A seguinte entrevista com Leonardo Boff, feita por Débora Fogliato, foi extraída do
Sul 21:
| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Um dos mais conhecidos teólogos do Brasil, Leonardo Boff é um nome
atualmente aclamado em todo o mundo, mas que já foi muito marginalizado
dentro da própria Igreja em que acredita. Nos anos 1980, o então frade
foi condenado pela Igreja Católica pelas ideias da Teologia da
Libertação, movimento que interpreta os ensinamentos de Jesus Cristo
como manifesto contra as injustiças sociais e econômicas.
Aos 75 anos, Boff é um intelectual, escritor e professor premiado e
respeitado no país, cuja opinião é ouvida por personalidades com o Papa
Francisco e os presidentes Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Nesta
entrevista ao
Sul21, concedida durante sua vinda a
Porto Alegre, Boff fala do momento atual da Igreja Católica, critica os
religiosos que usam o evangelho para justificar ideias retrógradas ou
tirar dinheiro dos fiéis, tece comentários sobre a situação no Oriente
Médio, aborto, violência e sobre a crise ecológica e econômica mundial.
As duas estão profundamente interligadas: como explica Boff, o
capitalismo está fundado na exploração dos povos e da natureza. “Esse
sistema não é bom para a humanidade, não é bom para a ecologia e pode
levar eventualmente a uma crise ecológica social com consequências
inimagináveis, em que milhões de pessoas poderão morrer por falta de
acesso à água e alimentação”, afirma ele, que é um grande estudioso das
questões ligadas ao meio ambiente.
Sul21 – Nos anos 1980, por causa dos ideais defendidos pela
Teologia da Libertação, o senhor foi condenado a um ano de silêncio
obsequioso e sofreu várias sanções, que acabaram sendo amenizadas diante
da pressão social sobre a Igreja Católica, mas que o fizeram abandonar o
hábito. O senhor acredita que atualmente a Igreja agiria da mesma
forma?
Leonardo Boff – Não. O atual Papa diz coisas muito
mais graves do que eu disse no meu livro “Igreja: carisma e poder”, que
foi objeto de condenação. Se ele tivesse escrito isso, teria sido
condenado. Eu disse coisas muito mais suaves, mas que afetavam a Igreja.
Dizia que a Igreja não respeitava os direitos humanos, que é machista,
tem um conceito de poder absolutista e absolutamente superado, sem
limites.
Os tempos mudaram e a graças a Deus temos um Papa que pela primeira
vez, depois de 500 anos, responde à reforma, responde a Lutero. Lutero
lançou o que chamamos de Princípio Protestante, que é o princípio de
liberdade. E esse Papa vive isso. E vive o cristianismo não como um
feixe de verdade que você adere, mas como o encontro vivo com Jesus. Ele
distingue entre a tradição de Jesus, aquele conjunto de ideais,
tradições, e a religião cristã, que é igual a qualquer outra religião.
Ele diz: “eu sou do movimento de Jesus”, e não da religião católica.
Tais afirmações são escandalosas para cristãos tradicionais, mas são
absolutamente corretas no sentido da Teologia, daquilo que nós sempre
dizíamos e éramos perseguidos por isso.
E eu fico feliz que a Igreja não é mais uma instância que nos
envergonhe, mas sim uma instância que pode ajudar a humanidade a fazer
uma travessia difícil para outro tipo de sociedade que respeite os
direitos da natureza, da Terra, preocupada com o futuro da vida. Eu
mesmo tive contato com o Papa e o tema central dele é vida. Vida humana,
da terra, da natureza. E nós temos que salvá-la, porque temos todos os
instrumentos para destruí-la.
“Pregar na África que é pecado usar a camisinha, em lugares onde
metade da população sofre de Aids, é cometer um crime contra a
humanidade. Foi o que o papa Bento XVI disse várias vezes.”
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Sul21 – O senhor acredita que a Igreja Católica, sob
orientação do papa Francisco, vai efetivamente renunciar a alguns temas
tratados como tabu, como a união homossexual?
Leonardo Boff – Ainda não sabemos bem a opinião
dele. Ele diz: “quem sou eu para julgar?”, no fundo diz para respeitar
as pessoas. Ele vai deixar haver uma grande discussão na Igreja sobre a
questão do divórcio e dos homossexuais, sobretudo a moral sexual cristã,
que é extremamente rigorosa e restrita, em alguns casos é criminosa.
Por exemplo, pregar na África que é pecado usar a camisinha, em lugares
onde metade da população sofre de Aids, é cometer um crime contra a
humanidade. Foi o que o papa Bento XVI disse várias vezes. Eu acho que o
Francisco é mais que um Papa, é um projeto de mundo, projeto de Igreja,
ele se dá conta de que a humanidade é uma, está sob risco e temos que
nos unir nas diferenças para superar a crise.
Acho que a grandeza desse Papa não será ele definir as coisas, mas
deixar que se discutam. E eu acho que ele vai respeitar as pessoas,
porque a maioria não é homossexual, ou homoafetivo, por opção. As
pessoas se descobrem homoafetivas. E ele vai dizer: “ande dentro de
Deus, não se sinta excluído”. Vai dizer que (os homossexuais) são tão
filhos de Deus quanto os outros. E daí respeitar. Talvez ele diga “não
chame matrimônio, que é um conceito canônico”. Mas uma união
responsável, que merece a benção de Deus, e que tenha uma proteção
jurídica, que tenha seu lugar na Igreja, que possam frequentar os
sacramentos. Esse seguramente vai ser o caminho dele.
Sul21 – E com essas posições do Papa Francisco, o senhor acha
que Igreja Católica talvez consiga recuperar fiéis diante do avanço das
igrejas evangélicas?
Leonardo Boff – Esse Papa não é proselitista e diz
claramente que o evangelho deve atrair pela sua beleza, seu conteúdo
humanitário. Ele não está interessado em aumentar o número de cristãos,
em fazê-los voltar. Está interessado em que as pessoas, com a situação
confessional que têm, se coloquem à disposição do serviço da humanidade,
das coisas boas que a humanidade precisa.
É aquilo que nós chamamos de “ecumenismo de missão”. Estamos
divididos, é um fato histórico, mas não é uma divisão dolorosa. Porque
cada um tem seus antros, profetas e mestres. Mas como nós juntos nos
reconhecemos nas diferenças e como juntos vamos apoiar os sem terras, os
sem tetos, os marginalizados, as prostitutas. Esse serviço nós podemos
fazer juntos.
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“Ninguém é a favor do aborto em si, as mulheres que fazem aborto não
pediram por isso. Mas muitas vezes passam por situações tão delicadas
que precisam tomar essa decisão”
Sul21 – Muitas pessoas usam a religião para justificar
opiniões conservadoras, machistas e homofóbicas. Qual a sua opinião
sobre essas posições?
Leonardo Boff – Há o exemplo concreto do aborto nas
últimas eleições. Isso mobilizou as igrejas, foram até o Papa, fizeram
pressão sobre os fiéis. Eu acho que é uma falsa utilização da religião. A
religião não foi feita para isso. E todos devem reconhecer, e são
obrigados a reconhecer pela Constituição, que há um Estado que é laico.
Então essas pessoas pecam contra o princípio fundamental da democracia,
não são democratas. Eles podem ter a opinião deles, mas não podem
impô-la.
É muito fácil a posição deles, é salvar a criancinha. E depois que
salvou ela está na rua, abandonada, passando fome e morrendo. E nem têm
compaixão pelas mais de cem mil mulheres que morrem por ano por causa de
abortos malfeitos. São pessoas que pecam contra a democracia e contra a
humanidade, o senso humanitário. Ninguém é a favor do aborto em si, as
mulheres que fazem aborto não pediram por isso. Mas muitas vezes passam
por situações tão delicadas que precisam tomar essa decisão.
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O que eu aconselho e o que muitos países fizeram, inclusive Espanha e
Itália, que são cristianíssimas e permitiram o aborto, pediram que
houvesse um grupo de acompanhamento, que converse com a mulher e
explique o que significa. E deixar a decisão a ela, se ela decidir vamos
respeitar a decisão. Mas ela faz com consciência. Isso eu acho que
seria democrático e seria responsável diante da fé, você não renuncia à
tua fé, mas respeita a consciência, que é a instância última a que
responde diante de Deus.
“Então eles têm um país que foi vítima do nazismo e utiliza os
métodos do nazismo para criar vítimas. Essa é a grande contradição.”
Sul21 – Algumas igrejas aqui cobram dízimo dos fiéis, muitas
vezes dizem que para agradecer a Deus as pessoas têm que pagar as
igrejas. Qual a sua opinião e como a teologia da libertação vê essa
prática?
Leonardo Boff – São igrejas do chamado “evangelho da
prosperidade”, dizem que você dá e Deus te devolve. Eu acho que é um
abuso, porque religião não foi feita para fazer dinheiro. Foi feita para
atender as dimensões espirituais do ser humano e dar um horizonte de
esperança. Agora quando a igreja transforma a religião num poder
econômico, como a Igreja Universal do Reino de Deus, que em Belo
Horizonte tem um shopping ao lado, chamado de “o outro templo”, que é o
templo do consumo, e depois do culto as pessoas são instruídas a
comprar. Para mim, é a perversão da religião. Inclusive acho que é
contra a Constituição utilizar a religião para fins não naturais a ela.
Eu combato isso, sou absolutamente contra. Porque isso é enganar o povo,
é desnaturar e tirar o caráter espiritual da religião. A religião tem
que trabalhar o capital espiritual, e não material.
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Sul21 – E em relação a essa crise violenta entre Israel e a
Faixa de Gaza, em que o Estado de Israel já matou centenas de pessoas,
como o senhor acha que o resto do mundo deveria agir em relação a isso? O
Papa poderia ser uma pessoa a mediar o conflito?
Leonardo Boff – Esse Papa é absolutamente
contemporâneo e necessário. Acho que é o único líder mundial que tem
audiência e eventualmente poderia mediar essa guerra de massacre
criminosa que Israel está movendo contra Gaza.
E eu acho que grande parte da culpa é do Obama, que é um criminoso.
Porque nenhum ataque com drones (avião não tripulados) pode ser feito
sem licença pessoal dele. Estão usando todo tipo de armas de destruição,
fecharam Gaza totalmente, ficou um campo de concentração, e vão
destruindo. Então eles têm um país que foi vítima do nazismo e utiliza
os métodos do nazismo para criar vítimas. Essa é a grande contradição.
E os Estados Unidos apoia, o Obama e todos os presidentes são vítimas
do grande lobby judeu, que tem dois braços: o braço dos grandes bancos e
o braço da mídia. Eles têm um poder enorme em cima dos presidentes, que
não querem se indispor e seguem o que dizem esses judeus radicais,
extremistas e que se uniram à direita religiosa cristã. Isso está aliado
a um presidente como Obama que não tem senso humanitário mínimo,
compaixão para dizer “acabem a matança”.
“Mas tudo o que dá sentido humano não entra no PIB: o amor, a
solidariedade, a poesia, a arte, a mística, os sábios. Isso é aquilo que
nos faz humanos e felizes.”
Sul21 – Qual a sua avaliação da atual disputa para a presidência da República?
Leonardo Boff – Notamos que é uma disputa de
interesses de poder. Não se discute o projeto Brasil, se discute poder. O
que eu acho lamentável porque não basta ter poder, o poder é um meio.
Eu vejo que há duas visões de futuro. Uma é mais progressista, que é
levada pelo atual governo. E eu torço que ele ganhe. Mas ganhar para
avançar, não reproduzir agenda. Ele atingiu uma agenda que é o primeiro
passo, de incluir milhões de pessoas que têm agora direito de consumir o
mínimo, de comida, ter geladeira, casa, luz. Isso é direito de todo
cidadão. Essa etapa eu acho que o governo cumpriu e bem. Mas agora vem
uma nova etapa, porque o ser humano não tem só fome de pão. Tem fome de
escola, beleza, lazer, participação na vida social, dos espaços
públicos.
E há os que querem impor aquilo que está sendo imposto e não está
dando certo na Grécia, em Portugal, na Itália, na Irlanda, que é o
neoliberalismo mais radical. Que no fundo é uma austeridade, é o arrocho
salarial, aumentar o superávit primário, que é aquele bolo com que se
paga os rentistas. Há a visão de futuro que quer enquadrar o Brasil
nesse tipo de globalização que é boa para o capital, porque nunca os
capitalistas enriqueceram tanto. Tanto que nos Estados Unidos 1% tem o
equivalente a 99% da população, enquanto no Brasil 5 mil famílias
controlam o equivalente a 43% do PIB. São famílias da casa-grande, que
vivem do capital especulativo.
Acho que nós temos que vencer esse projeto, porque não é bom para o
povo. Mesmo com todos os defeitos e violações de ética que houve, erros
que o PT cometeu, ainda assim o projeto deles é o mais adequado para
levar adiante um avanço. Agora se for ganhar para avançar, porque se for
para reproduzir dá no mesmo do que outro ganhar.
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Sul21 – O senhor mencionou a crise econômica pela qual passam
a Grécia, Espanha e países europeus que seguem o neoliberalismo. Há
maneiras de reverter a crise?
Leonardo Boff – A Europa está tão enfraquecida e
envergonhada que nem mais aprecia a vida. Aquilo que mais escuto em cada
palestra que vou na Europa é pessoas me pedindo “por favor, me dê
esperança”. Quando um povo perde esperança, perde o sentido de viver.
Isso acontece porque alcançaram tudo que queriam, dominaram o mundo,
exploraram a natureza como quiseram, ganharam um bem-estar que nunca
houve na História e agora se dão conta que são infelizes. Porque o ser
humano tem outras fomes. Fome de amar e ser amado, de entender o outro,
conviver, respeitar a natureza.
E tudo isso foi colocado à margem. Só conta o PIB. Mas tudo que dá
sentido humano não entra no PIB: o amor, a solidariedade, a poesia, a
arte, a mística, os sábios. Isso é aquilo que nos faz humanos e felizes.
E essa perspectiva em que só contam os bens materiais poderá levar a
humanidade a uma imensa tragédia. Dentro do sistema capitalista, não há
salvação. Por duas razões. Primeiro porque nós encostamos nos limites da
Terra. É um planeta pequeno, com a maioria dos recursos não renováveis.
O sistema tem dificuldade de se auto-reproduzir, porque não tem mais o
que explorar. E segundo porque os pobres, que antes da crise que eram
860 milhões, pularam, segundo a FAO, para um bilhão e 200 milhões.
Então esse sistema não é bom para a humanidade, não é bom para a
ecologia e pode levar eventualmente a uma crise ecológica social com
consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas poderão morrer
por falta de acesso à água e alimentação. Esse sistema, para minha
perversidade total, transformou tudo em mercadoria. De uma sociedade
com mercado para uma sociedade
de mercado, transformando alimentação em mercadoria. O pobre não tem dinheiro para pagar, então ele passa fome e morre.
| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Essa nova relação com a natureza e o mundo é o que precisamos
desenvolver para ter uma relação que não seja destrutiva e possa fazer
com que a humanidade sobreviva.”
Sul21 – O senhor se preocupa também com o avanço da extrema direita na Europa?
Leonardo Boff – É a reação normal de quando há uma
crise maior que alguns postulem soluções radicais. No caso da Europa, é a
xenofobia. Mas são todos países que têm problema de crescimento
negativo de população. A Alemanha tem que exportar 300 mil pessoas por
ano para manter o crescimento mínimo de população, e na França a
situação é parecida. Então estão em uma dificuldade enorme, porque
precisam deles, mas querem os expulsar. Mas há o risco de que haja um
processo que gerou a Segunda Guerra Mundial, que era fruto da crise de
1929 que nunca se resolvia, até que a direita criou o nazifascismo. Mas
hoje o mundo é diferente, é globalizado. Não dá para resolver a questão
de um país sem estar vinculado aos outros.
Sul21 – Os governos da América Latina oferecem uma alternativa a esse modelo europeu que está em crise?
Leonardo Boff – Muitos veem, como o (
sociólogo português)
Boaventura de Sousa Santos, que na América Latina há um conjunto de
valores vividos pelas culturas originárias que podem ajudar a humanidade
a sair da crise. Especialmente com a característica central do
bem-viver, que significa ter outra relação com a natureza, entender a
Terra como mãe, que nos dá tudo que precisamos ou podemos completar com o
trabalho. E inventaram a democracia comunitária, que não existe no
mundo, é uma invenção latino-americana, em que os grupos se reúnem e
decidem o que é melhor para eles, e o país é feito por redes de grupos
de democracias comunitárias. Essa nova relação com a natureza e o mundo é
o que precisamos desenvolver para ter uma relação que não seja
destrutiva e possa fazer com que a humanidade sobreviva.
Há uma revisitação das culturas originárias, porque elas têm ainda
respeito com a natureza, não conhecem a acumulação. São valores já
vividos pelas culturas andinas, sempre desprezadas e hoje estudadas por
grandes cientistas e sociólogos que percebem que aqui há princípios que
podem nos salvar. Em vez de falar de sustentabilidade, respeitar os
ritmos da natureza. Em vez de falar
| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
de PIB e crescimento, garantir a base físico-química que sustenta a
vida. Porque sem isso a vida vai definhando. E em vez de crescimento,
redistribuição. É tanta riqueza acumulada que se houvesse 0,1% de taxa
sobre os capitais que estão rolando nas bolsas, estão na especulação,
daria um fundo de tal ordem que daria para a humanidade matar a fome e
garantir habitação. Porque o capital produtivo é de U$ 60 trilhões,
enquanto o especulativo é U$ 600 trilhões. Então é uma economia
completamente irracional e inimiga da vida e da natureza. E não tem
futuro, caminha para a morte. Ou nos levará todos para a morte, ou eles
mesmos se afundarão.
“Nós não “temos violência” no Brasil, nós estamos sentados em cima
de estruturas de violência. É um estado de violência permanente.”
Sul21 – E onde entra o papel do Brasil no âmbito ecológico? Os governos têm conseguido lidar com as questões ambientais?
Leonardo Boff – O Brasil é a parte do planeta mais
bem dotada ecologicamente. Tem as maiores florestas úmidas, maior
quantidade de água, maior porcentagem de terrenos agriculturáveis no
planeta. Mas não têm consciência de sua riqueza. E as políticas
públicas não têm nenhuma estratégia de como tratar a Amazônia, tratar os
vários ecossistemas. Sempre é em função da produção. Então estão
avançando sobre a floresta Amazônica e deflorestando para ter soja e
gado.
E o Ministério do Meio Ambiente é um dos mais fracos, assim como o
dos Direitos Humanos. Isso significa que não conta a vida, conta a
economia. Eu acho lamentável isso. E essa crítica tem que ser feita
pelos cidadãos. Dizer que apoiamos um projeto de governo, mas nisso
discordamos. Porque é uma ignorância, uma irresponsabilidade, uma
estupidez governamental. Muita coisa do futuro da humanidade passa por
nós, especialmente água potável, que possivelmente será a crise mais
grave, até mais do que aquecimento global. E o Brasil tem capacidade de
ser a mesa posta para o mundo inteiro e fornecer água potável para o
mundo inteiro. Acho que não temos consciência da nossa responsabilidade.
Os governantes são vítimas ainda de uma visão economicista, obedecem as
regras da macroeconomia. A nossa relação com a natureza não é de
cooperação, é de exploração.
| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como o Brasil pode lidar com o grave problema de violência urbana?
Leonardo Boff – O problema que deve ser pensado de
que já agora 63% da humanidade vive nas cidades, no Brasil 85%. Não dá
mais para pensar apenas na reforma agrária, tem que pensar como vão
viver as pessoas. Nós vivemos no Brasil a vergonha de que todas as
cidades têm um núcleo moderno cercado por uma ilha de pobreza e miséria,
que são as favelas. Esse é um problema não resolvido e para mim central
na campanha: como trabalhar os 85% que vivem nas cidades, já perderam a
tradição rural, de plantar e viver da natureza, e não assimilaram a
cultura urbana. Então são perdidos. Daí o aumento da criminalidade. E
muitos dizem que a sociedade têm um pacto social que rege o
comportamento dos cidadãos. Ou seja, “vocês nos excluíram, então não
somos obrigados a aceitar as leis de vocês, vamos criar as nossas”. As
milícias do Rio criaram funções de Estado paralelas, criam sua
organização e distribuição e o governo é impotente. E as UPPs não são a
solução, porque cria ilhas e as drogas ficam nas margens. O problema não
é de polícia, é do tipo de sociedade que nós criamos, montada em cima
do colonialismo, escravagismo e etnocídio dos indígenas. Nós não “temos
violência” no Brasil, nós estamos sentados em cima de estruturas de
violência. É um estado de violência permanente.
Sul21 – E como o país pode fazer para fugir disso?
Leonardo Boff – Aquilo que já
começou, parar de fazer políticas ricas para os ricos e pobres para os
pobres para fazer políticas de integração, inclusão, começando pela
educação. Porque onde há educação a pessoa se habilita a se
autodefender, buscar novas formas de sobrevivência. Um país que não
investe em educação e saúde conta com pessoas ignorantes e doentes. E
com essas pessoas não têm como dar um salto de qualidade. Para mim esse é
o grande desafio e isso deveria ser discutido nas campanhas, e não
partidos. Desafiar todo mundo: “como vamos sair disso?”, porque tende a
piorar cada vez mais. Essa seria uma política ética, digna, onde o bem
comum estaria no centro e somaria forças, alianças de pessoas que se
propõem a mudar as estruturas que sustentam um Estado injusto, que tem a
segunda maior desigualdade do mundo. Desigualdade significa injustiça,
que é um pecado social estrutural mortal. E isso não é discutido.