibiu cenas escabrosas nos seus programas populares.
Moralismo? Nada disso. Confiança no próprio taco, crença de que é possível manter a atenção do espectador sem baixar a qualidade.
O jornalista que decide pelo enfoque sensacionalista da matéria o faz pela incapacidade de buscar um enfoque original e de qualidade. É o casamento da intolerância com a incapacidade.
Ao sonegar dados que possam “humanizar” os acusados, sabe ele aquilatar as consequências de seus atos? Dá-se conta de que está revolvendo os sentimentos mais baixos da opinião pública, o lado mais tétrico dos leitores, esse impulso animalesco rumo ao linchamento que em nada diferencia linchadores de assassinos, leitores sôfregos por vingança (não por justiça) de integrantes de torcidas organizadas de clubes de futebol?
Pergunto: é essa a sociedade que buscamos? Decididamente, não é.