terça-feira, 30 de abril de 2019

DCM: Neoliberalismo e autoritarismo são “uma história de amor”, ou seja, as duas faces de uma mesma realidade obscura, diz o juiz Rubens R.R. Cassara do TJ do Rio





Neoliberalismo e autoritarismo. (Arte Revista CULT/Reprodução)

DCM. - Rubens R.R. Cassara, que é juiz de Direito do TJRJ e escritor, escreve na revista Cult sobre neoliberalismo e autoritarismo. “Há algo de novo na forma como se exerce o poder em todo o mundo. Paradoxalmente, esse ‘novo’ remete ao passado, na medida em que associado tanto a discursos ultraconservadores e xenófobos quanto a práticas inquisitoriais e oligárquicas. A principal característica dessa nova forma de exercício do poder é a ausência de limites, o que pode ser observado com a emergência de experiências autoritárias a partir da chegada ao poder político de pessoas como Trump, Salvini, Orban, Erdogan e Bolsonaro.

Se entendermos a democracia como um horizonte que aponta para uma sociedade autônoma (em que a pessoas não precisam apostar no autoritarismo por medo de exercer a liberdade), com deliberações coletivas (com efetiva participação popular na tomada das decisões políticas) e voltada à concretização dos direitos e garantias fundamentais (o que só é possível com limites rígidos ao exercício do poder), não é possível afastar a hipótese de que essa deriva autoritária é o resultado da estratégia de culpar a democracia pelos efeitos das políticas neoliberais iniciadas no Chile após o golpe de Estado que derrubou Salvador Allende, e que se expandiram para todo o mundo, com especial destaque para a Inglaterra de Thatcher e os Estados Unidos de Reagan”.
O magistrado desenvolve o raciocínio: “Segundo essa hipótese, a destruição do projeto de bem-estar social, bem como a desarticulação dos coletivos que atuavam na vida política (sindicatos, comunidades eclesiais de base etc.), somado ao ressentimento e à cólera produzida pela perda de direitos dos trabalhadores e de prestígio social pela classe média, teria levado à opção por soluções autoritárias.

Da mesma maneira que na década de 1930 o fascismo foi apresentado como uma reação ao liberalismo, o ultra-autoritarismo é vendido ao cidadão como uma resposta à atual crise. Esse autoritarismo, que recorre a soluções que podem ser identificadas como tipicamente fascistas, surge da manipulação de sentimentos compreensíveis e promete o retorno a um passado mítico de paz e segurança.

Tem-se nessa ilusão por modelos autoritários uma manifestação do que Bauman chamou de ‘retrotopia’, a nostalgia por um passado que nunca existiu, mas que permite ‘resgatar’ formas de identidade (nacional, comunitária, raça, classe, gênero etc.) e velhos preconceitos. O que há de novo, e revela a engenhosidade do modelo, é que essa nova forma de governabilidade que surge da crise produzida pelos efeitos do neoliberalismo (desagregação dos laços sociais, demonização da política, potencialização da concorrência/rivalidade, construção de inimigos, desestruturação dos serviços públicos etc.) promete responder a essa crise com medidas que não interferem no projeto neoliberal e, portanto, não alcançam a causa da cólera e do ressentimento da população. Para iludir e mistificar, criam-se inimigos imaginários (os direitos humanos, a democracia representativa, a degradação moral, a depravação sexual, a diversidade, as minorias, Lula, Kirchner, Sócrates, etc.) que são apresentados como os responsáveis pelos problemas concretos suportados pela população”.
Ele pontua qual é o regime hoje: “Disfarçado, o neoliberalismo revela-se plural e plástico. Pode-se, então, falar em um novo neoliberalismo, ‘ultra-autoritário’, que não só se alimenta da crise (e gera crises para esse fim), como também fabrica e persegue ‘culpados’ pelos danos causados pela própria lógica neoliberal. Se, por um lado, o novo neoliberalismo (no Brasil, com Bolsonaro; nos EUA, com Trump) surge como uma “resposta” (populista, que manipula afetos produzidos na fronteira entre ‘nós, os insatisfeitos’ e ‘eles, os causadores da insatisfação’) aos danos perversos gerados pelo neoliberalismo ‘clássico’ (no Brasil de FHC, nos EUA de Clinton), por outro, continua a servir aos mesmos objetivos, mais precisamente: a busca de lucros ilimitados, a ‘financeirização’ do mundo, a destruição dos obstáculos ao poder econômico e o controle dos indesejáveis (pobres e inimigos políticos do neoliberalismo).

Em resumo, com ou sem verniz democrático, o neoliberalismo, que se revela adaptável a qualquer ideologia (inclusive ao fascismo), sustenta e atende à lógica do capitalismo global”.
E completa, abordando o caso no nosso país: “No Brasil, é interessante olhar o exemplo do nacionalismo de Bolsonaro, que não tem qualquer traço de nacionalismo econômico. Se no plano discursivo, o ‘Brasil (estaria) acima de tudo’, no campo econômico o mercado revela-se um Deus acima de todos. Ainda sobre o fake nacionalism típico desse novo neoliberalismo, basta pensar no que se fez com as reservas brasileiras de pré-sal e na retomada dos processos de privatização. Tem-se, nesse campo, uma estranha combinação de apoio irrestrito ao capitalismo global e discurso nacionalista contra inimigos imaginários (comunistas, bolivarianos, turismo gay, etc.). Em apertada síntese, utiliza-se o discurso nacionalista para reforçar o neoliberalismo e melhor atender aos interesses do poder econômico”.

Sete obras para entender golpes de Estado no Brasil, por Caio do Valle Souza



Confira livros e filmes que abordam o conturbado passado político do país, da instauração da República ao golpe de 1964 - e entenda melhor o que está acontecendo agora

do Calle 2

Sete obras para entender golpes de Estado no Brasil

por Caio do Valle Souza 

Fonte: GGN

Um espectro ronda o Brasil: o espectro do golpismo. Neste curto mas já conturbado 2016, o maior país da América Latina, uma nação multicultural de mais de 200 milhões de almas, se vê às voltas com uma de suas facetas menos bem resolvidas. Afinal, somos um gigante continental que nunca soube lidar muito pacificamente com as próprias crises, sejam elas políticas, sociais ou econômicas.

Basta lembrarmos que o nosso atual regime republicano deriva de uma ruptura, de uma quebra constitucional. A República brasileira é fruto de um golpe. Diferentemente de outras nações latino-americanas, cujo advento do republicanismo marcou o corte dos laços de subserviência à realeza ibérica, por aqui um governo imperial, “filhote” da Coroa lusa, presidiu as seis primeiras décadas de um Estado independente (de 1822 a 1889). Nosso tardio sistema republicano, portanto, não precisou “inventar” a soberania de uma nação; apenas se apropriou, pela força, da que fora criada pela monarquia.

A queda do Império pouco mais de um ano após a abolição definitiva da escravatura no país – o último das Américas a extingui-la, em 1888! – ajuda a compreendermos o caráter elitista da conjuração que depôs dom Pedro II e sua sucessora, a princesa Isabel. Embora o governo estivesse em frangalhos em função de uma série de problemas políticos e financeiros, a popularidade do velho monarca não deixava de vicejar entre os mais pobres, muitos dos quais ex-escravizados.
Mas setores poderosos, descontentes com os rumos da corte, souberam aproveitar a crise para dar a cartada que alteraria as regras do jogo em seu favor. Uma parte do Exército, apoiada por grandes cafeicultores paulistas (que agora cobravam a fatura pelo fim da escravidão, base do acúmulo de sua riqueza ao longo do século 19), se apropriou do movimento em prol do republicanismo, que defendia mais prerrogativas para as províncias, e, numa rebelião sem o apoio do povo, decretou o fim do regime monárquico – que não ofereceu resistência. Desta forma, o Brasil embarcava na sua aventura republicana em novembro de 1889.
Foi o primeiro de uma série de golpes e tentativas de golpes que o país experimentaria desde então, destacando-se os de 1930 e 1964. Um traço comum a todos eles é a calculadíssima distância do povo com a qual foram urdidos. Quem sabe se pela própria natureza da gênese das instituições federalistas, a recorrência às rupturas drásticas transformou-se num expediente quase rotineiro da vida pública do país, e que parece ainda não ter sido superado. Alguém já disse que o Brasil não é para amadores. Entender os processos que desembocaram nas transformações abruptas da política nacional requer estudos exaustivos a respeito das estruturas e conjunturas por trás dos movimentos da nossa sociedade. Isso não impede que algumas obras, entre livros e filmes, ficcionais ou não, colaborem no sentido de tentarmos compreender esses momentos com um pouco mais de profundidade, seja porque foram criadas por quem os vivenciou seja porque resultados de pesquisas minuciosas. A lista a seguir tem a intenção de fornecer algum subsídio nesse sentido.
SOBRE O GOLPE DE 1889 E SUAS CONSEQUÊNCIAS
1. Livro “Esaú e Jacó” (Machado de Assis)
Joaquim Maria Machado de Assis tinha 50 anos quando a República foi instaurada “na marra” no país. Já gozava de imenso prestígio como escritor – as Memórias póstumas de Brás Cubas haviam ganhado o público no início da década de 1880 –, além de permanecer um observador arguto da sociedade ao seu redor. Em 1904, publicou Esaú e Jacó, o penúltimo de seus oito romances.
A obra é permeada de referências à transição do regime monárquico para o republicano, bem como ao período falimentar e final do Império (cujo estopim, para alguns, se dá com a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871), sem deixar de ilustrar aspectos da escravidão e da Abolição. Pardo, neto de escravos alforriados, o autor registrou da seguinte forma o que os protagonistas, os belicosos gêmeos Pedro e Paulo – um, monarquista, o outro, republicano –, ponderavam a respeito da emancipação: “Estavam então longe um do outro, mas a opinião uniu-os. A diferença única entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da revolução.”
2. Livro “Triste fim de Policarpo Quaresma” (Lima Barreto)
Assim como Machado de Assis, o exímio escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, que publicou nas duas primeiras décadas do século 20, era pardo. Ao contrário do Bruxo do Cosme Velho, não obteve o devido reconhecimento em vida, embora hoje seja considerado um dos maiores nomes de toda a literatura brasileira.
Em Triste fim de Policarpo Quaresma, saído do prelo em 1915, Lima Barreto narra a história de um nacionalista que, excitado com as possibilidades do novo governo republicano (a história se passa no início dos anos 1890), idealiza diversos e mirabolantes planos para que o Brasil enfim alce à sua merecida “grandeza”. Sonhador e bem-intencionado, o major Quaresma, um pequeno funcionário do Arsenal de Guerra, busca em vão fazer seus projetos chegarem às altas instâncias do poder central. O mote serve de pretexto para escancarar a hipocrisia da sociedade da época (em especial, a elite carioca). Os militares republicanos, mentores do golpe de 1889, são retratados como sanguessugas burocráticas e pouquíssimo interessados no progresso da pátria.
Na obra, vemos o marechal Floriano Peixoto – o segundo presidente do Brasil, elevado a essa condição após ter colaborado no complô para a renúncia de Deodoro em 1891, num golpe dentro do golpe – como um ditador apático e cruel, capaz de tudo, inclusive de ordenar a morte de inocentes, para a decepção e o horror de Quaresma.
Sobre a instalação da República, Lima Barreto escreveria mais tarde: “No fundo, o que se deu em 15 de novembro foi a queda do partido liberal e a subida do conservador, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados.” Impossível um relato mais contundente sobre a violência, a impopularidade e as intenções dos golpistas de 1889.
DO GOLPE DE 1930 AO ‘QUASE GOLPE’ DE 1954
‎‎
3. Filme “Revolução de 1930” (Sylvio Back)
Lançado em 1980, ainda sob a égide da última ditadura civil-militar que governou o Brasil, o documentário de Sylvio Back busca desconstruir a ideia de que o movimento que culminou no golpe de 1930 tenha tido um caráter popular. Havia muito a presidência já estava nas mãos de civis, mas o acesso ao posto era restritíssimo, assim como o direito de votar, culminando numa política de sucessão que alternava líderes políticos de São Paulo e Minas Gerais.
Por meio do depoimento dos historiadores Edgard Carone e Boris Fausto, Revolução de 1930 reproduz a tensão social vivida no país nas décadas de 1910 e, principalmente, 1920, decênios pontilhados de insurgências operárias e tenentistas. A repressão governamental às rebeliões dos operários, que lutavam por melhores condições materiais de sobrevivência, foi uma das características mais marcantes dos anos derradeiros da Primeira República.
A crise política, porém, se originou bem longe do chão da fábrica, na cúpula do poder. Já antes da derrocada econômica de 1929, que encetou a queda dos preços do café, o então presidente Washington Luís, que havia sido candidato por São Paulo, lançara um sucessor paulista ao cargo, Júlio Prestes, vencedor das eleições no início de 1930. Essa iniciativa quebrou o pacto com a oligarquia mineira, que se uniu às elites gaúchas e paraibanas para formarem uma chapa própria, com Getúlio Vargas na dianteira. Uma sucessão de fatores levaria à eclosão de uma revolta militar no Rio Grande do Sul, em Minas e na Paraíba, que se estendeu rapidamente pelo território brasileiro. Washington Luís, a poucos dias do término de seu mandato, foi forçado a depor. Ascendeu um Governo Provisório, tendo à frente Getúlio Vargas.
O golpe foi orquestrado para suplantar uma oligarquia por outra, sem formulações populares. “Não há nenhuma alteração no tratamento dos militantes operários que atuavam nos anos 1920. Quer dizer, eles continuam a ser perseguidos [pelo Governo Provisório]”, avalia, em depoimento exibido no documentário, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro. “A Revolução de 1930 é um dos momentos da constituição do capitalismo no Brasil, sobretudo do capitalismo industrial”, pondera Fausto.
4. Livro “Agosto” (Rubem Fonseca)
Getúlio Vargas, indica o senso comum, é das figuras políticas mais controvertidas da história brasileira. Revolucionário? Ditador? Fascista? Pai dos pobres? A dificuldade de posicioná-lo objetivamente no espectro das ideologias decorre, entre outros fatores, não só da enorme quantidade de tempo que o gaúcho de São Borja ocupou o poder central, mas da própria qualidade desse tempo. Subindo à presidência em 1930, no contexto da crise provocada pelo crack da bolsa de Nova York, Vargas atravessou, enquanto presidente, circunstâncias trágicas como a ascensão do nazismo na Alemanha, a Segunda Guerra Mundial e o estabelecimento de uma nova ordem mundial bipolar, já em marcha avançada quando de sua “entrada na história”, em 1954.
No Brasil, a situação não era mais tranquila, com o crescimento das populações urbanas e a rápida industrialização da economia. De certo modo, Getúlio jogou o jogo político para manter-se a todo o custo no poder, aplicando inclusive um golpe dentro do golpe (já vimos isso, não é?), com a instalação do seu ditatorial Estado Novo em 1937, o que o faria manter-se presidente por mais oito anos. Aparelhou a polícia, reprimiu partidos políticos, perseguiu estrangeiros, mas estendeu o voto às mulheres, tornou-o secreto e criou e ampliou direitos trabalhistas.
O Getúlio que encontramos de relance em Agosto, ficção de Rubem Fonseca publicada em 1990, é o Getúlio eleito presidente, numa volta triunfal ao topo da política do Brasil – desta vez, entretanto, conduzido pelo voto direto, democrático. É válido lembrarmos que um golpe militar (sim, outro!) destituíra Vargas em 1945. Esse Getúlio, ausente do Palácio do Catete entre 1945 e 1951, está filiado a um partido, o PTB, segue abraçado ao nacional-desenvolvimentismo e, diferentemente da sua experiência pregressa, passa a enfrentar uma oposição feroz no parlamento e uma mais incisiva ainda na imprensa.
O conservadorismo reacionário dos principais órgãos de comunicação não deu trégua para Vargas, tentando solapar as suas bases de apoio e, assim, alijá-lo do poder, o que se acentuou de maneira vertiginosa nos dias e semanas seguintes ao atentado sofrido pelo jornalista Carlos Lacerda na rua Tonelero, em Copacabana, em 5 de agosto de 1954. Dono da Tribuna da Imprensa, Lacerda era uma das principais e mais aguerridas vozes da oposição midiática. O ataque, atribuído a uma ordem de Gregório Fortunato, chefe da guarda presidencial, resultou no ferimento de Lacerda e na morte de um major da Aeronáutica, desencadeando uma grave ofensiva política contra o governo Vargas.
Forçado a renunciar ou a licenciar-se – embora contra si não pesassem acusações relacionadas ao assassinato – e já sem o apoio do Exército, que vinha ameaçando o governo com sinais sérios de insubordinação, Getúlio optou pelo suicídio, na manhã de 24 de agosto. Sua morte, acompanhada de uma carta-testamento em que acusava ser vítima de conspiradores, provocou gigantesca comoção nacional, um fato também incorporado na trama de Agosto, romance que mistura a realidade da política suja com uma ficção de gênero policial.
O GOLPE DE 1964
5. Livro “1964: A conquista do Estado – Ação política, poder e golpe de classe” (René Armand Dreifuss)
Coube a um uruguaio, o cientista político René Armand Dreifuss, ser o primeiro a investigar, numa pesquisa acadêmica desenvolvida na Grã-Bretanha, as origens e a composição administrativa das entidades civis que fomentaram o golpe de 1964, responsável pela derrubada do governo constitucional do presidente João Goulart. O resultado é o livro 1964: A conquista do Estado – Ação política, poder e golpe de classe.
Se o título, tal como o texto de sua orelha, não é tão enfático quanto poderia ser, temos de apelar para a condescendência, lembrando que a primeira edição da obra data de 1981, quando o país vivia sob a mirada translúcida do ditador João Baptista Figueiredo e seu aparato censório. O conteúdo da obra, por sua vez, redime a embalagem.
Dreifuss escarafuncha dezenas de organogramas, tabelas e correspondências para mostrar ao leitor, por A mais B, que poderosas organizações ligadas ao empresariado nacional e ao capital estrangeiro articularam forças com o propósito de desequilibrar e derrubar a gestão Goulart, o principal herdeiro político do trabalhismo de Vargas.
Na ponta da lança estavam associações sinistras como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). O primeiro produziu filmes, peças publicitárias e folhetos para defender os valores da “democracia”, contra o perigo iminente do “comunismo”, que estaria tomando conta do governo. Em meio aos contribuintes do Ipes encontramos grandes bancos e empresas do ramo financeiro, algumas das quais ativas até hoje. O setor industrial se mostrava igualmente bem representado, como revela a presença de Rafael Noschese, então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), um dos quadros de destaque da entidade. O escritor Rubem Fonseca, autor do já mencionado Agosto, trabalhou como supervisor do grupo de publicações editoriais do Ipes.
6. Documentário “Jango” (Silvio Tendler)
Com narração de José Wilker e entrevistas a personalidades políticas que testemunharam de perto o golpe de 1964, entre as quais Leonel Brizola (cunhado de Jango), Afonso Arinos e Frei Betto, o documentário Jango, de Silvio Tendler, se inscreve em um momento de esperança para o Brasil, a luta pela retomada da democracia.
Lançado duas décadas após a deposição de Goulart (e oito anos depois da sua melancólica morte no exílio argentino), em plena campanha das Diretas Já, a obra retraça as jogadas no tabuleiro político que permitiram ao vice de Jânio Quadros se tornar o presidente da República, sobrevivendo a algumas tentativas de golpe anteriores à derradeira. A começar pela que tentou impedi-lo de assumir o comando do país – Jango estava em viagem oficial à República Popular da China de Mao Tsé-Tung, em agosto de 1961, quando tomou ciência da renúncia de Quadros.
Embora a Constituição assegurasse a sua posse imediata, Jango enfrentou cerrada resistência dos ministros militares, que o ameaçavam de prisão em caso de regresso ao Brasil. Temiam a proximidade de Goulart com socialistas e comunistas. A solução encontrada para apaziguar os ânimos foi, de certo modo, um golpe de “médio alcance”: a adoção do parlamentarismo, reduzindo os poderes do presidente. Um plebiscito em 1963 derrubaria, enfim, o modelo parlamentarista.
João Goulart liderou um governo que propugnava alterações estruturais de base, voltadas para o benefício da maioria menos favorecida: as reformas agrária, urbana, bancária, eleitoral, universitária e do estatuto do capital estrangeiro. Falava de desigualdade social em seus discursos, o que deixava os conservadores de cabelo em pé.
Agressivas mobilizações da direita – na imprensa, entre o empresariado, na Igreja, no Congresso –, sempre com a bênção de um Exército desafeto dos trabalhistas havia décadas, colocaram milhares de cidadãos da classe média nas ruas, em manifestações que ajudaram a minar a legitimidade do governo. Uma quartelada no último dia de março de 1964 conferiu o tiro de misericórdia no moribundo governo Jango, que terminou deportado. A República brasileira, vítima de mais um golpe, entrava na sua fase mais obscura.
 ‎‎
7. Livro “Dois irmãos” (Milton Hatoum)
Ambientado numa Manaus cosmopolita, que vibrava com sotaques, costumes e hábitos dos quatro cantos do mundo, o romance de Milton Hatoum acompanha a trajetória minguante de uma família de origem libanesa nos meados do século 20.
Se no machadiano Esaú e Jacó acompanhamos a birra de Pedro e Paulo, alegorias do Império e da República, a temática fratricida (tão antiga quanto a Bíblia) ressurge aqui atualizada nas personagens complexas de Yaqub e Omar. Gêmeos, logo na infância os dois começam a emitir sinais de uma irreconciliável divergência de personalidades.
A desavença, que culmina em xingamentos e socos, vai lentamente movendo toda a família rumo à beirada do abismo. Já em sua fase adulta, as opções políticas dos univitelinos os põem em polos opostos justo num momento de traumática inflexão da história brasileira, o golpe de 1964.
Omar, mimado e festeiro, cultiva amizade com um poeta que, no enredo, assume a posição arquetípica de perseguido do regime civil-militar que ascendia ao poder. Yaqub, metódico e estudioso, engenheiro formado em São Paulo, orgulha-se de ter sido militar durante a sua formação. Torna-se impassível diante da tomada das ruas manauares pelos tanques, ao passo que o irmão enfrenta o choque da perda do amigo.
Hatoum, que publicou Dois irmãos em 2000, demonstra que a analogia da cisão profunda entre dois irmãos segue emblemática para a representação dos períodos de intensa divergência ideológica.




GGN: Xadrez de como o Departamento de Justiça dos EUA treinou a Lava Jato, por Luis Nassif



Os métodos empregados pelo DoJ foram integralmente copiados pela Lava Jato, mostrando a eficácia dos cursos bancados pelo Departamento de Justiça para juízes e procuradores brasileiros.




Peça 1 – o O DoJ e a Seção de Integridade Pública

A origem dos abusos judiciais, que se tornaram recorrentes na Lava Jato, está na Seção de Integridade Pública do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, especializada em investigar crimes de autoridades públicas.
A seção tem cerca de 36 procuradores, encarregados de supervisionar e aconselhar os processos de governadores, prefeitos e legisladores, com ampla autoridade dada pelo Departamento de Justiça, para garantir blindagem contra interferências políticas.
Os métodos empregados pelo DoJ foram integralmente copiados pela Lava Jato, mostrando a eficácia dos cursos bancados pelo Departamento de Justiça para juízes e procuradores brasileiros.
Dentre eles, o mais ostensivo é o procurador Andrew Weismann, que participou de todas as grandes investigações corporativas, incluindo a Petrobras.
Com licença para matar a Seção de Integridade Pública, com respaldo todo do DoJ, desenvolveu uma série de técnicas, amplamente incorporada pela Lava Jato.
Os princípios abaixo foram compilados de uma apresentação de Rush Limbaugh, o “Doutor Democracia”, âncora bem conhecido nos Estados Unidos (seu programa The Rush Limbaugh Show, é transmitido por mais de 600 emissoras, com uma audiência de 27 milhões de pessoas por semana).

1. Harmonia entre juiz e procurador

Tem que haver uma perfeita harmonia entre juiz e procurador. Diz ele que nos tribunais federais, os procuradores têm controle total sobre o processo, desequilibrando totalmente as possibilidades da defesa.

2. Uso da imprensa

Tem que haver o uso eficiente da imprensa, usando a credibilidade natural da instituição, e consolidando a narrativa dos procuradores, prevalecendo-se do fato de terem acesso total aos autos.
Para consolidar a narrativa, há o uso de operações de impacto, abusivas. Menciona a invasão, às 6 da manhã, da casa de uma testemunha do Russiangate, que estava cooperando normalmente com a operação, com a força tarefa acompanhaa por equipes de televisão.

3. Ocultação de provas

Limbaugh menciona diversas passagens em que procuradores esconderam provas que poderiam beneficiar a defesa. Quando os promotores têm provas que podem mostrar inocência por parte do acusado, eles são obrigados a entregá-las.  Mas tornou-se uma prática a ocultação de provas contrárias à acusação.
Alex Kozinski, juiz-chefe do Tribunal de Apelações do Nono Circuito, explica o método:
Os agentes do governo geralmente têm acesso livre e sem restrições à cena do crime, para que possam facilmente remover e esconder provas que possam contradizer o caso da promotoria. A polícia geralmente fala primeiro com as testemunhas e pode pressioná-las a mudar sua história para confirmar a teoria do caso. Os promotores públicos podem, e freqüentemente fazem, ameaçar acusar as testemunhas como cúmplices ou co-conspiradores se eles testemunharem favoravelmente para a defesa. Como resultado, as potenciais testemunhas excludentes invocam a Quinta Emenda para evitar problemas.

4. As delações premiadas

Como explica Limbaugh, “quando eles te dão imunidade e quando eles te dizem que você está livre de escândalos e que eles nunca virão atrás de você se você apenas disser o que eles querem que você diga, todo mundo fará isso porque ninguém quer o DOJ federal vindo atrás deles”. Há muitos relatos de testemunhas ou réus que foram mantidos presos em condições precárias e ameaçados até aderir ao conteúdo da delação proposta pelo procurador.

5. Parceria com escritórios de advocacia

Os abusos são levantados no decorrer do processo, mas nada ocorre com os procuradores. Muitos deles deixam o cargo para trabalhar nos maiores escritórios de advocacia. Ou seja, apavoram empresas e pessoas com seus métodos arbitrários, depois se tornam sócios de grandes escritórios de advocacia que trabalham na defesa de suas vítimas, assustadas com a possibilidade de serem alvos do DoJ.
E tome contratos de implementação de compliance, (e aí é minha opinião) que se tornou um campo fértil para subornos e corrupção. Trata-se de um método simples de governança, que consiste em mapear os processos internos de uma empresa e definir instâncias de aprovação de contratos. Essa tecnologia, sem nenhuma sofisticação, passou a ser oferecida a empresas em contratos miliardários.

Peça 2 – O caso Ted Stevens

O senador republicano Ted Stevens, do Alaska,  foi crucificado pelo DoJ em pleno governo do republicano George W. Bush, com uma manobra que lembra em muito os casos do triplex e do sítio de Atibaia.
Stevens estava reformando sua casa. Na declaração de bens, alegou que a reforma ficou em US$ 160 mil. Acontece que o trabalho realizado custou apenas US$ 80 mil. O empreiteiro da obra enganou Stevens, como ficou demonstrado no decorrer do processo. Mas os procuradores se aferraram à tese de que houve superfaturamento para lavagem de dinheiro, e esconderam as provas da inocência de Stevens.
E, aí, entra o fator deslumbramento, que acomete procuradores de lá e de cá, e os subprodutos posteriores: visibilidade e possibilidade de serem contratados por um grande escrutório de advocacia.
Matthew Friedrich, ex-chefe da Força-Tarefa da Enron, comandava a divisão criminal do DoJ quando a Seção de Integridade Pública iniciou suas investigações. Percebeu ali uma bela oportunidade de publicidade e decidiu assumir as investigações. Afinal, Ted Stevens era popular, o mais antigo senador republicano, com mais de 40 anos no cargo.
Candidato à reeleição em 2008, apenas quatro semanas antes das primárias, Friedrich organizou uma coletiva de imprensa para acusá-lo. Stevens foi derrotado.
Quase dois meses depois, um jovem agente do FBI, Chad Joy, que havia atuado no caso, apresentou queixa ao Escritório de Responsabilidade Profissional do Departamento de Justiça. Denunciava um relacionamento inadequado entre Bill Allen (principal testemunha de acusação) e Mary Beth Kepner, a principal agente do FBI no caso. Ele também revelou que o promotor Nick Marsh enviou a testemunha-chave Rocky Williams de volta para o Alasca, ostensivamente por motivos de saúde, sem avisar os advogados de defesa.
Era um jogo tão pesado, que Joy pediu proteção oficial como denunciante e apresentou um documento de 10 páginas mostrando que os procuradores sabiam claramente que estavam ignorando suas obrigações profissionais de entregar à defesa informações levantadas.
O senador Stevens foi condenado em 27 de outubro de 2009 por sete crimes.
O caso foi parar nas mãos do juiz federal Emmet G. Sulivan, que indicou uma equipe de advogados para examinar os arquivos do caso.
Os procuradores tinham como prova central declarações de Bill Allen, o dono da empreiteira que fez o serviço, dizendo que os trabalhos não valiam US$ 80 mil – menos da metade do que Stevens havia pago.
Os promotores descobriram que efetivamente foram cobrados US$ 250 mil em reparos. Mas a informação foi sonegada. Ante a posição do juiz, o novo procurador geral, Eric Holder, tentou salvar a cara do Departamento, rejeitando o caso contra Stevens.
O juiz foi duro: “Em 25 anos de juiz, nunca vi má conduta como o que tenho visto”. Foi um discurso de 14 minutos, mostrando as manipulações dos procuradores, que liquidaram com a carreira política de Stevens e alertou para a “tendência preocupantes” que ele havia notado entre os procuradores, de atropelar as restrições éticas e esconder provas da defesa.
O juiz nomeou Henry F. Schuelke, advogado de Washington, para investigar seis promotores do Departamento de Justiça, incluindo o chefe e o vice-chefe da Seção de Integridade Pública. Logo depois, Friedrick abandonou a carreira e foi para um escritório de advocacia, escapando das punições.
Não se travava de direita ou esquerda, mas da contaminação do Judiciário pelos novos métodos. Tanto que Stevens foi crucificado pelo DoJ no governo Bush, e inocentado no governo Obama.
Figuras-chave dessa jogada foram mantidos em postos elevados no DoJ ou passaram a trabalhar em grandes escritórios de advocacia.
O senador Stevens morreu em um acidente de avião em 2010, antes de saber que seria absolvido
A senadora do Alasca Lisa Murkowski (R), tornou-se a principal patrocinadora  do Fairness na Disclosure of Evidence Act  um projeto de lei para estabelecer em lei a regra de Brady anunciada pelo Supremo Tribunal mais de meio século atrás, obrigado que os advogados do governo forneçam aos advogados da parte todas as informações do inquérito, antes de qualquer confissão. Segundo Powell, não é suficiente.

Peça 3 – o caso Enroe

A má conduta se repetiu no caso Enron, que inaugurou a ascensão desse perfil de procurador sem limites, dos quais o mais emblemático é Andrew Weismann. Recentemente ele foi transferido para o Russiangate, as investigações sobre a interferência russa nas eleições americanas.
Tornou-se o personagem principal do livro “Licensed to lie” (Autorizado a mentir), uma ex-procuradora Sidney Powell que se tornou consultora de apelação de centenas de casos. O livro é de 2014 e recheado de informações sobre o que ela chama de corrupção no DoJ. Polêmica, e seguidora do pior discurso de ultradireita, a favor das teorias antimigração da direita, chegou a atribuir aos imigrantes a propagação de “um vírus misterioso chamado “mielite flácida aguda” ou AFM está varrendo o país (…)paralisa crianças e jovens adultos – muito parecido com o poliovírus quase erradicado”.
Mesmo assim, o livro é bastante documentado.
Diz ela quem que milhares de páginas de transcrição de grande júri, relatórios do FBI, entrevistas com testemunhas, foram reduzidos a um resumo de 19 páginas, entregues à defesa.
Os procuradores alegaram que não tinham material excludente – isto é, que poderiam abrandar a culpa dos acusados.
Foram nomeados mais de 100 “co-conspiradores não declarados”, intimidando testemunhas e advogados de defesa.
O ex-tesoureiro da Enron, Bem Gilsan, declarou ter sido colocado em “uma gaiola infestada de insetos, com apenas uma fenda de luz”. Foram três semanas de solitária, e cinco meses na prisão, até que Gilsan aceitasse se tornar a grande testemunha do processo.
Quatro executivos da Merril Lynch foram considerados culpados de conspiração e fraude eletrônica, e condenados por perjúrio e obstrução da Justiça. Só anos depois se tornaram públicas as evidênciuas de que a força=tarefa havia escondido provas favoráveis aos réus.
Um deles, de nome James Brown, foi enviado à prisão. Tempos depois descobriu-se que a sentença estava incorreta. Na prisão, foi espancado por outros presidiários. No período em que ficou preso, se filho quase morreu em um acidente de carro no Colorado. Transformado em inimigo público, a imprensa tratou o caso com desdém, reforçando seu assassinato moral.
Para convencer uma testemunha, a fora tarefa acusou a esposa de Andrew Fastow, o diretor financeiro, de evasão fiscal. Fastow passou a cooperar com o governo.

Peça 4 – O caso Andersen Consulting

A partir do caso Enron, a fora tarefa do DoJ entrou com uma acusação contra a Arthur Andersen, firma de auditoria, acusado de destruir “literalmente tonadas” de documentos relacionados à Enroe.
Acontece que a empresa não tinha o dever legal de manter rascunhos, materiais ou documentos duplicados ou irrelevantes.
A exemplo da Petrobras, em vez de acusar indivíduos envolvidos, acusaram a própria empresa.
A Arthur Andersen empregava 85 mil funcionários, atendendo a 2.300 empresas de capital aberto. Em 2011, quando a Suprema Corte, de forma unânime, anulou a condenação da empresa, ela já tinha sido expulsa do mercado.




GGN: Em resposta a Bolsonaro, Câmara de Santo André resgata memórias da Ditadura



Vereadores criaram comissão provisória para colher e expor depoimento de vítimas de tortura e perseguição nos anos de chumbo da horrenda Ditadura Militar


Foto: Agência Brasil
Jornal GGN Vereadores da Câmara de Santo André, no ABC paulista, instauraram uma comissão especial para tomar o depoimento de vítimas de perseguição e tortura no período da Ditadura Militar. A iniciativa, segundo um dos parlamentares, é uma resposta a Jair Bolsonaro, que além de defender a comemoração do golpe militar de 1964, também decretou o fim da estrutura de um grupo de trabalho vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos, que tenta identificar as ossadas do cemitério de Perus.
O vereador Eduardo Leite (PT), um dos idealizadores, disse ao Diário do Grande ABC que “a ideia nasceu de uma conversa que tivemos com alguns advogados da OAB (Organização dos Advogados do Brasil) de Santo André. Com a intenção do atual presidente do País em querer negar os abusos existentes naquele tempo e até comemorar aquele período, fica claro que temos que dar voz às pessoas que sofreram algum tipo de violência durante a ditadura”, alegou.
Não é a primeira vez que a Câmara de Santo André hospeda uma comissão do gênero. Em 2013, a Casa criou, em paralelo à Comissão Nacional da Verdade, um comitê municipal da Verdade, “sob a ótica de levantar relatos do período na cidade e repassar essas informações ao grupo nacional, entidade vinculada ao governo federal.”
À época, o GGN entrevistou Antonio Carlos Granado, ex-secretário de Santo André e ex-preso político que contou como foi perseguido nos anos de chumbo com ajuda da empresa para a qual trabalhava.



domingo, 28 de abril de 2019

A ilusão neoliberal (Partes III e IV) – René Passet



“Onde quer que sejam reduzidas ou eliminadas as proteções, a situação do fraco se degrada em benefício do mais poderoso.”




A ilusão neoliberal (Parte III) – René Passet

Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-107-2
Tradução: Clóvis Marques
Opinião★★★★☆
Páginas: 370
(para ler as partes I e II clique aqui)

““Deem-me o moinho de vento e eu lhes darei a sociedade feudal”, dizia Marx. Pois hoje diríamos: “Deem-me o computador, a desregulamentação e a empresa financeira, e eu transformarei a aproximação dos povos em fratura, o alívio dos homens pela máquina em exclusão social e a gestão da natureza em destruição.”


“Onde quer que sejam reduzidas ou eliminadas as proteções, a situação do fraco se degrada em benefício do mais poderoso.”


“Individualmente, as 200 pessoas mais ricas do mundo viram seu patrimônio mais que duplicar entre 1995 e 1998, chegando nesse ano a 1 trilhão de dólares; e só para visualizar a situação, em 1993 o presidente da Walt Disney ganhava 203 milhões de dólares, o equivalente a 325.000 vezes o salário de um operário haitiano que trabalhava para sua empresa; em 1998, as três maiores fortunas do mundo superavam o PIB dos 600 milhões de habitantes vivendo nos 48 países mais pobres; os 15 maiores patrimônios eram mais elevados que os PIBs acumulados de toda a África subsaariana, enquanto as 84 pessoas mais ricas acumulavam riquezas superiores à produção anual de 1,2 bilhão de chineses. Será necessário comentar?
O atendimento das necessidades afasta-se dos objetivos do PNUD, segundo os quais todo homem deve poder atender a suas exigências mais elementares, definidas como acesso ao ensino primário, à saúde, alimentação com água potável, higiene pública, a vacinação de todas as crianças, a divisão por dois da mortalidade infantil, o livre acesso ao planejamento familiar e a eliminação dos casos graves de desnutrição. Em 1998, no entanto, 1,3 bilhão de indivíduos viviam com menos de 1 dólar por dia, 1 bilhão não conseguiam atender a suas necessidades elementares e 840 milhões sofriam de desnutrição. Segundo os especialistas, entretanto, o custo do programa acima mencionado representaria apenas 30 a 40 bilhões por ano, ou um terço das despesas militares dos países em desenvolvimento e 5% das despesas mundiais com armas, ou ainda 4% das riquezas acumuladas pelas 225 maiores fortunas do mundo.”


““Não se pode ter ao mesmo tempo o dinheiro do salário e a manteiga do pleno emprego”, é o que nos dizem. É preciso escolher:
– ou o salário é considerado irredutível, e neste caso é o volume do emprego que se adapta; seria este o caso da Europa continental;
– ou então o que se privilegia é o emprego, e o salário deve ceder; seria o caso dos países anglo-saxônicos.
Salário, proteção social, desemprego, por um lado, ou então, por outro, queda dos salários, empregos precários, biscates mas pleno emprego; duas modalidades de empobrecimento – seja por privação de trabalho, seja pelo próprio trabalho –, seria esta a escolha; como são bonzinhos de pelo menos nos darem a escolha!...”


Por toda parte, o sacrifício dos homens torna-se a maneira de assegurar o bom funcionamento da máquina econômica. A mudança das atitudes em relação às demissões é significativa.
Numa primeira etapa, estas são encaradas como sinal de fracasso das empresas, ou na melhor das hipóteses um sacrifício necessário para seu saneamento, devendo ser seguido de uma recuperação do dinamismo e do retorno ao pleno emprego: basta lembrar, até o início dos anos 80, dos estaleiros, da siderurgia...
Depois vemos surgir na indústria automobilística o anúncio simultâneo de bons resultados financeiros e de novas demissões para consolidar esses resultados. A prática se banaliza: no dia 8 de setembro de 1999, a Michelin anuncia simultaneamente um lucro líquido semestral em alta de 17,3% em relação ao semestre anterior e a eliminação de 7.500 postos de trabalho na Europa em três anos; no dia seguinte, a Bolsa comemora o feito com uma alta de 12,5% das ações do fabricante de pneus.
O desemprego torna-se, portanto, um meio de gestão. Entra para a lógica de um sistema que se torna sua própria finalidade e cujos resultados são avaliados em relação a “fundamentos” nos quais o recurso humano não tem lugar: “O direito ao trabalho e a proteção do meio ambiente tornaram-se excessivos na maioria dos países desenvolvidos. A livre troca vai reprimir alguns desses excessos, obrigando todos a se manterem competitivos”, declara o Prêmio Nobel Gary Becker, pai de uma “economia generalizada” segundo a qual toda lógica social é redutível a uma pura racionalidade econômica;39 “Temos vantagens demais”, confirma Didier Pineau-Valencienne (este “nós” é maravilhoso: nós temos vantagens demais, vocêsprecisam fazer sacrifícios); em nome do mesmo princípio, um corajoso capitão de indústria que qualquer um poderá identificar resiste às reivindicações de seus assalariados (1,5% de aumento teria bastado para acalmá-los) ao mesmo tempo em que dava discretamente a si mesmo um aumento de 49,5%; o vice-presidente da CNPF (hoje presidente do MEDEF) confirma no Figaro de 5 de maio de 1993 que “se não mudarmos os fundamentos sociais deste país, não conseguiremos operar a retomada da máquina”; fiel a si mesma, a OCDE demonstra que, para moderar as reivindicações salariais, “seria necessário um nível mais elevado de desemprego conjuntural”.40 Como se vê, acaba de nascer a teoria das demissões de competitividade.”
39: Para uma avaliação humorística das consequências de semelhante abordagem, permito-me remeter o leitor a meu livrinho Une économie de rêve, Calmann-Lévy, Paris, 1995.
40: A maioria dessas citações provêm de Régis Nérnoz, Le Vrai Visage du libéralisme, Trérna, La Sarraz, 1997.


“A prática francesa das stock-options mostra a que ponto pode chegar a aberração: 45,4 bilhões de francos de capital acionário concentrados em 28,000 executivos vinculados às 40 maiores empresas; os adeptos mais ardorosos da compressão dos custos salariais colocam-se acima de sua própria lei. Reproduziremos um comentário de um dos articulistas do Monde: “Será que o trabalho de um homem, patrão ou executivo, vale, por competência e especialização, treze mil vezes mais que o trabalho de outro homem?... O dinheiro enlouquece... Eis então que o capitalismo empresarial ficou completamente maluco, construindo a fortaleza dos abastados sobre o excesso, a indecência, a falta de consciência e o cinismo... e cavando no próprio interior das empresas uma sociedade de duas velocidades, de dois universos, os acionistas e o resto, os especuladores e os assalariados de base.” 60
60: Pierre Georges, “Golden cadres”, Le Monde, 10 de setembro de 1999.


“Nos Estados Unidos, a parcela do PIB destinada aos 5% mais favorecidos da população passou de 16,5% em 1974 para 21% em 1994, enquanto a dos mais pobres caía de 4,3 para 3,6%,62 desestimulando os menos motivados e orientando-os para a delinquência; a própria OCDE63 assinalava em 1996 que “desde o fim dos anos 60 cada um dos quatro quintos mais baixos [80% das famílias] na realidade contraiu-se em proveito dos 5% superiores do leque de rendas”. No Fórum de Davos de 1997, Lawrence Summers, o nº 2 do Tesouro americano – que dificilmente passaria, portanto, por um detrator sistemático do sistema –, declarou que uma criança negra que nasce hoje no Harlem tem uma expectativa de vida inferior à de uma criança nascida em Bangladesh, menos chances de ser escolarizada antes dos cinco anos que um bebê de Xangai e passará em média mais tempo na prisão que na universidade. (...)
Por toda a parte, registra o relatório 1997 da CNUCED, “os ricos tornam-se cada vez mais ricos” e – podemos acrescentar – a defasagem em relação aos mais pobres, cada vez mais considerável. Nos países mais ricos do mundo, uma pessoa em cada oito é afetada por pelo menos um dos critérios pelos quais se define a pobreza humana.65 Precariedade, desigualdade, pauperização... temos de reconhecer que o “bom andamento” do sistema repousa na infelicidade dos homens.”
62: Philippe Lemaitre, “La pauvreté en Europe comme aux États-Unis”, Le Monde, 18-19 de maio de 1997.
63: OCDE, Études économiques de l’OCDE, États-Unis, Paris, 1996.
65: “Ou seja: desemprego de longa duração, expectativa de vida inferior a sessenta anos, renda inferior ao limiar de pobreza do país em questão, insuficiência de conhecimentos que permitiriam sair desta situação.


“O culto dos meios, promovidos à condição de fins, provoca uma neutralização dos valores e utopias mobilizadoras, com temíveis consequências.
Quando o salário é baixo demais, muitos consideram que o ganho não merece o esforço requerido e se voltam para a viração ou a delinquência. Nos Estados Unidos, diz Rifkin, 2% dos homens em idade de trabalhar estão na cadeia68, em dez anos a população carcerária passou de 750.000 a 1.700.000, proporcionalmente sete vezes mais que na França; segundo o mesmo autor – que acompanhamos aqui com extrema prudência, dado o caráter quase mecânico da relação que estabelece –, um aumento de 1% do desemprego aumentaria os assassinatos em 6%, os crimes violentos em 3,4% e os assaltos a residências em 2,4%. Isto explica em parte, diz ele, os baixos índices de desemprego constatados nos Estados Unidos: os desempregados estão na prisão. “A prisão”, comenta o Prêmio Nobel de economia Robert Solow, “é o seguro-desemprego americano.”
A exclusão leva à revolta uma juventude sem futuro que não suporta mais a provocação permanente de uma publicidade que convida e incita a desfrutar de artigos de consumo dos quais muitos se veem afastados, por falta de formação, de emprego e de renda. Que exemplo, que apoio moral, que acompanhamento podem oferecer-lhes pais sem emprego, sem horário, deixando que tudo corra ao deus-dará? Em nome de que os marginalizados do crescimento haveriam de respeitar isto? Em nome do exemplo dado pelas “elites”? Em nome da “grana”, novo valor supremo? Mas se os valores unem e aproximam, a “grana”, de que cada um se apropria em detrimento do outro, divide e opõe os homens. (...)
Não bastará pintar as fachadas de rosa, mobilizar os jovens em campeonatos de futebol ou mandá-los tomar ar fresco no campo. Devolver a cada um a noção de sua própria dignidade e a esperança no amanhã é naturalmente uma conversa muito diferente.
Nos mais fracos, o sentimento de impotência ante um fenômeno que ultrapassa as iniciativas individuais provoca desânimo, fuga na droga em direção a paraísos artificiais; como enfiar a cabeça na areia... Por um lado, a lei do mercado arruína os agricultores dos países em desenvolvimento em nome da liberdade das cotações internacionais, condenando-os à reconversão: na mesma área, o cultivo da cocaína proporciona ao agricultor colombiano, com menos esforço, renda sete a dez vezes superior à que extrairia de colheitas tradicionais. Miséria dando duro ou riqueza fácil: quantos professores de virtude resistiriam à tentação? O cultivo de plantas ilegais surge onde quer que as rendas sejam baixas demais. No outro extremo, o desespero dos homens garante o recrutamento dos consumidores.
O culto aos meios, enfim, não pode satisfazer a necessidade de sentido que é própria da natureza humana. Esta necessidade às vezes exprime-se simplesmente na busca religiosa, perfeitamente respeitável quando por sua vez respeita a busca dos outros. A ressurgência do fenômeno é evidente em escala mundial, abrangendo todas as confissões. Mas a fórmula dos anos 60 – “modernizar o cristianismo, o islamismo ou o judaísmo” – assume às vezes a forma mais ambígua de “cristianizar, islamizar ou judaizar a modernidade”.
A busca de valores descamba também para o delírio, o sectarismo e a violência: integrismos, fanatismos e seitas. Já não há aqui reino de Deus e reino de César: este já não passa de instrumento da vontade atribuída àquele por militantes de olhar febril; já não há demarcação entre as consciências, onde as convicções individuais desabrocham livremente, e o Estado, cuja neutralidade garante esta liberdade: a força pública não passa do braço secular através do qual a instituição religiosa tritura consciências e corpos. Pela salvação das almas, naturalmente.”
68: Jeremy Rifkin, The End of Work, Tarcher/Putnam Books, Nova 1995.


“Dizem-nos – por falta de consciência ou desprezo – que de um aumento de liberalismo futuro surgirá a solução espontânea para os problemas gerados pelo liberalismo existente: a melhoria do nível de vida, o desenvolvimento, o emprego, o respeito às normas de trabalho, a preservação do ambiental; como se a questão do nível de vida não se colocasse hoje em termos de distribuição, mais que de produção; como se os menos desenvolvidos sofressem mais as consequências de uma carência de capitais privados do que do excesso de sua volatilidade; como se não lhes fizessem falta, sobretudo, capitais públicos e ajuda internacional, únicos capazes de assumir os investimentos de infraestrutura não imediatamente rentáveis; como se o problema do emprego não estivesse ligado ao confisco da renda pelos capitais privados, mais que a sua própria penúria; como se não fosse a busca prioritária do lucro que destruísse o meio ambiente. E quem vai acreditar, enfim, que é a liberação total dos apetites e não a lei, que garantirá o respeito às normas de trabalho?
“Liberalizem! Do resto cuidamos nós!” Nosso problema é exatamente inverso. Hoje são o homem, a natureza, a vida que se veem ameaçados pelos excessos do liberalismo. É preciso então inverter o procedimento e estabelecer como prioridade o respeito às normas fundamentais. Teremos assim delimitado, de um só golpe, o campo no qual o jogo dos interesses individuais poderá acontecer livremente. (...)
A primeira norma não é o capital, nem o lucro, nem a liberdade reduzida à do mercador, mas a pessoa, a solidariedade dos povos e das gerações, a vida, a biosfera, a liberdade pura e simples. Os valores socioculturais que fundamentam estes objetivos têm como corolário a supremacia da esfera política – expressão da escolha de sociedade livremente expressa pelos cidadãos – sobre o instrumento econômico.
Não se trata de filosofia, mas de teoria dos sistemas. Um sistema – vivo, por exemplo –constituído de níveis específicos só funciona corretamente se:
– estiver submetido aos imperativos de uma finalidade comum que transcenda as dos diferentes níveis (supremacia do político e da democracia);
– todos os níveis participarem da definição dessa finalidade e do funcionamento do conjunto, no respeito a especificidade de cada um, do elemento aos subsistemas e ao sistema como um todo (economia e sociedade “plurais”).”


“O bom funcionamento de um sistema pressupõe que todos os níveis participem da definição da finalidade comum e do controle do bom funcionamento do conjunto.
Como ninguém pode demonstrar a superioridade de seu sistema de referência, e como todos devem viver juntos, é necessário que cada um aceite a diferença do outro. O que em nada altera a força das paixões nem o ardor das convicções. Pluralidade das lógicas defrontadas, impossibilidade de reduzir o sistema a uma delas, necessidade de levar todas em conta em sua diversidade: temos aí os fundamentos do pluralismo e da democracia. Ao contrário do que pretendem os arautos do sistema estabelecido, é portanto a democracia, e não o mercado, que segue a natureza das coisas.
É natural que se confrontem e defrontem os pontos de vista divergentes dos grupos humanos que formam a sociedade. O unanimismo é que constitui a verdadeira perversão: onde quer que se instale – na Alemanha hitlerista ou na URSS stalinista – reina a opressão.
O problema central de um sistema social não está no conflito, mas na maneira como é arbitrado.
A arbitragem pode estar a cargo de um dos componentes do sistema, conseguindo impor sua regra e apresentar seus interesses particulares como interesse social: assim é que modernamente o respeito absoluto à propriedade individual não tem muito a ver com os deveres que estavam associados a esta instituição na Europa cristã da Idade Média; estamos então diante de um caso de regulação de um sistema por uma de suas partes constituintes (reducionismo por baixo): é o que acontece com a sociedade burguesa no século XIX ou o controle da lógica financeira sobre a sociedade contemporânea; por trás do brinquedinho democrático formal dissimula-se a dominação de uma fração social sobre todas as outras; esta democracia é que se tornou majoritária no mundo a partir do momento em que passou a atender aos interesses do capitalismo em vez de refreá-los.
Se a arbitragem é de um centro ou de uma cúpula, sufocando a expressão dos componentes para impor sua lógica global do “todo” (reducionismo pelo alto), estamos diante de um “totalitarismo” no sentido próprio da palavra; esses sistemas, que só funcionam graças a mecanismos muito fortes de coação que paralisam a iniciativa individual, invariavelmente revelam-se ineficazes a longo prazo, pela ausência de capacidade de adaptação, e nunca sobrevivem por muito tempo aos déspotas megalomaníacos que os criaram: foi o caso da Alemanha nazista “criada para mil anos”, da URSS que detinha os direitos sobre o futuro do mundo, de todos os impérios.11
A única forma de arbitragem que corresponde à lógica dos sistemas é aquela na qual o debate democrático permite às diferentes concepções da utilidade social se defrontarem, ao conjunto da coletividade arbitrar e à alternância democrática oferecer periodicamente a cada um desses componentes a oportunidade de fazer valer seu ponto de vista no exercício do poder. É a democracia que se mantém de acordo com a “natureza das coisas”, e o reducionismo mercantil que a violenta.”
11: “Desde que la cosa dure”, dizia madame Letizia, a mãe de Napoleão, que não era destituída de bom senso...


“Reencontramos aqui a necessidade sistêmica de fazer com que coabitem todos os níveis de organização, do individual ao coletivo, respeitando a especificidade de cada um.
Desde os anos 80, em nome do reducionismo mercantil, a ofensiva contra os serviços públicos vai a mil. Depois da investida contra a economia do bem-estar (o Welfare State), ataca-se a própria existência do Estado16, que teria de ser “desinventado”: “deinventing the State”, escreve The Economist de 20 de maio de 1995. E como há necessidade de objetivos nobres, acusa-se a centralização burocrática e a baixa eficácia dos serviços públicos, que seriam em última análise a perda do bem-estar dos cidadãos. Liberar, liberalizar, privatizar; abaixo o setor público, refúgio de todos os passadismos.
Colocar a questão dos serviços públicos e do Estado significa antes de mais nada colocar a questão da lógica social e do modo de controle: se em todos os níveis a economia obedece exclusivamente à lógica individual mercantil, o único regulador só pode ser o mercado. Esta convicção exprime-se na própria incapacidade em que se encontra a economia mercantil de definir a economia pública senão de maneira residual, em relação a si própria: “Todo serviço que não seja fornecido nem em bases comerciais nem em concorrência com um ou vários fornecedores de serviços”, dizem os acordos de Marraquech de 1994, na fundação da OMC. A partir do momento em que uma parcela das atividades de um setor passa pelo mercado, todo o setor passa a ser passível de liberalização: assim é que a saúde e a educação entram “naturalmente” na esfera da privatização. E, portanto, exclusivamente em relação à realidade mercantil reconhecida que se avalia o desempenho do setor público, e como seus produtos não são vendidos no mercado, a consequência é evidente: eles não têm valor e o serviço público só comporta custos. (...)
Existe uma racionalidade individual e uma racionalidade coletiva, interdependentes, mas irredutíveis uma à outra. Uma refere-se aos interesses individuais; a outra, ao interesse geral.17 Esta incumbe-se, portanto, dos bens coletivos (o farol, a barragem, a infraestrutura...), da utilidade social (saúde, educação...) e dos direitos fundamentais dos indivíduos (liberdade, segurança, igualdade perante a lei e no acesso aos bens comuns...). Cada um desses campos define-se, portanto, segundo suas funções.
É ao nível do interesse individual que se manifestam, da forma mais motivada e mais bem informada, as aspirações da multidão de seres conscientes que formam a sociedade. Nenhum sistema pode ignorá-lo, sob pena de ineficácia, de coerções inúteis e finalmente de autodestruição. Foi desta ignorância que morreu a economia hipercentralizada do Leste. Este interesse individual exprime-se no mercado, cujo prêmio é o lucro. Mas o mercado não pode garantir as duas funções para as quais não foi concebido: a reprodução dos recursos humanos18 e do meio ambiente.
O interesse coletivo também existe, irredutível ao anterior. A necessidade coletiva não decorre da necessidade individual; é, como vimos, de natureza diferente. O bem coletivo não preenche qualquer das condições da formação de um preço no mercado. Do ponto de vista da demanda, seu serviço é ao mesmo tempo indivisível e simultaneamente consumível por cada um, sem que nada seja retirado aos outros: o navegador que se orienta pela luz do farol a utiliza inteiramente (e não em maior ou menor quantidade, em função de um preço), mas deixando-a inteiramente disponível para os outros; ao contrário do que acontece com o bem individual, que só pode pertencer a uma ou outra pessoa, não existe competição pela posse do bem coletivo, e nada obriga o consumidor a revelar suas preferências oferecendo um preço, pois nenhuma concorrência pode privá-lo dele. Do ponto de vista da oferta, o bem coletivo não tem custo marginal: a construção de um pedaço de farol não tem sentido, ele deve ser construído por inteiro ou de nada serve; François Perroux qualificava esse tipo de investimento como “apostas em estruturas novas”. Na ausência de revelação de preferências e de custo marginal, o bem coletivo não faz parte da lógica mercantil.
Sua rentabilidade não se revela ao nível de sua conta de exploração, mas na das empresas que o cercam, e a longo prazo. A verdadeira eficácia econômica das ferrovias, na história, não é medida por seus lucros ou perdas, mas por sua contribuição para o crescimento do produto nacional. É inclusive o déficit que pode ser racional aqui, na medida – e no limite – em que estimula a criação de riquezas que lhe são superiores.19 Que dizer, a fortiori, da saúde ou da educação? Consideremo-las por um momento como simples bens intermediários valorados à luz da rentabilidade mercantil. Avaliando-as exclusivamente pelo ângulo do custo, o pensamento dominante apressou-se a declarar improdutivas as instituições públicas que as assumem. A formação dos espíritos e o estado de saúde dos homens não significariam nada? Tomemos ao pé da letra os cavalheiros do Medefe transponhamos, pensando neles, a célebre parábola de Saint-Simon (1810): que aconteceria com a eficácia de suas empresas, aparentemente as únicas criadoras de riqueza, se amanhã deixassem de existir esses monumentos de suposta improdutividade que são o sistema educativo, o sistema de saúde, a infraestrutura pública de transportes e comunicações, todos os serviços públicos? “A nação tornar-se-ia um corpo sem alma no momento em que os perdesse”, e os detratores do serviço público veriam o que aconteceria com a magnífica produtividade de que se vangloriam; dar-se-iam conta de quanto de seu desempenho devia-se à coletividade, assim como dos encargos financeiros de formação e manutenção do “material humano” (que é como o enxergam), dos quais se viam até então dispensados. E que aconteceria, em compensação, se – que Deus nos livre – todo o seu estado-maior, o califa, seu braço direito, seu braço esquerdo, seus vizires grandes ou pequenos que de bom gado se veriam como califas no lugar do califa, se todos eles decidissem voltar à sombra? Isto “certamente afligiria os franceses, pois eles são bons [...]. Mas esta perda só os magoaria de um ponto de vista puramente sentimental, pois nenhum problema político dela resultaria para o Estado”.”
16: Riccardo Petrella, “Mondialisation, services publics et Europe: se battre pour la citoyenneté”, Transversales Science/Culture, nº 37, janeiro-fevereiro de 1996.
17: Em muitos países se fala de “serviços públicos”, mas de atividades ou serviços de “interesse geral”. Esta expressão encaixa-se perfeitamente no que acabamos de dizer.
18: Ver mais na página 113.
19: Cabe acrescentar que faz parte da lógica do bem coletivo mobilizar um potencial excedentário em relação às necessidades que deve satisfazer; a ponte e a barragem são construídas visando a longa duração; seu objetivo é, antes, permitir o surgimento de novas atividades geradoras de novas necessidades do que satisfazer as imediatamente existentes; a irracionalidade estaria no fato de serem plenamente utilizadas que inauguradas; o capital que mobilizam não pode, assim. ser imediatamente rentabilizada, mas apenas nesse mesmo longo prazo que não interessa aos capitais privados.


A ilusão neoliberal (Parte IV) – René Passet

Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-107-2
Tradução: Clóvis Marques
Opinião★★★★☆
Páginas: 370

Uma primeira lição da destruição criadora é que não devemos confundir a durabilidade das coisas com a das funções. O que precisa ser preservado são as funções. Só o que evolui pode manter-se: ao nível do corpo, a renovação das células garante a preservação das funções vitais. Em última análise, a própria morte representa um truque da vida, pois assegura o movimento de rejuvenescimento permanente graças ao qual esta pode manter-se, conservando seu dinamismo. Pretender estabilizar as coisas em todos os níveis – do planeta durável a meu bairro e a minha casa duráveis – é fazer com que nada o seja. Congelar tudo num mundo que se movimenta permanentemente é a melhor maneira de fazer com que tudo soçobre. É pela transformação das coisas que podemos assegurar a perenidade das funções.
Uma segunda lição da destruição criadora reside numa exigência de memória. Se só o que muda pode ser preservado, devemos acrescentar que só o que comporta um mínimo de invariantes pode mudar. Essas invariantes, transmitidas através do tempo, constituem a memória das coisas, ou seja, sua identidade. Na sua ausência, não é de mudança dos sistemas que devemos falar, mas de seu desmoronamento e de seu desaparecimento. A cidade, por exemplo, está enraizada no tempo, e as marcas do tempo escrevem sua história construindo algo que não devemos hesitar em chamar – pois se trata de uma estrutura viva – de seu caráter e sua personalidade. Está aí toda a diferença entre a verdadeira cidade humana e a fria acumulação de casas habitáveis. Não é possível entender o presente sem fazer reviver o passado. É pela memória que as gerações de ontem e as de hoje continuam a formar uma mesma comunidade. Harmonizar a mudança e a permanência vem a ser toda a arte de uma política de desenvolvimento durável.”


“A globalização, como fato concreto, não pode ser questionada, mas sim a política de desregulamentação e liberalização a toda prova aplicada a partir dos anos sob o impulso da dupla Reagan-Thatcher.
Não se trata de contestar a existência do mercado, instrumento insubstituível de criatividade individual e espaço de múltiplos centros de decisão cuja pluralidade condiciona a capacidade de adaptação e a estabilidade dos sistemas, mas de pôr fim ao reinado da economia mercantil sobre o conjunto da sociedade; no próprio ideário dos grandes autores liberais, nenhum mercado pode existir sem um enquadramento institucional e regulamentar –um direito dos contratos, por exemplo; a questão diz respeito à natureza do enquadramento jurídico que preserva as virtudes do mercado ao mesmo tempo em que reprime seus defeitos.
O liberalismo de que se paramentam os defensores do sistema não tem muito a ver no caso; ele camufla uma tentativa de apropriação da renda produzida pelo conjunto da nação.
Pareceu-nos que o nó górdio de nossos problemas reside na ascendência de uma finança que impõe sua lógica às empresas e aos Estados, deslocando o poder de decisão da esfera política para a dos grandes interesses privados mundiais e invertendo a lógica social a ponto de fazer dela surgir exatamente o inverso do que se poderia esperar.
Sob este ângulo, o problema é, portanto, triplo: trata-se de controlar os abusos da finança, reconquistar em proveito da esfera pública – vale dizer, dos cidadãos – o poder confiscado por aqueles que o próprio CNUCED chama de “novos senhores do mundo” e explorar da melhor maneira possível a dimensão positiva do movimento de destruição criadora que conduz as economias.”


“O que está em causa é a especulação sob todas as suas formas, a corrida produtivista desencadeada pela esfera financeira e estimulada pelas modalidades de taxação pública, a lavagem do dinheiro sujo que não seria possível sem a cumplicidade da esfera econômica “limpa”. Não existe portanto uma panaceia neste terreno: o controle da finança não é apenas um problema de finanças, mas também de sociedade.

Para controlar os abusos especulativos, a taxa Tobin é uma medida emblemática, mas parcial. Nem toda especulação, como vimos, é perversa, mas logo desemboca em puros “jogos de cassino”, alimentando um exército de parasitas que nada produzem, nada criam e permitem apenas o acúmulo de direitos à partilha do PIB em favor dos detentores de capitais e em detrimento dos outros atores da economia.
Contra tais abusos, o mínimo que se pode exigir dos defensores do sistema seria que se mostrassem fiéis a si mesmos, aplicando os princípios elementares da economia liberal: transparência, enrijecimento das regras de prudência (como a obrigação de depositar uma parte importante dos valores empenhados numa operação especulativa26), reforço das taxas bancárias (taxa Cooke27), desenvolvimento da avaliação de riscos (modelos do tipo Morgan28), reforço da vigilância dos mercados financeiros e bancários, acordos e cooperação internacionais, como na época dos acordos do Plazza (1985) e do Louvre (1987) e tal como se aplica empiricamente ao nível do G7 ou do G8. Quem deixaria de apoiar tais medidas?... Talvez unicamente alguns eminentes defensores da economia de mercado, na qual, no entanto, elas se inspiram. Mas tais medidas não seriam suficientes.
A “taxa Tobin”29 tem como objetivo contrariar o jogo especulativo de curta duração sem travar os movimentos da economia real. O princípio é conhecido. Trata-se da cobrança de uma taxa extremamente modesta
– da ordem de 0,1 a 0,5% (1 a 5 por mil) – a ser efetuada sobre toda transaçãoenvolvendo divisas. Seu objetivo seria reduzir a volatilidade das taxas de câmbio, contrariando certas formas de especulação, sem afetar os investimentos ou as trocas reais. É preciso lembrar que os “jogos de cassino” antecipam diferenciais de cotações de alguns milésimos de ponto e envolvem massas de capitais consideráveis trocadas várias vezes em prazos muito exíguos: 80% dessas trocas são idas-e-voltas essencialmente especulativas, de duração inferior a uma semana e às vezes a vinte e quatro horas. Tomando-se como base 240 dias úteis por ano, uma taxa de 0,1% cobrada toda vez que for feita uma dessas transações representa um índice anual de 48% em caso de ida-e-volta diária, de 10% tratando-se de movimentação semanal e de 2,4% se for mensal.
Em compensação, uma transação comercial pagará a taxa uma única vez. No caso dos capitais, o encargo anual representará em caso de aplicação por um ano e cairá em função da duração até 0,02% em caso de aplicação por cinco anos. Como as taxas variam em função inversa da duração das operações, as transações comerciais internacionais ou os investimentos produtivos não seriam afetados. (...)
Como escreve Bernard Cassen, a adoção de uma taxa desta natureza “sancionaria o retorno do político. [...] O fato de os dirigentes eleitos e os governos tratarem de taxar a especulação sobre as moedas significaria que voltam a se firmar e julgar ter sua palavra a dar na esfera financeira. Um perigoso precedente. [...] É efetivamente seu caráter emblemático que deixa em transe os liberais”.”
26: “A gigantesca especulação que constatamos”, afirma Maurice Allais, “só é possível porque se pode comprar sem pagar e vender sem deter”, in “La mondialisation, le chômage...”, art. cit.
27: A taxa Cooke obriga os estabelecimentos bancários a respeitar uma certa proporção entre seus fundos próprios e seus compromissos.
28: Trata-se de um modelo de avaliação de riscos que J. -P Morgan pôs gratuitamente à disposição de seus pares, para sensibilizá-los para os riscos reais dos produtos derivados.
29: François Chesnais, Tobin or not Tobin, L’Esprit frappeur, Paris, 1999.


“Temos então o acionista exercendo o poder supremo. Não se trata, naturalmente, do pequeno poupador que ao fim de toda uma vida de trabalho extrai alguns rendimentos do capital modesto que conseguiu juntar. No momento em que a empresa assume mais que nunca uma dimensão social, tanto pela natureza dos fatores que determinam seu desempenho quanto pelas consequências de suas atividades, é precisamente seu componente mais acanhado, mais obtuso, mais distante das coisas da vida e mais ignorante do que significa o ato de produção que assume o seu controle. Os diretores-presidentes mais pomposos são incumbidos de prestar contas aos representantes dos fundos de pensão, explicar, justificar sua estratégia... E se não são capazes de convencer, são dispensados sem contemplação, como ocorreu com o presidente da IBM em 1993, o da Kodak em 1995, o da Compaq em 1999 e muitos outros... Não é preciso muito mais para entender a consideração devida pelo poder do dinheiro àqueles de que se serve. Por experiência, o empresário tradicional – que tampouco deve ser idealizado – sabia que para produzir é necessário combinar realidades diversas, materiais, humanas, financeiras... Tinha isto em comum com os trabalhadores que empregava. Pois hoje ele se apaga diante dos homens da contabilidade, que só conhecem a realidade dos números.”


“O espaço mundial, entendido como um simples espaço de livre-troca, revelou-se o lugar de todos os dumpings e todas as dominações. A liberdade das trocas só tem sentido entre nações com nível de desenvolvimento econômico e social comparável. Caso contrário, permite as distorções de concorrência ligadas à não-integração dos custos sociais ou ambientais aos preços praticados pelos menos desenvolvidos (dumping social e dumping ecológico), enquanto se exercem em sentido inverso os efeitos de dominação e os “controles de estruturas” dos poderosos sobre os fracos, evidenciados nos anos do pós-guerra pelo economista francês François Perroux.”


“Todo atraso tecnológico condena à dependência.”


“Seria necessário atacar os problemas “no coração”. Enquanto uma lógica de eficácia monetária e rendimento financeiro a curto prazo continuar a impor sua lei às sociedades, enquanto a cooperação entre as nações, o controle dos desvios mercantis e a organização institucional do espaço internacional não permitirem o restabelecimento da hierarquia legítima das finalidades e meios, nada de decisivo poderá sair de qualquer das acumulações de medidas específicas que costumam ser adotadas. Portanto, é aí que se encontram as prioridades; mas isto não nos dispensa de atacar diretamente cada uma das formas do que já definimos como “perversão da promessa”. Realizar esta promessa significa, portanto:
– restabelecer a caminhada para a reaproximação dos povos;
– devolver ao progresso técnico seu sentido de libertação dos homens,
– favorecer o acesso de todos à partilha do produto comum.
Quanto ao respeito dos organismos vivos, já deixamos, claro que o consideramos uma prioridade.”


“Entretanto, a ajuda internacional, ainda que insuficiente, pode dar origem a dívida cujo aumento constante – pelo jogo dos juros que se somam automaticamente ao capital – cria um círculo vicioso que os obriga a estar permanentemente galgando o eterno rochedo de Sísifo. Deste ponto de vista, Eric Toussaint8, presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), chama a atenção para o absurdo da situação atual, na qual todo ano os países do terceiro mundo reembolsam 200 bilhões de dólares às instituições internacionais e aos países ricos, recebendo apenas 48 bilhões, no total das ajudas públicas.
Temos uma grande parte de responsabilidade nesta situação. Se as instituições internacionais, os países industrializados e os bancos privados favoreceram até o fim dos anos 70 uma política de empréstimos a juros baixos e às vezes negativos, incitando os países do Sul a se endividarem, foi para estimular as exportações do mundo industrializado. A crise do endividamento do terceiro mundo a partir de 1982 foi gerada pela alta das taxas de juros decidida pelo banco federal dos Estados Unidos, assim como pela queda das rendas de exportação e a suspensão dos empréstimos bancários, como se se quisesse quebrar a propulsão de seu desenvolvimento industrial.
Somos nós que Perpetuamos o problema. Os “planos de ajuste estrutural” que o FMI, o Banco Mundial, os governos do Norte (reunidos no Clube de paris) e os bancos privados (Clube de Londres) atrelam a seus empréstimos traduzem-se na aceleração das privatizações, na redução dos gastos sociais, na desregulamentação do mercado de trabalho, produzindo desemprego (23 milhões de empregos sacrificados no Sudeste asiático desde o início da crise de 1997) e pobreza crescente. Esses países são obrigados a sacrificar ao serviço e ao pagamento da dívida a formação de um capital produtivo e de infraestrutura (transportes, energia, educação, saúde...) que constituem a base essencial de qualquer desenvolvimento. E quando o Banco Mundial passou a preocupar-se com estruturas, foi, até agora, para obrigar os países em desenvolvimento a sacrificar suas culturas de produção de víveres em nome das culturas de exportacão, ou ainda para apoiar projetos de grandes represas (Inga no antigo Zaire, Narvada na Índia) e vias de comunicação (Transamazônica no Brasil) que se revelaram catástrofes ecológicas e econômicas.
O pagamento da dívida e dos juros repousa na exportação de matérias-primas (petróleo, gás, minerais sólidos, borracha, açúcar...) cujas taxas de troca se degradam (entre 15 e 45% em 1998) e no recurso a novos empréstimos cujas taxas (10 a 15% no Brasil, no México, na Argentina, na Tailândia) são muito superiores às cobradas nos países industrializados (3 a 5%) – exigências da lógica financeira. De tal modo que entre 1982 e 1998 os países do terceiro mundo pagaram quatro vezes o montante de sua dívida externa, que no entanto era multiplicada por quatro no mesmo período. Em 1997, ela chegava a 1,950 trilhões de dólares, excetuados os países do Leste. Já não é assistência, mas estrangulamento,
A anulação geral desta dívida se impõe, começando imediatamente pelos 300 bilhões de dólares que correspondem aos atrasados impossíveis de pagar dos países pobres mais endividados, e o desenvolvimento de uma política de ajuda pública internacional orientada particularmente para o financiamento dos investimentos em infraestrutura econômica e social não imediatamente rentáveis.”
8: Eric Toussaint’ “Briser la spirale infernale de la dette”, Le Monde diplomatique, setembro de 1999. Nosso raciocínio a este respeito deve muito a este artigo. Ver também seu livro La Bourse ou la vie. La finance contre les peuples – Luc Pire (Bruxelas) – Syllepse (Paris) – Cétim (Genebra), 1998.


“O mais belo resultado da política neoliberal foi incontestavelmente a Inglaterra de Margaret Thatcher. (...)
O balanço de dezesseis anos de flexibilidade conservadora não poderia ser mais eloquente (Thatcher e John Major):
– uma taxa de crescimento anual média de 1,6% desde 1979, a menor dos sete grandes países industrializados, apesar dos rendimentos extraídos do petróleo do Mar do Norte;
– o índice de criação de empregos mais lento de todos os países da União Europeia; os êxitos ostentados depois de 1993 serviram apenas para compensar a perda de 1.600.000 postos provocada entre 1990 e 1993 por esta mesma política, chegando em 1995 a um nível (25.500.000) pouco superior ao de 1979 (25.000.000);
– uma política favorável aos mais favorecidos, cuja carga fiscal é aliviada, e dura com os mais destituídos; empregos pouco qualificados, mal remunerados, multiplicação dos working poor, proteção social enfraquecida e uma sociedade em decomposição na qual um terço das crianças vivem em famílias nas quais nenhum adulto tem um emprego; um milhão de pessoas – entre as quais 800.000 mulheres – ganhando menos de 2,5 libras (23 francos) por hora em trabalhos frequentemente de tempo parcial; desigualdades que se agravam, portanto;
– um aparelho produtivo arruinado: um capital que envelhece, o de idade mais elevada do G7 (doze anos em média, contra sete nos Estados Unidos e cinco no Japão), assalariados pouco qualificados, investimentos insuficientes, uma produtividade medíocre, uma aparência de competitividade mantida apenas através de salários baixos associados a uma duração do trabalho mais longa que na maioria dos países concorrentes28; alguns dos maiores orgulhos da indústria – Rover (automóveis), GEC-Plessey (equipamentos de telecomunicações), ICL (informática) – e dos bancos de investimentos (Níorgan Grenfeld, SG Warburg, Barings) vendidos a grupos estrangeiros; apenas sete empresas britânicas entre as quinhentas maiores do mundo segundo a Fortune.
A flexibilidade traduz, antes de mais nada, a inversão da relação de forças em proveito dos empregadores, questionando a sociedade de bem-estar derivada dos “Trinta Gloriosos”, substituindo-a por uma sociedade de precariedade que será difícil fazer com que aceitemos como modelo. Ela é exercida sob pressão das remunerações praticadas nos países menos desenvolvidos, mas também – e talvez sobretudo – sob o efeito da competição entre países ricos: as empresas japonesas encontram cada vez maior dificuldade para manter a tradição do emprego vitalício, tendo de enfrentar a concorrência de suas equivalentes americanas que praticam a flexibilidade do emprego e dos salários. Em todos os casos, naturalmente, o ajuste é feito para baixo. A ênfase exclusiva no custo dos recursos humanos tem como efeito reduzir cada um dos elementos que interferem na partilha do excedente de produtividade – volume de trabalho, salário, financiamento social – em concorrência com a parte do capital financeiro. É este, com efeito, como já vimos, o resultado obtido, e é esta, sem qualquer dúvida, a finalidade inconfessada desta política.”
28: Sobre todos estes pontos, ver Richard Farnetti, Le Royaume désuni, Syros, col. “Alternatives économiques”, Paris, 1995.


A questão da idade da aposentadoria enquadra-se nesta mesma lógica. Indo ainda mais longe que as recomendações do relatório Charpin34, segundo o qual o equilíbrio financeiro do sistema exigiria elevar a duração da contribuição de 37,5 para 42,5 anos, certos dirigentes patronais – que nunca se fazem de rogados quando se trata de um “avanço” social – sugerem uma duração de 45 anos; uma aura de pudor é que certamente os impede de ir até o fim de sua lógica, que consistiria em esperar a data da declaração de óbito do beneficiário. É invocada a demografia: o fim do baby-boom, conjugado ao aumento da expectativa de vida, provocaria um grave desequilíbrio na relação dos aposentados com as “pessoas de idade ativa”, a qual, “numa ótica de viabilidade financeira, é determinante”; de 1995 a 2040, o peso relativo daqueles sobre estas se elevaria de 4 a 7 por 10 (ou + 75%); conclusão: “A situação financeira da maioria dos regimes encontra-se ameaçada [...] só um deslocamento da idade de fim de atividade” permitirá manter a atual relação de 4/10.
O argumento é rigorosamente idêntico ao que poderia ser sustentado no imediato pós-guerra, com respeito à tragédia alimentar que certamente teria ocorrido na França antes do fim do século: ao passo que em cinquenta anos a população do país passaria de 41 a 58 milhões de habitantes, as superfícies cultivadas diminuiriam em 20%, dois terços dos empreendimentos agrícolas desapareceriam e a população ativa agrícola cairia de 7,5 a 1,2 milhão de indivíduos, de modo que cada um deles teria de alimentar não mais 5,3, mas 48,3 pessoas. Um drama alimentar sem precedentes se abateria sobre nosso país. O argumento – evidente e límpido – estaria simplesmente esquecendo de levar em conta a multiplicação por vinte e oito, em um século, da produtividade horária do trabalhador agrícola.
A mesma omissão basta para aniquilar a demonstração que nos é impingida sobre a idade de aposentadoria. Se, segundo as estimativas da própria comissão, a produtividade do trabalho deve aumentar ao ritmo anual de 1,7% observado há vinte e cinco anos, a produção dos 10 ativos – permanecendo iguais as demais condições – terá dobrado entre 1995 e 2040, de modo que os 7 inativos de fim de período representarão, em relação ao ano inicial, o peso de 3,5 inativos; em vez de aumentar, a carga relativa terá diminuído 12,5%. Mas há ainda melhor: se este conceito de carga tem algum sentido, só a população efetivamente ocupada (e não a população “de idade ativa”) pode ser considerada produtiva, e o fardo a ser carregado estende-se ao conjunto da população desocupada: aposentados, naturalmente, mas também crianças, doentes, pessoas no lar. Neste caso, o aumento relativo de uma categoria da população é necessariamente compensado pelo recuo relativo de uma ou várias outras categorias; desse modo, o peso total da população desocupada em relação à população ocupada, passando de 1,63 em 1995 para 1,73 em 2040, aumentará apenas 6%, em vez de 75%. Melhor ainda, e sempre de acordo com os números do relatório – que não tira qualquer conclusão a respeito –, esta “carga” diminui até 2010 (- 14%), para voltar ao nível atual somente em 2030 – trinta anos de segurança! – e alcançar 106% de seu nível inicial apenas em 2040, o que, levando-se em conta o aumento da produtividade, situa o total real da carga em 53% de seu peso inicial.35
O único resultado – e certamente a única motivação – do relatório sobre a idade de aposentadoria seria, portanto, reduzir o montante das contribuições pagas aos beneficiários, para maior vantagem dos detentores do capital. Não resta dúvida de que há quem sinta saudades dessa época bendita e – que não está tão distante assim – em que, tendo contribuído durante toda a vida, o trabalhador tinha o bom gosto de desaparecer antes de ter abusado de seu direito de receber uma pensão: “Naquela época, meu senhor, as pessoas sabiam viver... e sobretudo morrer em tempo hábil.”
34: Projet de rapport sur les retraites, elaborado pela comissão presidida por Jean-Michel Charpin, comissário geral do Planejamento, 25 de março de 1999; salvo indicação em contrário, as citações que se seguem são extraídas desse texto.
35: Todos estes números foram extraídos do relatório ou estabelecidos com base em seus dados.