segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Cristião Rosas, médico: “O aborto legal é um direito. A influência religiosa (fundamentalista e hipócrita) faz mal à saúde e põe vidas em risco”. Artigo publicado no El País


Do El País:

Cristião Rosas, médico: “O aborto legal é um direito. A influência religiosa faz mal à saúde e põe vidas em risco”

O ginecologista obstetra de São Paulo, representante no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir, defende que médicos sejam obrigatoriamente formados para atender casos de interrupção legal da gravidez. Para ele, objeção de consciência não pode levar à omissão de socorro

O ginecologista obstetra Cristião Rosas, coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice - GDC).
O ginecologista obstetra Cristião Rosas, coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice - GDC).LELA BELTRÃO

Em 1989, quando a Prefeitura de São Paulo montou o primeiro programa público de aborto legal no país, no Hospital de Jabaquara, o ginecologista obstetra Cristião Rosas foi um dos poucos profissionais que aceitou fazer o treinamento para prestar atendimento emergencial às vítimas de violência sexual e realizar a interrupção da gravidez prevista em lei. De formação protestante presbiteriana, o médico iniciou o trabalho com dúvidas éticas sobre vida e fé, mas elas logo se dissiparam nos primeiros casos que recebeu, um deles de uma criança de 12 anos que havia engravidado após ser estuprada por dois homens: “Ela segurou no meu braço e disse: ‘Doutor, tira essa coisa de dentro de mim? Me salva’”, lembra Rosas, de 65 anos, hoje coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice - GDC) e ex-diretor do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Maternidade-Escola Vila Nova Cachoeirinha, na capital paulista.
O médico acompanhou à distância o caso da menina de 10 anos do Espírito Santo, que passou por um aborto após ser estuprada pelo tio de 33 anos. “Nos centros de atendimento à interrupção legal da gravidez, as meninas menores de 18 anos são 60% do casos”, afirma Rosas, que, apesar de rezar “todo dia e toda noite”, critica os grupos fundamentalistas religiosos que fizeram pressão e protestos para que a garota não realizasse o procedimento que lhe é garantido por lei. “É preciso dar um basta nessa intromissão na individualidade das pessoas. Está se demonstrando à sociedade que a influência religiosa faz mal à saúde e põe a vida em risco”, diz ele. Rosas conversou com o EL PAÍS sobre os direitos em saúde das mulheres, as barreiras para que elas acessem esses direitos e a importância de que a classe médica seja treinada para receber e atender casos como esse.
Pergunta. Qual é o panorama do aborto legal no país?
Resposta. A questão da interrupção legal da gravidez no Brasil é um problema há 80 anos. Em 1940, o Código Penal já contava com dois permissivos legais, em caso de risco de vida materno e no caso de estupro e, mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal acrescentou os casos de anencefalia. Mas o fato é que existem várias barreiras de acesso das meninas, adolescentes e mulheres a esse serviço. Até mesmo no risco de vida materno há questionamentos por parte da sociedade, senão não teríamos tantas mortes maternas com patologias graves que poderiam ter sido detectadas no começo da gravidez e essas mulheres poderiam ter sido orientadas a respeito da interrupção da gestação antes de uma complicação que a levasse à morte.
P. Mas, quando se fala de estupro, as barreiras parecem ser maiores. Por quê?
R. Primeiro que, de uns anos para cá, as políticas públicas voltadas a essa questão não tiveram um incremento, no sentido do olhar para o serviço e os hospitais. O gestor tem que assumir sua responsabilidade e seu compromisso com os direitos das mulheres. Se os secretários estadual e municipal de saúde, o diretor do hospital, o ministro da Saúde não estão interessados, envolvidos nisso, fica muito complicado que, lá na ponta, se realize um atendimento tão complexo como esse, que, ao meu ver, deveria se pagar como se pagam as cirurgias da mais alta complexidade do SUS. Quando se atende uma vítima de estupro, você tem uma equipe multidisciplinar que tem que acolher, entender a história, é todo um processo que envolve treinamento, sensibilização… Mas as primeiras barreiras são administrativas mesmo.
Nós não precisamos mais de leis, portarias, normativas, orientações e protocolos clínicos, eles já existem, o que precisamos é tirar os porteiros que trancam as portas com cadeados, impedindo as mulheres de acessarem os seus direitos. Um exemplo é a Lei 12.845/13, que obriga os serviços do SUS a prestarem atendimento integral a vítimas de violência sexual, desde o acolhimento, a profilaxia, a atenção psicológica até, se ela tiver grávida, o acesso ao aborto legal. Apesar dessa obrigatoriedade, os gestores e diretores descumprem essa lei. Até hoje eu não entendo por que o Ministério Público não aciona esses administradores. Ninguém está pedindo um favor. Esse é um direito civil e constitucional, e a Lei obriga as unidades do SUS a realizarem esse atendimento, mas nada acontece.
P. O senhor acredita que essa isenção quanto ao cumprimento da Lei se dá porque tanto o estupro quanto o aborto são grandes tabus no Brasil?
R. Escutei uma vez que “a palavra aborto é pecado, é crime e sangra”. Eu acrescento: e mata. Uma palavra com tanta carga negativa, que carrega tamanho estigma social, cria uma espécie de trava, um bloqueio nos responsáveis pelas políticas e pela saúde públicas, inclusive por nós médicos, que temos o dever ético e profissional de garantir o atendimento e o direito de nossas pacientes. Qual é o sentido de uma especialidade médica como a ginecologia e a obstetrícia que não defende o direito das mulheres? Há um bloqueio arraigado em sociedades religiosas como a brasileira que faz com que sequer se discutam temas de direitos da mulher, gênero e aborto. E aí, a própria formação médica, do ponto de vista humanístico, deixa a desejar, porque não se sabe que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são também direitos humanos, reconhecidos pela ONU. Muitos desconhecem a lei ou até a conhecem, mas não são treinados nos protocolos assistenciais. Então, há muita insegurança por parte dos gestores em assumir isso. A maioria dos serviços que funcionam hoje no Brasil o fazem porque os próprios profissionais da saúde estão ali quase que como heróis solitários, que sabem eticamente da sua responsabilidade e da importância desse tipo de atendimento para minimizar danos, para acolher e fazer beneficência, respeitar a autonomia da mulher, garantir direitos. Mas precisamos do apoio da sociedade e daqueles que têm o poder de fazer valer a lei.
P. Há barreiras também entre os próprios profissionais da saúde?
R. Como é um tema difícil, muitos profissionais, sem saber e sem se aprofundar na questão nem mesmo sobre o que pensam em relação àquilo, colocam-se como objetores de consciência. Nós da Rede Médica pelo Direito de Decidir defendemos o direito de objeção de consciência dos profissionais de saúde. Entretanto, isso é secundário ao dever primário de não maleficência, beneficência e garantia de direitos. Só pode fazer objeção de consciência aquele profissional que, antes da objeção, informou os direitos para a mulher, garantiu o acesso ao serviço e, se por ventura ou alguma questão técnica, ele não pode oferecer aquele atendimento imediato, ele mesmo tem que garantir a mobilização dessa paciente imediatamente ao lugar em que ela vai receber atendimento integral. Não é o que acontece. Os serviços dizem “isso aqui não acontece, nós somos objetores” e fecham as portas. Isso chama-se omissão de socorro e não objeção de consciência.
P. A situação dos centros de atendimento à vítimas de violência sexual e interrupção legal da gravidez mudou durante a pandemia de covid-19?
R. Só agora na pandemia, o Artigo 19 [ONG de Direitos Humanos], que faz o mapeamento dos serviços que fazem a interrupção legal da gravidez no Brasilindica que, dos 70 centros no país, 20 deixaram de oferecer esse atendimento. Isso justamente quando a violência contra a mulher aumentou. Muitos serviços registraram neste ano um aumento significativo das solicitações de aborto legal, o que leva à hipótese de que um maior número de mulheres sofreu estupros durante esses meses de pandemia.
P. Qual é o perfil das pessoas atendidas nos centros de referência para o aborto legal no país?
R. Existem muitos mitos em relação às vítimas. O primeiro deles é de que a mulher, pela roupa que usa ou pelo local que está, é responsável pela violência que sofre e de que o estupro acontece com a mulher que sai à noite, que vai na balada. Na verdade, mais da metade das vítimas são meninas abaixo de 14 anos. E nos centros de atendimento à interrupção legal da gravidez, as meninas menores de 18 anos são 60% do casos, o que só aumenta a urgência de que Lei seja cumprida. Não é possível que 80 anos depois do Código Penal de 1940 nós tenhamos pelo menos quatro Estados brasileiros sem um serviço de atenção à violência sexual e interrupção da gravidez. Não é possível que uma criança de 10 anos tenha que pegar um avião e viajar 1.400 quilômetrospara realizar esse procedimento. Não é possível que universidades públicas com faculdade de medicina, com serviços de residência médica, não ofereçam treinamento em violência sexual e interrupção da gravidez.
P. Falta, então, maior preparação nos cursos de saúde para lidar com essa realidade?
R. O aborto faz parte da vida reprodutiva das mulheres, então precisa fazer parte da vida assistencial dos ginecologistas obstetras. Os médicos devem ser treinados nesse tipo de atendimento. Não é algo muito diferente do que esses profissionais já fazem, mas é um treinamento em direitos, humanismo e empatia.
O ginecologista obstetra Cristião Rosas, coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice - GDC).
O ginecologista obstetra Cristião Rosas, coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice - GDC).LELA BELTRÃO
P. Sem ter tido essa formação, como o senhor chegou ao entendimento de que esse também é um serviço essencial em saúde?
R. (Pensa um minuto antes de responder). Em 1989, a então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, criou uma portaria no município para institucionalizar o atendimento ao aborto previsto em lei. E aí ficou evidente a ignorância de nós, ginecologistas e obstetras, a respeito da lei que nós mesmos deveríamos praticar. Fizemos treinamentos e alguns de nós aceitamos a tarefa de realizar esses atendimentos. Meu nome deriva de “cristão”, meu avô é presbítero, minha formação religiosa é protestante presbiteriana, então eu ainda me debatia com essa questão da vida, de quando ela começa a ser formada... Até que, um dia, atendi uma menina de 15 anos, que tinha um sangramento muito grave e icterícia. A irmã, de 17 anos, que a acompanhava, me disse que a menina estava grávida e havia injetado formol para abortar. Ela já estava quase cega, entrando em insuficiência renal, tivemos que fazer uma histerectomia, e ela não resistiu. Ao saber da notícia, o pai dessa adolescente desabou no chão, gritando e chorando desesperado. Eu chorei com ele. Uma semana depois, atendi uma menina de 12 anos que estava grávida após ter sido estuprada por dois homens enquanto cuidava sozinha dos irmãos pequenos em casa. Essa criança pegou no meu braço e disse: “Doutor, tira essa coisa de dentro de mim? Me salva”. Nesse momento, minha filha tinha mais ou menos a mesma idade que ela. E aí, a dificuldade que eu tinha em compreender o que é um estupro, a dor que uma gravidez fruto de violência causa em uma pessoa, o olhar daquela menina, que foi minha maior professora na vida, fez minhas dúvidas irem embora. O que eu faria se fosse minha filha? Ali, não tive mais dúvidas na minha carreira, na minha profissão, apesar de ter minha crença, minha fé. Eu rezo todo dia antes de dormir e ao acordar. Mas fé é individual, dentro de cada um. Não tem nada a ver com a tragédia humana que é uma gravidez fruto de estupro. Ninguém tem o direito de dizer a uma mulher que ela não deve abortar. E se ela quiser levar a gestação adiante, será acolhida da mesma forma, fará o pré-natal e terá todo o acompanhamento. O que não dá é uma histeria coletiva de uma sociedade hipócrita, onde as mulheres morrem sem ter sequer informação sobre seus direitos. Essa é a tragédia das mulheres brasileiras, a desinformação.
P. No caso da menina capixaba de 10 anos, os serviços de saúde do Espírito Santo alegaram que não puderam realizar o procedimento porque ela tinha 22 semanas de gravidez. Há um limite legal de idade gestacional para a interrupção da gravidez?
R. Pode acontecer que algumas equipes não estejam treinadas para realizar o procedimento além de 12 semanas de gestação, o que mostra a necessidade de os gestores estarem focados nisso e treinar as equipes para atender pacientes com esse perfil. Alguns serviços que oferecem esse tipo de atenção realizam o aborto legal até 12 semanas, outros fazem até 22 semanas, mas a lei brasileira não estabelece limites nesse sentido. É claro que se chegar uma mulher com 26, 27 semanas de gestação, uma conversa com ela pode levá-la ao pré-natal, realização do parto e doação do bebê. É o que geralmente acontece com os casos de gestação avançada, até porque ninguém faz aborto contente. É uma situação muito dura, refletiva, sofrida. A maternidade é algo muito arraigado no inconsciente coletivo das mulheres, tem um poder muito forte nessa reflexão que é muito dolorosa para ela. Mas a gestação também pode ser algo muito doloroso, e é isso que alguns médicos não entendem. Porque nós somos treinados para o binômio materno-fetal, e a maioria das pacientes que recebemos, em circunstâncias normais, quer dizer, de não violência, está no processo de maternagem, escolha do nome, a cor do quartinho do bebê… Quando uma mulher chega e te fala “doutor, eu quero fazer o aborto legal”, “doutor, eu estou com o demônio dentro de mim”, “doutor, tira essa coisa de mim” é chocante. Mas é isso, é um sofrimento psicológico atroz. Não há uma vinculação, um sentimento entre a mulher e a gestação. Quando há, é um sentimento de ódio e repulsa.
P. O risco de uma criança de 10 anos ser submetida a um procedimento legal de aborto é o mesmo risco de ela levar a gestação e passar por um parto?
R. Esse é outro mito sobre o aborto. Isso surgiu devido à alta mortalidade provocada pelo aborto ilegal. Por isso, a ONU considera que a descriminalização desse procedimento é uma das maneiras mais eficazes de os países cumprirem a meta do milênio relacionada à diminuição da mortalidade materna. Mas as evidências científicas mais recentes mostram que o aborto é o evento reprodutivo mais seguro que existe. O risco de óbito nesses procedimentos é de 0,5 para cada 100.000 casos. No parto com feto vivo, esse risco de morte é de 7 para cada 100.000 procedimentos. O aborto natural tem mais risco de morte do que aquele induzido, legal e seguro, realizado em uma maternidade. É evidente que essa criança tinha menos risco no procedimento de interrupção da gravidez do que deixar aquele corpinho frágil, com uma bacia de 10 anos, ainda não desenvolvida, eventualmente passar por um parto em alguns meses.
P. O que o senhor diria aos grupos fundamentalistas que se dizem pró-vida e que exerceram pressão sobre a menina e sua família, chegando até a protestar em frente à clínica que a atendia?
R. O Estado laico não comporta atitudes agressivas de intolerância na tentativa de impor uma visão religiosa qualquer que seja ela a toda sociedade. A lei apenas garante o direito ao aborto e não obriga aquelas que, por força de suas crenças, não queiram submeter-se ao procedimento. É preciso dar um basta nessa intromissão na individualidade das pessoas. Está se demonstrando à sociedade que a influência religiosa faz mal à saúde e põe a vida em risco.

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domingo, 30 de agosto de 2020

A destruição da sacrossanta, por Manuel Domingos Neto


Bolsonaro, com seus banqueiros, generais, pastores e milicianos, empenha-se numa cruzada maluca para destruir as frágeis estruturas da pátria brasileira.
Jornal GGN:

A destruição da sacrossanta

por Manuel Domingos Neto

Nação é comunidade complexa, formada por segmentos sociais numerosos, diferenciados e sempre em disputa uns com os outros.
As Ciências Sociais já demonstraram que tal entidade é mais que simples manifestação do instinto gregário observado em agrupamentos “tribais”. Demonstraram que não é fruto “natural” do desenvolvimento socioeconômico e a submissão dos vizinhos pela força, como acreditava Hitler. Também não é crença comum num passado mítico deliberadamente sugerido pelo romantismo. Ou ainda lastreada em “tradições” fabricadas e impostas de cima para baixo.
Nação não se fundamenta em etnias, língua ou crenças religiosas. Tampouco resulta da vontade ou da determinação do Estado, em que pese o esforço ingente do poder político para moldar a sociedade e apresentar-se como sua legítima expressão.
Um alemão, Otto Bauer, cunhou a expressão “comunhão de destino” para caracterizar a nação, comunidade que se reconhece e é reconhecida quando antevê futuro promissor para seus integrantes.
Processos formadores dessas comunidades compreendem a ampla disseminação e apropriação de valores morais, predileções estéticas e, sobretudo, laços solidários, vontades ou sonhos coletivos de vida melhor.
Benedict Anderson, antropólogo traduzido em mais de quarenta idiomas, demonstrou a importância da linguagem impressa na formação das nações. Jornais, livros e músicas fazem com que pessoas que não se conhecem nem pensam do mesmo jeito se emocionem com as mesmas coisas.
A redução de desigualdades sociais, das disparidades regionais e o combate as discriminações étnicas estão no cerne da construção da nação. Alguns distinguem “questão nacional” de “questão social”. Ora, mesmo distintas, são irmãs gêmeas! Uma não pode ser “solucionada” sem a outra.
O apelido afetivo da nação é “pátria”, termo latino que remete à “terra dos pais”. O patriotismo é o amor ao lugar dos ancestrais. Esse é o mais sublime e repulsivo sentimento de uma coletividade. Por amor à pátria, seus filhos enlouquecem, matando e morrendo em grande escala, como demonstrado nas guerras mundiais e coloniais. Associada às ideias de vida e morte, a pátria firma-se como entidade sacrossanta.
Bolsonaro, com seus banqueiros, generais, pastores e milicianos, empenha-se numa cruzada maluca para destruir as frágeis estruturas da pátria brasileira.
Não me refiro apenas à sua obediência vergonhosa à potência estrangeira dominante, mas àquelas instituições e práticas que exerceram papéis indispensáveis na construção da comunidade nacional imaginada.
A Funai, por exemplo, que cuida dos povos originários. A relevância desses povos para a ideia de comunhão nacional foi reconhecida desde o século XIX. Pedro II, buscando encarná-la, decorou seu manto europeu com penas de aves nativas. Escritores e artistas preocupados com a formação da alma nacional exaltaram motivos indígenas, inclusive inventando “bons selvagens”. A mortandade em curso entre os originários, anula a percepção de “humanidade” e enterra o impulso primário de “defesa da terra dos pais”.
O Censo Demográfico é outro instrumento indispensável à construção da comunidade imaginada. Sem ter ideia de quantos somos, onde estamos, como vivemos e o que é possível fazer por todos, é impossível pensar em comunidade. O Censo, em essência, é o que permite tudo isso. Contabilizar o mais perfeitamente possível os problemas sociais desagregadores da comunidade nacional é o primeiro passo enfrentá-los. Adiar mais uma vez o Censo do IBGE é jogada de efeito para fragilizar a pátria.
Permitir a queima da floresta, o desequilíbrio ecológico, a morte dos rios é demonstração de amor à pátria? Alegar que esse foi o caminho percorrido pelos países mais ricos apascenta as almas inquietas?
Um general, volta e meia, acusa um ex-chancelar de desservir a pátria denunciando no exterior o uso da Justiça para perseguições políticas. Ora, pátrias condicionam mutuamente umas às outras! Nações não existem solitariamente. Sem princípios norteadores da convivência mundial, sem contenções morais, a comunidade de nações seria um inferno dantesco! Que bobalhão perigoso, esse general! É daqueles que não sabem por quem os sinos dobram. Seu patriotismo é castrense: morre e mata pela corporação, não pelos que a mantém com o seu suor. Ama as benesses corporativas, não a multifacetária comunidade de viventes reconhecida como brasileira.
Observando conversas em supermercados e mídias sociais, pensei na possibilidade de Bolsonaro unir brasileiros em torno das mesmas preocupações…
E se o presidente agregasse esquerda, direita e centro, gente de todos os credos e origens étnicas, gente das mais variadas condições sociais, seus apoiadores e contestadores, todos em torno de uma novela policial, tipo… “por que Queiroz depositou dinheiro na conta de Michelle?”.
Não, Bolsonaro, não é como a banda de Chico Buarque, que faz toda a cidade cantar alegremente coisas de amor.

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Enfrentamento da pandemia em um governo neoliberal, por Fernanda Bárbara


Bolsonaro chegou ao poder prometendo gerar empregos, mas o que conseguiu foi que as pessoas agora participem da “uberização” que se transformou o mercado e tenham salários cada vez menores.
Sergio Lima - Poder360

Enfrentamento da pandemia em um governo neoliberal

por Fernanda Bárbara

Desde o golpe parlamentar contra a ex presidenta Dilma Rousseff, em el 2016, o Brasil vem aprofundando o abismo social entre seus cidadãos. Com Michel Temer no poder, aprovou-se duas medidas que hoje tem efeitos profundos para o enfrentamento da crise do Coronavírus. O teto dos gastos (Emenda Constitucional 95)[1], que congela los gastos públicos em setores como saúde, educação e segurança pública, e a reforma trabalhista, que precarizou aos trabajadores, deixando-os com menos direitos e sem as proteções do Estado de bem-estar social que vigoravam antes da série de reformas.
Depois do governo Temer, Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 com amplo apoio das elites empresariais do país. Seu ministro Paulo Guedes, reconhecido como um “Chicago Boy”, Realizou seus estudos na Escola de Chicago, berço de ideias neoliberais. Guedes é defensor de um Estado mínimo, como o implementado no Chile durante a “doutrina de choque” (Klein)[2], ativada durante a ditadura de Pinochet (a quem por “coincidência”, Bolsonaro demonstra admiração). O Chile, que foi nos anos do governo de Pinochet um laboratório para pôr em prática as políticas neoliberales idealizadas por Milton Friedman e apoiadas por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher na Inglaterra. Essas práticas em que as políticas públicas priorizam benefícios a empresas antes que ao povo, foram reconhecidas como políticas neoliberais. No Chile até hoje não existe um sistema de saúde amplo e público, tampouco há universidades públicas e é inclusive difícil mudar essa realidade por entraves da própria constituição. Guedes deu aula em universidades do Chile, e bebe dessa ideologia em que o Estado serviria apenas para reger contratos, e a própria “mão invisível” do mercado se autorregularia.
Para aprofundar o conceito que vem sendo bastante debatido no Brasil, o neoliberalismo a nível econômico se entende como governos que adotam medidas para aumentar a competição do mercado e reduzir o papel do Estado. Na teoria, a competitividade se atinge com desregulamentação e abertura dos mercados e, para reduzir o papel do Estado, esses governos costumam realizar privatizações das empresas públicas e limitar os gastos sociais. Mas o neoliberalismo também está na ideologia e no governo Bolsonaro, o ideológico está profundamente marcado.
Segundo a cientista política Wendy Brown, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, o conceito vale hoje como a imposição da lógica de mercado sobre todas as esferas da vida e a “razão neoliberal” estaria transformando o significado político das ações cotidianas em um significado econômico, impondo uma lógica de “empreendedorização” de todos os aspectos da vida[3]. Um exemplo é que ao possibilitar a que personas sejam pejotizados ou uberizados e não mais empregados, estamos com isso convertendo pessoas em empresas sem que o Estado ou as corporações garantam condições mínimas como licença maternidade remunerada, férias remuneradas.
Bolsonaro chegou ao poder prometendo gerar empregos, mas o que conseguiu foi que as pessoas agora participem da “uberização” que se transformou o mercado e tenham salários cada vez menores. Trabalhadores de aplicativos de entregas como Rappi, Ifood ou nos ubers e derivados não têm qualquer garantia inclusive em casos de acidentes.
Nesse cenário em que os trabalhadores já se encontravam fragilizados, o coronavírus chegou ao Brasil. O país demorou quase 2 meses para implementar medidas de atuação em relação a pandemia[4] e nesse momento já haviam 69 casos confirmados. As ações do governo foram mais focadas no sistema financeiro, com empréstimos a bancos através da MP 944. A ideia era ajudar pequenas e médias empresas a financiarem a folha de pagamento dos funcionários. Mas o resultado foi que os bancos estão dificultando os empréstimos justamente a esse setor[5]. Já em relação aos cidadãos, o governo a princípio anunciou que concederia 200 reais para auxiliar aos profissionais autônomos e desempregados durante o período de quarentena. Depois de críticas da oposição, se conseguiu o valor de 600 reais, mas com algumas restrições, como a de que os ganhos no ano anterior sejam inferiores a 28 mil reais. A medida deixou fora uma série de trabalhadores como os motoristas de Uber, por exemplo.
O governo também aprovou reduções de salários[6] sem garantir que não haja demissões em contrapartida.
Em relação a saúde, apesar de o Brasil ter um dos maiores e mais universais sistemas públicos, o Sistema Único de Saúde (SUS), este vem sendo desidratado e perdendo investimentos depois da aprovação do Teto dos gastos públicos. Agora, em meio a pandemia, profissionais de saúde, tem que muitas vezes trabalhar sem EPis básicos e há estados do norte e nordeste do país com superlotações nas UTIs.
Além dos problemas estruturais e da pandemia, o Brasil é governado por presidente que nega a gravidade do coronavírus, chegando a tratá-la como uma “gripezinha”,  se posiciona contra o isolamento social horizontal, participa de manifestações que pedem o fim dos demais poderes da República e teve dois ministros da saúde afastados porque se recusaram a defender o uso de hidroxicloroquina para os casos de contaminação, uma vez que não há evidências científicas que comprovem sua eficácia. 
O comportamento do presidente confunde a sociedade e muitos não  estao fazendo a quarentena. Hoje o Brasil tem mais de 100 mil mortos por coronavírus e se converteu no segundo país do mundo com mais casos. A lógica neoliberal como vimos, prioriza proteger as empresas antes que as pessoas. Quando o presidente manda sinais de desprezo pela gravidade do problema, faz com que a população também duvide e com isso dificulta a atuação dos governadores e prefeitos que incentivam o isolamento social. Diversos empresários de famosas redes no Brasil vieram a público com discursos de que não se poderia parar o mercado, pois era necessário proteger a economia, e que caso contrário as pessoas morreriam de fome, o que ajuda a propagar o caos. Mais que nunca é visível a necessidade de um Estado que garanta e priorize a saúde e assista a seu povo antes que aos interesses corporativistas. Atualmente temos hospitais das redes privadas com UTIs disponíveis enquanto o sistema público, utilizado por 75% da população, está a ponto de colapsar. Uma política que priorizasse a vida, seguramente poderia direcionar as pessoas para as unidades de tratamento vazias das redes privadas. Em São Paulo os bairros mais pobres têm taxa de mortalidade por el COVID-19 superior, o que se explica justamente pela ausência do Estado nessas regiões afastadas dos grandes centros. Isso sem falar nos povos indígenas, que além de enfrentar a pandemia e terem alta taxa de mortalidade, também tem que enfrentar o desmantelamento da FUNAI e a passagem da boiada de Salles e companhia.
Em meio ao enfrentamento da pandemia, Paulo Guedes disse em uma entrevista[7] que sair da crise dependerá do prosseguimento das reformas (neoliberales). Ou seja, ainda em um momento em que se faz necessário mais atuação do Estado, o governo neoliberal busca continuidade de políticas públicas já abandonadas por seus antes defensores nos anos 70. A saída, como demonstram os resultados da pandemia, é ao contrário, como disse o filósofo Slavoj Zizek: “O que se necessita é uma solidariedade total e incondicional e uma resposta coordenada a nível mundial, uma nova forma do que uma vez se chamou comunismo”.
Note, que Zizek fala em uma nova forma de solidariedade irrestrita, em que a vida importe mais que o lucro dos mesmos bilionários que compram o poder para garantir os próprios lucros a despeito de tantos que morrem.
Fernanda Bárbara é jornalista e cursou especialização em Estudos Políticos e é mestranda em Governo pela Universidad de Buenos Aires (UBA)
[2] Melanie Klein (2008):“A Doutrina do Choque: A Ascensão Do Capitalismo Do Desastre”.

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Portaria dos militares no Ministério da Saúde que dificulta aborto legal é inconstitucional, dizem advogados


"Ministro da Saúde não pode regulamentar procedimentos policiais, e isso virou procedimento policial", diz a advogada feminista Luciana Boiteux sobre portaria que obriga médico a reportar estupro à polícia
Jornal GGN A portaria 2282/2020, em que o governo Bolsonaro obriga os profissionais da saúde a violarem o sigilo médico reportando à polícia casos de estupro que requerem aborto legal, é inconstitucional e deve ser judicializada e anulada. É o que afirmam o criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e a advogada feminista Luciana Boiteux, durante a live do grupo Prerrogativas deste sábado (29). O debate contou com a participação do médico Olímpio Barbosa e da ex-senadora Marta Suplicy.
Contrariando a legislação sobre aborto legal, a portaria publicada na sexta (28) no Diário Oficial da União obriga o médico a fazer uma série que questionamentos sobre o estupro à vítima durante o atendimento e a chamar a polícia. Segundo Luciana, o “ministro da Saúde não pode regulamentar procedimentos policiais, e isso virou um procedimento policial.”
“Essa portaria tem que ser anulada porque é uma ameaça aos serviços de saúde”, disse Luciana. “Tem uma questão de direito processual, administrativo e penal. Na verdade, é o contrário. Acho que os profissionais que não estão seguindo normas humanizadoras e técnicas, da ciência, é que na verdade podem estar incindindo em crime.”
Segundo o médico Olímpio Barbosa, diretor do Hospital em Recife que fez o abortamento da menina de 10 anos estuprada pelo tio no Espírito Santo, não existe no mundo “uma portaria como essa”.
Ele narrou que é inviável fazer o atendimento médico submetendo a vítima a uma nova violência, agora psicológica. Entre as perguntas, a portaria quer saber qual foi o horário do estupro, a roupa usada pelo estuprador, a altura do indivíduo, se a vítima tinha ingerido bebida alcoólica, entre outros detalhes “sórdidos”.
Na visão dos debatedores, a portaria vai aumentar o volume de abortos clandestinos no Brasil.
“Médicos podem tranquilamente descumprir essa portaria”, disse Kakay. “Esse ministro da Saúde não tem autoridade legal para fazer isso. Os advogados criminais têm de estar à disposição dos médicos. A portaria é absolutamente inconstitucional e revoga uma série de leis que já existem.”
Para Marta Suplicy, a portaria “é fruto de um mar de desconstrução de políticas públicas” que vivemos sob Bolsonaro. O “panorama geral é de retrocesso de conquistas em todas as áreas”.

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