sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Pepe Escobar: Dançando ao som do Disco Inferno de Trump

 

A encenação supera a substância, pois cada sorriso e carranca são transformados em armas pela mídia para os espectadores da arena


Do Jornal GGN:

                                                               Gage Skidmore – Wikimedia Commons

Pepe Escobar: Dançando ao som do Disco Inferno de Trump

No final da década de 1970, Donald Trump, com pouco mais de trinta anos, arrogante como sempre e recém-casado com Ivana em 1977, podia ser visto entrando e saindo da agitada vida noturna de Nova York, especialmente na discoteca glamorosa e cheia de festas Studio 54.

Um matador de pista de dança certificado no Studio 54 foi Disco Inferno , do The Trammps , mixado pelo mago da dança Tom Moulton, lançado em 1976, dois anos antes do eterno favorito de Trump, YMCA — agora ressuscitado para o furor global como trilha sonora dos passos de dança de Trump 2.0.

Para todos os efeitos práticos, Trump é agora o DJ que está transformando o planeta inteiro em um Disco Inferno (“as pessoas estão gritando, fora de controle”), já que tudo é “tão divertido quando o boogie começou a explodir”. E o “boogie” de Trump explodindo em série não é menos do que o som amplificado sem parar de teatro, grandiloquência e caos descontrolado.

O espetáculo do som e da fúria de Trump — uma torrente de ordens executivas, sessões de fotos, truques de ilusionismo cuidadosamente roteirizados, manchetes de tirar o fôlego — significando… algo que vela a mesma velha mentalidade imperial, agora explodindo abertamente como um circo de três pistas armado. A encenação invariavelmente supera a substância, pois cada sorriso e carranca são transformados em armas pela mídia para os espectadores da arena fascinados e sanguinários.

O Sr. Disco Inferno venceu uma mini-guerra comercial com a Colômbia em apenas 10 horas, após postar uma imagem se retratando como um chefe da máfia no estilo Al Capone, usando terno risca de giz e chapéu fedora, ao lado de uma placa que diz “FAFO”, que significa “F**k Around and Discover”.

Ele vencerá a guerra por procuração na Ucrânia. Em 24 horas. Desculpe, em 100 dias. Desculpe, talvez mais. E “se eles não resolverem essa guerra logo, quase imediatamente, vou impor tarifas massivas à Rússia e impostos massivos e também grandes sanções”. Por quê? Porque, “você sabe, eu amo o povo russo”.

Ele se gaba de que os Estados Unidos “têm a maior quantidade de petróleo e gás” (não têm) e vão usá-los; ele “pedirá à Arábia Saudita e à OPEP para baixar os preços do petróleo” (eles dirão não); porque se “o preço do petróleo caísse, a guerra na Ucrânia terminaria imediatamente” (este definitivamente não é um caso de “causa e efeito”).

Ele fará “os maiores cortes de impostos da história dos EUA”. Os EUA podem garantir o fornecimento de GNL para a Europa (claro, com uma margem de lucro enorme); os EUA “não precisam do Canadá para fabricar carros, nem petróleo e gás canadenses”; as “enormes reservas de petróleo e gás” dos Estados Unidos permitirão que eles “se tornem uma superpotência industrial e a capital mundial da IA ​​e das criptomoedas”.

Enterrado no som e na fúria está o fato de que os EUA podem contar com um fluxo constante de gás para necessidades domésticas, mas isso se torna problemático quando se trata de exportações. Daí a obsessão pela expropriação – como no Império da Pilhagem: os EUA precisam muito de reservas iraquianas, sírias, venezuelanas, mexicanas, iranianas e russas. Porque mesmo se exportadas cuidadosamente, não há instalações de liquefação suficientes nos EUA para abastecer a UE. E é por isso que a Europa continua amplamente dependente do GNL russo e de outras fontes desde a sabotagem dos Nordstreams.

A satisfação… veio em uma reação em cadeia


Sim: há sangue chegando na pista de dança. Para entrar no ritmo real do Disco Inferno, podemos também nos concentrar nos três principais desafios para Trump 2.0: a guerra tecnológica contra a China; a guerra geoeconômica contra a Maioria Global; e a guerra por procuração na Ucrânia.

A irrupção da startup de tecnologia chinesa DeepSeek, sediada em Hangzhou, no cenário global foi algo para ficar para sempre, dizimando instantaneamente a estratégia americana de “quintal pequeno, cerca alta” para destruir os avanços tecnológicos da China.

O DeepSeek deve de fato ser visto como o “maior azarão” no domínio do Large Language Model (LLM) de código aberto, agora identificado de Jacarta a Wall Street e ao Vale do Silício como potencialmente a arma secreta de Pequim na guerra da IA ​​com os EUA. Até o Sr. Disco Inferno foi forçado a admitir a descoberta do DeepSeek como um “chamado para despertar”.

No cerne da questão, encontramos dois modelos conflitantes: hipercapitalismo neoliberal versus socialismo meritocrático.

O chefe da DeepSeek, Liang Wenfeng, é um geek fascinante. Seu nome (Wenfeng) significa “Vanguarda da Cultura”; um dos significados do seu sobrenome (Liang) é “ponte”. Então ele pode ser visto – como é na China – como o Sr. Ponte para a Vanguarda da Cultura (aqui está o Sr. Ponte em uma excelente entrevista , em chinês; por favor, use a tradução automática).

O Sr. Bridge fez um Sun Tzu espetacular sobre as sanções dos EUA sobre a exportação de unidades avançadas de processamento gráfico (GPUs), especialmente os chips avançados da Nvidia. Além disso, as empresas chinesas de Big Tech não podem competir com o poder de fogo financeiro das Big Tech dos EUA.

Então a resposta foi desenvolver modelos LLM poderosos e econômicos, sem acesso a literalmente centenas de milhares de chips Nvidia H100s. A DeepSeek declarou que eles usaram apenas 2.048 Nvidia H800s e apenas US$ 5,6 milhões para treinar um modelo com 671 bilhões (itálico meu) de parâmetros: isso é uma fração muito pequena do que a OpenAI e o Google gastaram para treinar modelos do mesmo tamanho.

E tudo foi desenvolvido localmente, por meio de dezenas de doutores das principais universidades chinesas — Pequim, Tsinghua, Beihang — e não por especialistas da Ivy League americana.

Então, em poucas palavras, a DeepSeek é uma empresa LLM 100% chinesa que foi capaz de criar modelos de código aberto e um aplicativo gratuito para download para todos os consumidores usarem. Isso por si só destrói o atual modelo de negócios de IA hipercapitalista neoliberal imposto pelos Estados Unidos.

As regras do jogo estão de fato sendo reescritas. Então qual é a resposta americana – previsível? Pedir mais sanções . Paralelamente, a DeepSeek foi forçada a suspender novos registros porque seu site sofreu um ataque cibernético massivo. Fale sobre o preço a pagar por eviscerar um enorme US$ 1 trilhão dos tecno-feudalistas reunidos na Bolsa de Valores de Nova York.

O Sr. Disco Inferno, é claro, apoia a mercantilização de todos os dados em comparação a dados gratuitos para todos. Logo antes do choque do DeepSeek, ele havia — teoricamente — garantido até US$ 1 trilhão dos sauditas, incluindo, em grande parte, investimentos para desenvolver IA e data centers nos EUA.

O novo jogo, claro, está apenas começando. A Stargate, joint venture da OpenAI com a SoftBank do Japão, também fortemente promovida por Trump, planeja gastar pelo menos US$ 100 bilhões em infraestrutura de IA nos EUA. Em paralelo, a xAI de Elon Musk está expandindo massivamente o supercomputador Colossus para conter mais de 1 milhão de GPUs para ajudar a treinar seus modelos de IA Grok.

Eu não conseguia o suficiente, então tive que me autodestruir

Agora, para a guerra contra a Maioria Global. O inestimável Prof. Michael Hudson é inflexível: em um ensaio absolutamente obrigatório, ele explica concisamente que “quando Trump prometeu a seus eleitores que os Estados Unidos devem ser os ‘vencedores’ em qualquer acordo comercial ou financeiro internacional, ele está declarando guerra econômica ao resto do mundo.

”A principal lição de Hudson: se as nações do Sul Global quiserem salvar suas economias “de serem mergulhadas na austeridade, inflação de preços, desemprego e caos social”, elas terão que “suspender os pagamentos de dívidas estrangeiras denominadas em dólares”.

É um trabalho em andamento: “Circunstâncias… estão forçando o mundo a romper com a ordem financeira centrada nos EUA. A taxa de câmbio do dólar americano vai disparar no curto prazo como resultado do bloqueio de importações por Trump com tarifas e sanções comerciais. Essa mudança na taxa de câmbio vai pressionar os países estrangeiros que devem dívidas em dólares da mesma forma que o México e o Canadá serão pressionados. Para se protegerem, eles devem suspender o serviço da dívida em dólares.

”Pode haver sérios problemas à frente para o Sr. Disco Inferno: “O teatro político America First de Trump que o elegeu pode destituir sua gangue, pois as contradições e consequências de sua filosofia operacional são reconhecidas e substituídas. Sua política tarifária acelerará a inflação de preços nos EUA e, ainda mais fatalmente, causará caos nos mercados financeiros dos EUA e estrangeiros. As cadeias de suprimentos serão interrompidas, interrompendo as exportações dos EUA de tudo, de aeronaves a tecnologia da informação. E outros países se verão obrigados a fazer com que suas economias não dependam mais das exportações dos EUA ou do crédito em dólar.

”O Prof. Hudson observa como Trump “pensa que a economia dos EUA é como um buraco negro cósmico, ou seja, um centro de gravidade capaz de puxar todo o dinheiro e o superávit econômico do mundo para si. Esse é o objetivo explícito do America First. É isso que torna o programa de Trump uma declaração de guerra econômica ao resto do mundo. Não há mais uma promessa de que a ordem econômica patrocinada pela diplomacia dos EUA tornará outros países prósperos. Os ganhos do comércio e do investimento estrangeiro devem ser enviados e concentrados na América.

”A UE, no Norte Global, é ainda mais vulnerável ao “America First”. Davos veio e foi com um mero piscar de olhos na tela, além do estranho banqueiro dos EUA se gabando do “pico de pessimismo” na Europa – ligado ao tsunami tarifário de Trump – e a chefe do Banco Central Europeu Christine “Olhe para o meu novo cachecol Hermès” Lagarde se perguntando se “não era pessimista” dizer que a Europa está enfrentando uma “crise existencial”.

A balança comercial EUA-UE está em um robusto 1,5 trilhão de euros por ano, incluindo fluxos massivos de investimentos atlantistas. Mas o que realmente importa é a bagunça financeira em nações individuais da UE, especialmente as duas primeiras, Alemanha e França, com sua Via Dolorosa sendo estendida ad infinitum quando se trata de seu custo de empréstimo impulsionado por cortes de impostos nos EUA.

Ouvi alguém dizer (Queimando, Queimando) queime essa mãe

E agora para a frente das Guerras Eternas.

O Sr. Disco Inferno, se passando por um humanitário para os cliques de câmera sem parar, pediu aos vassalos Jordânia e Egito para se tornarem de fato cúmplices na limpeza étnica, absorvendo até 1,5 milhão de pessoas de Gaza. O Artigo 49 da Quarta Convenção de Genebra explicitamente “proíbe a transferência forçada de pessoas protegidas para fora ou para dentro de território ocupado”.

Transformar um genocídio em uma oportunidade imobiliária em um “local fenomenal” ocorrerá paralelamente ao cortejo energético dos sauditas, depois que MbS em Riad prometeu na semana passada investir pelo menos US$ 600 bilhões – e até um possível US$ 1 trilhão – nos EUA.

A posição oficial saudita é sobre a necessidade de “investimentos estratégicos” para “estabilizar fluxos de receita de longo prazo” – sem mencionar a consolidação de gastos luxuosos em todos aqueles sistemas de armas feitos pelos EUA. Chame isso de um caso geopolítico clássico de Poder do Capital se fundindo com A Estratégia do Caos.

Dizer a Riyadh como dançar é uma coisa. Atrair o urso russo para a pista de dança é uma proposta completamente diferente.Como o famoso historiador francês Emmanuel Todd demonstrou brilhantemente , “o trabalho de Trump será administrar a derrota dos EUA contra a Rússia”. Essa é a decisão mais difícil de todas. O anátema supremo de Trump é ser visto como um perdedor.

Então, há apenas duas opções viáveis. 1. “Acabar com a guerra” sem realmente acabar com ela, apenas adiando-a para o fim da década, roubando uma vitória russa de fato por meio de uma grande manipulação e uma gigantesca campanha de relações públicas. 2. Continuar armando Kiev – especialmente por meio de vassalos da OTAN, enquanto se apresenta como um pacificador que não pode entregar por causa da Rússia. Essa será uma variante tóxica da atual “guerra até o último ucraniano”.

Esse tipo de truque não vai funcionar em Moscou. Putin e o Conselho de Segurança deixaram bem claras as condições para um fim real da guerra – não uma pausa para o rearmamento da OTAN.

Parâmetros principais: Ucrânia como um estado neutro e não membro da OTAN; membro da UE até 2030; Ucrânia não reduz o tamanho do exército; não reconhece oficialmente a soberania russa sobre os territórios conquistados; “algumas” sanções contra a Rússia são suspensas imediatamente após a conclusão do acordo de paz, algumas – ao longo de três anos – dependendo da conformidade da Rússia; todas as restrições à importação de energia russa para a UE devem ser suspensas; e por último, mas não menos importante, a questão espinhosa de um “contingente europeu de manutenção da paz”.

A CIA está alimentando Trump com todo tipo de desinformação sobre tudo, desde o estado real das coisas no campo de batalha até o estado da economia russa. Do jeito que está, os russos assistem a toda essa grandiloquência com apenas um sorriso irônico. Peskov: “Moscou ainda não recebeu notícias de Washington sobre um possível contato com Trump e Putin… A prontidão para a reunião permanece.”Até agora, nada. Jogo totalmente vazio. Talvez Trump, em segredo, esteja praticando seu golpe de mestre: “O calor estava ligado, subindo para o topo / Todo mundo indo forte, e foi aí que minha faísca esquentou”.

Hora de ir para a pista de dança.

(Simplesmente não consigo parar) quando minha faísca esquenta
(Simplesmente não consigo parar) quando minha faísca esquenta
(Simplesmente não consigo parar) quando minha faísca esquenta
(Simplesmente não consigo parar) quando minha faísca esquenta

Bem, pode acontecer que a faísca realmente quente seja detonada não pelo Sr. Disco Inferno, mas pelo parceiro de dança Vladimir Putin.

O plano autêntico ou não de 100 dias para um possível acordo que tem circulado nas câmaras de eco de Washington, Londres e Kiev aborda algumas probabilidades: um telefonema entre Putin e Trump nas próximas duas semanas ou mais; uma possível reunião, bilateral (Trump-Putin) ou trilateral (com o ator ucraniano; bastante improvável) até meados de março; início das negociações sobre os principais parâmetros; um possível cessar-fogo até a Páscoa; uma Conferência Internacional de Paz até o final de abril, mediada pelos EUA, China, alguns membros da UE e alguns do Sul Global; eleições presidenciais na Ucrânia no final de agosto.

Pepe Escobar – Analista geopolítico independente, escritor e jornalista

Reinaldo Azevedo – Trump, o da Riviera na Gaza irrigada de sangue, tem múltiplos negócios no Oriente Médio

 

Da Rádio BandNews FM:




Reinaldo Azevedo: Querem mudar Lei da Ficha Limpa só para beneficiar Bolsonaro? É inconstitucional

 

Da Rádio BandNews FM:




Bob Fernandes, em vídeo: Trump prega limpeza étnica, “Assumir Gaza”. Zambelli cassada. Para Tarcísio, Marçal & cia, covardia

 

Do Canal do analista político Bob Fernandes:




terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Religiosos extremistas: o estranho ecumenismo centrado na ambição do poder político. Artigo de Valdemar Figueredo (Dema)

 

Os pretensos "cristãos" ultraconservadores, "islamitas" radicais e "judeus" fundamentalistas ultraortodoxos de extrema-direita são contrários à modernidade, à democracia, à pluralidade, aos direitos humanos e ao Estado laico

Do ICL:


Religiosos extremistas: estranho ecumenismo político

Artigo de 
Valdemar Figueredo (Dema)

As profecias sobre o fim ou arrefecimento do religioso na modernidade ocidental, visivelmente, malograram. Além do fenômeno religioso estar bem situado nas sociedades modernas, ganha feições radicais, como integristas católicos, fundamentalistas protestantes, islamistas e ultraortodoxos judeus.

Para essas vertentes religiosas radicalizadas, dissidentes, a sociedade moderna seria uma sociedade “sem Deus” que se converte (segundo eles) numa sociedade “contra Deus”.

Jean-Louis Schlegel[1] ao distinguir os quatro grupos que se colocam nos extremos, permite-nos perceber o quanto se tocam na vida pública. São diferentes no que diz respeito às doutrinas e crenças religiosas, mas bem parecidos nas reivindicações políticas no Estado.

Islamistas

O Estado islâmico que idealizam se guiaria pela lei islâmica. O que serve para o sujeito religioso serviria para a vida civil, social, cultural e econômica. A vida social, para os islamistas, seria expressão da sua fé. O Alcorão ditaria a regra de fé e conduta. Legislação e legisladores obedeceriam a lei maior, vocalizada pelos religiosos devidamente legitimados por Deus.

Integristas católicos

Saudosos de uma ordem social católica. Algo que aconteceu em alguns contextos nacionais ao longo da Idade Média. O poder legitimado por Deus sob a tutela do poder eclesiástico verticalizado e “divinamente” hierárquico. Esse espírito, nomeado como integrismo católico, esteve presente na Igreja durante o século XIX enquanto reação contrarrevolucionária na França. Fundamentalmente, contra a modernidade. Contra a separação Igreja e Estado. Para os integristas, a democracia não é algo a ser vivido no âmbito interno da Igreja, muito menos na esfera externa, no Estado. Neste sentido, coincide com os islamistas.

Fundamentalistas protestantes

Embora não condenem em si as instituições democráticas ou recusem o expediente da alternância de poder, reivindicam a condição de Moral Majority. Isto é, são adeptos de certa ditadura da maioria. Usam a “democracia procedimental” para impor os seus valores ao restante da sociedade. Como se os “infiéis” ao serem regidos pelos “fiéis” fossem, ainda que a contragosto, também beneficiados. Expoentes nos Estados Unidos desde o final da década de 1970, proponentes de uma agenda política contra o aborto, contra a emancipação das mulheres, contra os direitos dos homossexuais, pelas preces nas escolas, pela leitura bíblica nas instituições públicas, pela posse e porte de armas pelos cidadãos. Creem no patriotismo enquanto expressão de povo eleito por Deus para abençoar outras nações. Todos esses elementos reunidos serviriam como antídoto contra o comunismo e a ascensão da esquerda, supostamente ateia.

Judeus ultraortodoxos

Muito do que fora dito sobre islamistas, integristas e fundamentalistas aplica-se também aos ultraortodoxos, guardadas as devidas proporções. Parcela dos ultraortodoxos são afeitos aos guetos como preservação das tradições e proteção das ameaças da modernidade. Mas, entre eles, há quem seja favorável à conquista do poder do Estado de Israel para estabelecer uma teocracia. Para as favas com a democracia ocidental, o governo dos sacerdotes estabeleceria a lei sem apartar o Estado da religião. O pluralismo celebrado pelo Estado democrático de direito, neste caso, não se aplicaria.

xxx 

Apoiados na lógica causa e efeito, os extremistas religiosos alegam que os fracassos da modernidade têm relação direta com a ausência de Deus. Como se alijar Deus das decisões centrais na política e o alienar da vida social resultasse em mazelas naturais, miséria social e econômica, vícios e desvio moral. Todas as insatisfações com a modernidade são postas na conta da arrogância humana que se colocou no lugar de Deus, dizem.

No Brasil, 86,8% da população se declarou cristã. Em plena modernidade tardia ou pós-modernidade, muito longe das previsões de ocaso do religioso, no Brasil, conta-se mais templos religiosos do que hospitais e escolas juntos (IBGE, 2022).

Assistimos a ascensão na República Federativa do Brasil de religiosos extremistas. Pouco afeitos a pluralidade, variações de integristas católicos e fundamentalistas protestantes atuam despudoramente num estranho “ecumenismo” político.

[1] SCHLEGEL, Jean-Louis. A lei de Deus contra a liberdade dos homens. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Valdemar Figueredo (Dema)

Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

O mundo e o Brasil na era da Inteligência Artificial, por Luís Nassif

 

É provável que nem todos os investimentos sejam realizados ou metas cumpridas. Mas a relevância do PBIA está no mapeamento de todo o setor

                                                                        Júlio César Silva – MDIC


No início do século 21 o Brasil tornou-se uma potência em software livre – desenvolvido por comunidades de desenvolvedores em código aberto. Houve grande impulso no início do governo Lula, em torno do sistema operacional Linux e de vários aplicativos, inclusive substituindo o campeão Office, da Microsoft. Tudo isso ancorado na adoção de sistemas abertos pelo setor público.

Ainda hoje, corporações como o Ministério Público Federal utilizam programas de código aberto em seus notebooks funcionais. O Banco do Brasil utilizava em suas agências, mas passou a substituir por sistemas fechados.

O lobby das empresas de tecnologia sempre foi muito forte e acabou reduzindo o espaço para o software livre. 

Agora, com o DeepSeek, o movimento ganha um novo fôlego. A empresa chinesa desenvolveu uma tecnologia barata e abriu o código para quem quiser. A Inteligência Artificial (IA) sai do controle das grandes corporações e se democratiza, justo no momento em que o Brasil preparou seu plano de IA, apresentado na 5a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.

O plano se baseia em duas âncoras.

A primeira, a regulamentação do FNDCT (Fundo Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação), proibindo o contingenciamento de seus recursos, conforme lei aprovada pelo Congresso Nacional. A segunda, a viabilização da captação de crédito para a Finep (Financiadora de Estudos e Pesquisas) e para o BNDES, por meio do Mais Inovação, a taxas de juros favorecidas.

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial 2024-2028 trabalha com cinco eixos principais:

Infraestrutura e Desenvolvimento de IA – Investimentos em supercomputadores, redes de alta velocidade, energias renováveis e software nacional para IA.

Difusão, Formação e Capacitação em IA – Educação e treinamento de profissionais para suprir a demanda do mercado de IA.

IA para Melhoria dos Serviços Públicos – Aplicação de IA para melhorar serviços de saúde, educação e segurança pública.

IA para Inovação Empresarial – Incentivo ao desenvolvimento de IA para aumentar a competitividade da indústria e do comércio.

Apoio ao Processo Regulatório e de Governança da IA – Criação de diretrizes para garantir o uso ético e seguro da IA no Brasil.

Eixos 1 – A infraestrutura

O PBIA prevê a aquisição de supercomputadores de alto desempenho e a ampliação da capacidade de processamento através da descentralização dos recursos tecnológicos pelo país. Ponto importante será a sustentabilidade energética, já que o processamento consome grande quantidade de energia.

Outro ponto relevante é a criação de um ecossistema de dados e software, facilitando a montagem de consórcios de pesquisa entre os diversos institutos.

Os recursos ainda são pequenos para o desafio: R$ 3,0 bilhões para a infraestrutura e R$ 500 milhões para sustentabilidade e energias renováveis para IA.

Os sistemas de software livre terão uma injeção de recursos de R$ 1,4 bilhão, com a criação de curadoria e disponibilização de conjuntos de dados nacionais para treinamento da IA em português.

Prevê também a criação de um modelo de IA fundacional em português.

Finalmente, o Programa de Pesquisa e Desenvolvimento prevê R$ 873 milhões para a criação de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia voltados para IA, e cooperação internacional com América Latina, Caribe e África.

Eixo 2 – a capacitação

Serão R$100 milhões para campanha nacional de conscientização sobre IA para a sociedade. Inclui a criação da Olimpíadas Brasileira de IA.

Haverá R$ 548,5 milhões para a criação de cursos de graduação e disciplinas em IA em universidades e faculdades, a expansão do ensino técnico-profissionalizante, bolsas de estudo para graduação, mestrado e doutorado em IA, incluindo bolsas no exterior. E Laboratórios Interdisciplinares de Formação de Educadores (LIFE).

A meta é criar 5 mil vagas em cursos de graduação de IA em 3 anos, oferecer 100% das vagas em IA e ciência de dados no FIES, criar e ampliar 47 laboratórios LIFE e 1.200 bolsas para pesquisadores focados no desenvolvimento de soluções de IA.

Serão investidos também R$ 500 milhões em uma plataforma nacional de cursos online gratuitos de IA e parcerias com empresas e Sistema S para formação técnica em IA. 

A meta é capacitar 20 mil profissionais no primeiro ano, 30 mil no segundo e 50 mil no terceiro. E fornecer 250 mil vagas para formação técnica em IA até 2028.

Eixo 3 – serviços públicos

A previsão é de investimentos de R$1,76 bilhão para a modernização e digitalização dos serviços públicos através de IA.

R$ 59 milhões serão aplicados em um núcleo de IA do governo federal, que criará uma plataforma de IA para desenvolvimento e implementação de modelos nos serviços públicos, além de testar soluções, antes da implementação em larga escala.

As metas são de capacitação de 115 mil servidores, estruturação de 25 projetos estratégicos de IA (devidamente identificados) e 25 projetos-pilotos de experimentação com IA até 2026,

Ponto relevante é o investimento de R$ 1,4 bilhão na criação de uma Nuvem Soberana – para armazenar dados governamentais -, o estabelecimento de uma política de governança de dados públicos, e de sistemas de privacidade e segurança da informação.

A meta é catalogar 2 mil conjuntos de dados do governos federal até 2027 e economizar R$ 6 bilhões com a eliminação de exigências burocráticas.

Mais R$ 259 bilhões serão aplicados no Programa de Soluções de IA para Serviços Públicos, implementando soluções de IA em pelo menos 10 órgãos por ano.

Eixo 4 – inovação empresarial

São previstos R$ 13,79 bilhões em investimentos, R$ 4,49 bilhões dos quais para a criação de datacenters nacionais, apoio à cadeia produtiva, incentivo a startups, fomento à adoção de IA por micro e pequenas empresas e inserção de mestres e doutores em IA em empresas privadas.

R$ 2,3 bilhões irão para datacenters sustentáveis no Norte e Nordeste. Haverá a expansão da Rede Embrapii (uma parceria Ministério de Ciência e Tecnologia e Confederação Nacional da Indústria) para 35 unidades até 2026. R$ 400 milhões irão para apoio a startups de IA. E R$ 9,39 bilhões para desenvolvimento de soluções aplicadas à indústria, em alinhamento com a NIB (Nova Indústria Brasil).

O mapa da mina

É provável que nem todos os investimentos sejam realizados, nem todas as metas cumpridas. Mas a relevância do PBIA está no mapeamento de todo o setor, na definição clara das linhas de ação, na visão sistêmica para a implantação da política.

Leia também:

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Alguns tópicos sobre as implicações das novas descobertas no mundo da física quântica para o conhecimento de poucos humanos...

  Implicações filosóficas da física quântica... 

Do Canal Fatos Desconhecidos (apenas para refletir):

Imagine um problema tão complexo que levaria milhares de anos para todos os computadores da Terra solucionarem juntos. Agora, imagine uma máquina capaz de resolvê-lo em apenas um segundo. Essa é a promessa do novo computador quântico do Google.



Eduardo Bueno: AMÉRICA É UMA FRAUDE

 

Do Canal de Eduardo Bueno - Buenas Ideias:

AMÉRICA, FRUTO DO FAKE - Tem gente que anda querendo trocar o ancestral nome Golfo de México para Golfo da… América! Mas claro que o cosplay de Doritos que propôs isso não sabe o q quer dizer nem uma nem outra palavra. Mas claro que Buenas Ideias tudo sabe e tudo vê… Venha tomar sua decisão conosco.



Mídia Internacional: A Guerra Comercial Começou, Trump x Mundo

 

Do Canal de Julien Jubert:

A guerra econômica entre China e México, Canadá versus EUA envolve tarifas, incentivos industriais e disputas comerciais. Washington pressiona parceiros do T-MEC para reduzir laços com Pequim, enquanto China investe no México para driblar barreiras. Canadá enfrenta tensões com os EUA por subsídios e políticas industriais divergentes, afetando cadeias produtivas. E um grande foco, tarifas… Neste vídeo veremos a mídia internacional falando da guerra tarifária entre EUA X CHINA, Canadá, México. Tarifas do TRUMP



Análise Politica com Luis Nassif pelo ICL Notícias: Trump, geopolítica, Brasil...

 

Do ICL Notícias a A Voz Trabalhadora:




sábado, 1 de fevereiro de 2025

O nazifascismo entrou em cena, por Dora Incontri

 Eis um regime que se anuncia fascista, 100 anos depois da ascensão de Mussolini na Itália, que passou à condição de Duce, no ano de 1925.




O nazifascismo entrou em cena

por Dora Incontri, no Jornal GGN:

Não há como normalizar o que se apronta no mundo. Não há como relaxar diante do cenário que se põe com a ascensão de Trump, respaldado pela extrema direita mundial, com a comunicação dos donos das big techs, que terão terreno livre para manipular as massas. Não há como ignorar e achar desculpas para a saudação nazista de Elon Musk. Estamos diante de um regime que se anuncia fascista, exatamente 100 anos depois da ascensão de Mussolini na Itália, que assumiu o cargo de Primeiro-Ministro em 1922, mas passou à condição de Duce, no ano de 1925.

Figuras caricatas todas essas que esposam a prática da extrema direita: cheios de caretas, frases de efeito, estética duvidosa, arroubos autoritários e, sobretudo, supremo desprezo por qualquer civilidade, por qualquer respeito humano. Logo no primeiro dia de governo, Trump já mostrou a que veio: perseguirá imigrantes, estimulará a pena de morte nos estados, cancelará a cidadania das crianças nascidas nos EUA, filhas de imigrantes. Já retirou o país da OMS e do acordo climático de Paris. Na posse mesmo, baixou diversos decretos absurdamente discriminatórios e autoritários. Nem me dou ao trabalho de nomear todos. Apenas registro o assombro, o lamento, a indignação e a perspectiva sombria que nos bate à porta.Se o Duce e logo em seguida o Führer puseram fogo no mundo e desencadearam a Segunda Guerra Mundial, agora é a maior potência militar do planeta que assume descaradamente a postura nazifascista. Aliás, a potência que já usou a bomba atômica, a única até agora a cometer esse crime contra a humanidade.

É claro que temos o dever de entender a história e saber que a Segunda Guerra não foi esse duelo entre a liberdade e o nazifascismo. Teorias e práticas eugenistas, por exemplo, já eram adotadas nos EUA antes da ascensão do nazismo na Alemanha, em relação à população afrodescendente. Tivemos até no Brasil, defensores de tais descalabros eugenistas, como o autor que li a infância inteira, Monteiro Lobato. Empresas americanas como a IBM e a Coca-Cola (com a criação da Fanta na Alemanha nazista) além de inúmeras alemãs, que incluíam a Volkswagen, a BMW, a Bayer, a Basf e outras, sustentaram e apoiaram a insanidade nazista.

Digo isso para demonstrar que é o capital que sustenta o totalitarismo de direita e que não houve uma disputa entre o puro bem e o detestável mal, na Segunda Guerra. Estavam todos mais ou menos implicados na responsabilidade do sangue derramado. E no outro polo da luta, estava Stalin, também ditador sanguinário, em que pese o mérito de ter ajudado a derrotar o nazismo.

Encerrada a Segunda Guerra, inicia-se a polaridade da Guerra fria e os EUA se constituem como um império que semeia o tempo todo, guerras, ditaturas pelo mundo afora, inclusive a nossa, a brasileira, de que agora os norte-americanos estão assistindo um pequeno recorte no filme Ainda estou aqui. Mas sabemos que com o analfabetismo político que reina por lá, ainda mais forte nesses tempos de zumbis das mídias eletrônicas, a maioria absoluta do povo não tem ideia do papel do governo dos EUA nas ditaduras ferozes da América Latina, incluindo o treinamento de torturadores.

A tão propalada “maior democracia do mundo” foi a patrocinadora de inúmeras ditaduras no mundo. E pior, que democracia sempre foi essa, que desde o início excluiu os negros, que só tem dois partidos (que têm diferenças muito pequenas entre si), que nunca promoveu programas de saúde popular, que mantém um verdadeiro campo de concentração, como a prisão de Guantánamo?

Agora então, o que restava de uma esquerda liberal – que pelo menos se empenhava pelos direitos civis internos, mas com pouquíssimos representantes que se manifestavam por exemplo contra o genocídio da Faixa de Gaza, que os EUA patrocinaram, apoiando largamente Israel – essa tímida facção de ideias um pouco mais à esquerda, Trump fará tudo para calar, para imobilizar, impondo-se com a maioria do Congresso e a maioria da Suprema Corte.

O que havia de arremedo de democracia acabou.

E nós, como ficamos? Em alto risco, porque temos os lambe-botas dos EUA, os simpatizantes do imperialismo yanque, que desejam alinhar os ponteiros da política brasileira com Trump. O clã dos Bolsonaro, que sofreu já todas as humilhações feitas por Trump (a última foi o fiasco de não serem aceitos para a posse do dito cujo); Tarcísio que celebrou a ascensão do novo governo e é da mesma cepa que Jair e Donald, e outros representantes dessa extrema direita tupiniquim, com complexo de vira-lata, que se volta feroz contra os interesses do Brasil e contra os próprios cidadãos brasileiros.

O risco é nosso, o risco é mundial. Um risco quase certo de acontecer o pior. Governos de extrema direita em vários países, alinhados na barbárie e na destruição.

Por tudo isso, não podemos tratar o tema com naturalidade, como a mídia corporativa tende a fazer. Como aliás, fizeram com Hitler e com Mussolini.

Estejamos em alerta máximo, em posição de resistência coletiva, de lucidez aguda, com esperança de que tenhamos os meios de virar mais essa página trágica da história, que certamente ainda vai nos causar muito choro e ranger de dentes.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

Rubens Paiva era torturado por sádicos assassinos da ditadura militar ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, por Urariano Mota

 

"Em depoimento anexado pelo Ministério Público à denúncia, Marilene Franco disse ter ouvido os gritos de Rubens Paiva, que era torturado em um salão ao lado de onde ela estava. Para abafar os gritos, um rádio foi ligado em alto volume. Tocavam ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos…”

Do Jornal GGN:

As razões dos torturadores, que mataram um homem ao som de canções com extrema perversidade, não cabem no samba curto de um artigo.



Rubens Paiva era torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos*

por Urariano Mota

Hoje pela manhã, enquanto seguia para um médico, disse à senhora  Francêsca:

– Não me sai da cabeça esta composição de Mozart – e tentei cantarolar, ou assassinar com a voz esta obra-prima

E continuei:

– Isso é bem melhor que Roberto Carlos, não é?

Ao que ela me respondeu:

– É. Aí já seria uma tortura.

Aquilo me ficou. Depois, enquanto esperava no consultório, me lembrei de que eu já havia escrito sobre Roberto Carlos e a tortura nos anos da ditadura brasileira. Ao chegar em casa, revi o texto de 2014, que volta à tona com o justo sucesso do filme “Ainda estou aqui’. Aos trechos.

Em mais de uma oportunidade já escrevi que podíamos escrever a história política do Brasil a partir do som da sua música popular. Assim foi, por exemplo, em páginas de Soledad no Recife, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. (Ao que acrescento agora em 2025: assim é com o romance “A mais longa duração da juventude”, onde há discussões homéricas sobre os grandes compositores da música popular).

Mas jamais poderia imaginar, e aqui mais uma vez a realidade supera o imaginado, que a música popular fosse usada do modo mais vil, como o noticiado na imprensa dos últimos dias.

A informação consta de um depoimento escrito pela professora Cecília Viveiros de Castro, que esteve presa nas mesmas instalações que Rubens Paiva. Cecília estava então com 48 anos. Ela foi detida ao voltar de uma visita ao filho, Luiz Rodolfo, exilado no Chile

Com ela estava Marilene Corona Franco, cunhada de seu filho. As duas traziam cartas de outros exilados para suas famílias.  No prédio da Aeronáutica, elas ouviram gritos de um preso que estava sendo interrogado. ‘Era a primeira vez que constatava a existência dos horrores da tortura, tão negados pelo governo’, diz.

Em depoimento anexado pelo Ministério Público à denúncia, Marilene Franco disse ter ouvido os gritos de Rubens Paiva, que era torturado em um salão ao lado de onde ela estava. Para abafar os gritos, um rádio foi ligado em alto volume. Tocavam ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos…”

A notícia não informa, talvez em nome da objetividade, que o ex-deputado Rubens Paiva foi morto ao som de Roberto Carlos por diferentes razões na escolha das músicas. Tentemos um esboço aqui. Roberto Carlos, o Rei, veio na contramão, contrário à rebeldia política, em real estado de conformismo.

A “maioria silenciosa”, nela incluídos os jovens mais alienados do mundo, os pequeno-burgueses que apenas queriam uma razão de se dar bem na vida, em lugar de uma razão de viver, acompanhavam Roberto Carlos na canção “Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui / Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui … / Quem poderá dizer o caminho certo / É você, meu Pai / Jesus Cristo! Jesus Cristo!….”

As razões dos torturadores, que mataram um homem ao som de canções com extrema perversidade, não cabem no samba curto de um artigo. As pessoas nascidas nos últimos anos não sabem que no tempo da ditadura a música era também uma realização política, a música era uma concreção, o mais próximo de uma arma possível. O seu lugar na vida e no imaginário da juventude rebelde era um ato inalienável de combate.

Sei que os fãs do “Rei” vão dizer: “Roberto Carlos não tem culpa dos crimes da ditadura”. É verdade. Mas, por coincidência, a música de Roberto Carlos acabou por ser uma das mais representativas desses anos. O Rei não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas que realçavam o mundo ordenado pelo regime. Entre outras, o Rei compôs a canção que foi um hino, um gospel de corações vazios, um som sem fúria de negros norte-americanos. O Rei orou “Jesus Cristo, eu estou aqui”. Que profunda ironia para o nome do filme “Ainda estou aqui”.

É uma perversa vitória do real que esse crime expresse tão cruel o valor da música popular no Brasil. Roberto Carlos e Rubens Paiva, numa estranha associação que eles não queriam.

*Vermelho Rubens Paiva era torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos – Vermelho

Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Reinaldo Azevedo – Google Maps e Trump; o Musk e o Canal da Mancha; as redes, o Brasil e “ditadura” dos EUA

 

Da Rádio BandNews FM:




Trump e a doença do colonizador ressentido

 

Vasto estudo confirma: pela primeira vez em 600 anos, mundo está deixando de ser eurocêntrico. No Sul global, esboçam-se novas relações e projetos. Quais são. Por que incomodam tanto. Que tipo de resposta gesta-se na Casa Branca

Foto: Chip Somodevilla / Getty

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Um dossiê do Instituto Tricontinental

MAIS:
O texto a seguir é o um trecho do dossiê
Hiperimperialismo: uma nova etapa decadente e perigosa
O trabalho pode ser lido, na íntegra, aqui.

PARTE V: Mudanças na ordem mundial

Um deslocamento da base econômica para o Sul


Enquanto os países do Norte Global vêm enfrentando um declínio prolongado do crescimento econômico, os países do Sul Global, sobretudo na Ásia, apresentam uma trajetória de crescimento econômico mais alta nos últimos trinta anos. Como pode-se observar na Figura 39, no final da Guerra Fria, em 1993, o Norte Global respondia por 57,2% do PIB global (PPC), enquanto o Sul Global respondia por apenas 42,8%. Trinta anos depois, essas proporções se inverteram definitivamente: a participação do Sul Global chegou a 59,4%, e o Norte Global detém 40,6%.


O G7 (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França, Alemanha, Itália e Japão) é o núcleo econômico do bloco do Norte Global. Em 1993, esses sete países representavam 45,4% da economia global. Enquanto isso, as economias mais importantes do Sul Global, que mais tarde viriam a ser conhecidas como Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), representavam apenas 16,7% da economia global naquele ano. Entre eles, a Rússia tinha acabado de emergir após a dissolução da União Soviética, e a China estava aprofundando suas reformas econômicas e estabelecendo uma economia socialista de mercado. Na época, nem a Rússia nem a China eram concorrentes do G7. Trinta anos depois, os países do Brics já representavam 31,5% da economia global, tendo ultrapassado o G7 (30,3%), conforme mostrado na Figura 40.

Em agosto de 2023, o Brics se expandiu com o convite para a inclusão de seis países: Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Irã e Argentina (embora a Argentina tenha temporariamente recusado o convite). O Brics 10 (sem a Argentina) acrescentou quase 4% à participação do Brics no PIB mundial (PPC), conforme mostrado na Figura 41.

Nos últimos trinta anos, os Estados Unidos, líder absoluto do Norte Global, viu sua participação na economia mundial cair lentamente em termos de PPC, de 19,7% em 1993 para 15,5% em 2022. Enquanto isso, no Sul Global, a rápida ascensão da China tem sido a variável mais notável. Em 1993, a China representava apenas 5% da economia mundial (Figura 42); já em 2016, sua economia ultrapassou a dos Estados Unidos em termos de PPC e, em 2022, sua participação na economia mundial chegou a 18,4%. Isso marca a primeira vez, em mais de 600 anos, que um país não dominado por brancos rompeu economicamente a hegemonia dos países imperialistas brancos. Essa realidade econômica fez com que os EUA começassem a tentar suprimir com urgência a ascensão da China.

Entretanto, seria um equívoco considerar a China como a única fonte de crescimento do Sul Global. Mesmo sem o país, as economias do Sul Global já haviam ultrapassado as do Norte Global em 2022, sendo suas respectivas participações na economia global de 41% e 40,6% (Figura 43). O desenvolvimento econômico geral do Sul Global proporcionou objetivamente a capacidade de buscar uma ordem internacional mais justa, o que é contrário aos desejos do bloco imperialista do Norte Global.

Identificamos todos os 43 países cuja participação no PIB mundial (PPC) chega a 41,1% (Figura 44) e que fazem parte de uma ou mais das três novas organizações internacionais que não são controladas por imperialistas: Brics 10 (fundado em 2009, ampliado em 2010 e 2023), Organização para Cooperação de Xangai (fundada como “Cinco de Xangai” em 1996, ampliada em 2001, 2017 e 2023) e o Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas (fundado em 2021). A lista completa é apresentada em seção posterior.

A Figura 45 mostra a taxa média de crescimento anual do PIB (PPC) per capita registrada na última década pelas 21 maiores economias do Sul Global e pelos países do G7. A taxa de crescimento da China (5,8%) continua a liderar entre os países selecionados. A taxa de crescimento da Ásia é geralmente mais alta do que a de outros países do Sul Global. Os cinco países seguintes com as maiores taxas de crescimento são Bangladesh (5,3%), Vietnã (4,9%), Índia (4,6%), Filipinas (3,3%) e Indonésia (3,1%). Com exceção dos Estados Unidos, o restante dos países do G7 tem uma taxa média de crescimento per capita inferior a 1%. Lamentavelmente, as maiores economias da África e da América Latina tiveram um crescimento per capita negativo: Nigéria e África do Sul, com -0,4%, e Brasil e Argentina, com 0% e -0,7%, respectivamente.

Obviamente, reconhecemos que as próprias taxas de crescimento podem mascarar as intensas lutas de classe travadas nos países, onde a parcela do crescimento não é de modo algum distribuída de forma equitativa entre capital e trabalho. Entretanto, seria um erro ignorar as taxas de crescimento e o que suas linhas de tendência descrevem.

Uma das mudanças mais significativas ocorrida nos últimos 20 anos na economia mundial foi uma guinada radical na geografia da produção industrial mundial.

O Banco Mundial divulga a porcentagem da indústria no PIB utilizando os preços correntes e as taxas de câmbio correntes, o que este estudo chama de método da Taxa de Câmbio Corrente (TCC). Atualmente, não temos conhecimento de nenhuma divulgação das porcentagens da indústria calculando-se o PIB (PPC).

As Figuras 46 e 47 mostram as mudanças na porcentagem do valor adicionado da indústria no PIB, tanto em termos de TCC quanto de PPC, nos últimos 18 anos. É provável que os números da participação do valor adicionado mundial da indústria estejam em algum ponto entre a TCC e a PPC. Os gráficos subsequentes desta série apresentam apenas o método PPC e têm as mesmas qualificações da primeira série.1

O que vemos é que há, de fato, uma mudança na base da economia, na qual o Sul Global abriga a parcela majoritária. Apesar de muitas previsões acerca de uma nova sociedade pós-industrial, nenhum país importante alcançou a modernização sem industrialização.

A participação do Brics 10 no valor adicionado da indústria mundial representa, em 2022, o dobro da participação do G7 (Figura 48).

Os resultados mostram o seguinte em relação ao valor adicionado da indústria como porcentagem do PIB mundial (PPC):

  • A China é o principal país industrial do mundo, com uma participação de 25,7% no valor adicionado, enquanto os EUA detêm apenas 9,7%.
  • O Sul Global tem uma participação de 69,4%, enquanto o Norte Global tem uma participação de 30,6%.
  • O Brics 10 tem uma participação de 44% e supera o G7.
  • A participação de Japão, Alemanha, França e Reino Unido também está diminuindo, enquanto a da Índia está aumentando (Figura 49).

Utilizamos a porcentagem do Banco Mundial para a indústria multiplicada pelo PIB anual (PPC) de cada país, em cada ano, para obter o valor adicionado da indústria com base em cada país. Em seguida, utilizamos esses números para calcular a porcentagem do valor adicionado total da indústria mundial, por país e categoria de grupo de países. Há algumas limitações e questões complexas relacionadas a essa metodologia.

Alguns economistas tentaram minimizar essa mudança. Há argumentos de que, com os monopólios do dólar estadunidense e a propriedade de grandes corporações multinacionais, os números do PIB exageram a mudança. No mínimo, não se pode dizer que a China tenha toda a sua produção sob o controle dos EUA. Mesmo na Índia, é um erro subestimar a importância de uma grande e crescente burguesia nacional (embora grande parte dela seja politicamente reacionária). A transferência da produção industrial para o Sul Global só poderia ter ocorrido com melhorias maciças em sua infraestrutura.

Ao se despedir do presidente russo Vladimir Putin durante sua visita de Estado em março de 2023, o presidente chinês Xi Jinping afirmou: “Neste momento, há mudanças – como não víamos há 100 anos – e somos nós que estamos conduzindo essas mudanças juntos”.2 A Eurásia é agora o palco central para determinar o futuro do próximo período da existência humana.

Estratégia dos EUA para coibir o crescimento econômico e a influência da China

Em 2007, Vladimir Putin proferiu um famoso discurso em Munique, criticando o domínio monopolista dos EUA e “o hiperuso quase incontido da força – força militar – nas relações internacionais, força que está mergulhando o mundo em um abismo de conflitos permanentes”.3

No mesmo ano, foi criado o Centro para uma Nova Segurança Americana (Center for New American Security – CNAS). Em 2009, telegramas secretos dos EUA para Washington, revelados pelo Wikileaks, afirmavam:

Xi sabe o quanto a China é corrupta e sente repulsa pela ampla comercialização da sociedade chinesa e seus consequentes novos-ricos, pela corrupção entre funcionários do governo, pela perda de valores, dignidade e respeito próprio, além dos “males morais” como drogas e prostituição… Quando Xi assumir o comando do partido, ele poderá tentar resolver esses males de forma agressiva, talvez às custas da nova classe endinheirada.4

Os alarmes estavam tocando em Langley e Foggy Bottom. O sonho do Ocidente de ver surgir um “Gorbatchov chinês” foi destruído em 2012 e ficou nítido que não havia derrota iminente à vista para uma China que ascendia economicamente. Assim, a estratégia de reorientação para a Ásia começou a integrar seus aliados para conter o país. A então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, declarou publicamente que “o século XXI será o século do Pacífico dos Estados Unidos”.5 Em contrapartida, Xi Jinping disse ao presidente dos EUA, Barack Obama, que “o Oceano Pacífico é grande o suficiente para acomodar o desenvolvimento tanto da China quanto dos Estados Unidos”.6

Em 2016, o PIB da China, calculado pela paridade do poder de compra, já havia ultrapassado o dos Estados Unidos. Em 2020, o Centro de Pesquisa Econômica e Empresarial (Centre for Economics and Business Research) previu que, em 2028, o PIB da China, medido em dólares estadunidenses, ultrapassaria o dos EUA, uma previsão que se tornou uma “barreira demoníaca”.7 As autoridades estadunidenses definiram a China reiteradamente como a ameaça estratégica mais significativa que o país e o Norte Global enfrentam.

O declínio relativo do poder dos EUA, a ascensão da China socialista e o crescimento econômico do Sul Global são os principais motivos por trás da subordinação ativa e da subsequente integração, pelos EUA, do restante dos países imperialistas. Isso levou a um bloco militar, político e econômico completamente sob o controle dos EUA. Em 1998, o ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, alertou: “O cenário mais perigoso seria uma grande coalizão entre China, Rússia e talvez Irã… não por um amor repentino entre eles, mas por uma oposição compartilhada à potência predominante (os EUA)”.8

Formado por uma combinação de neoconservadores e liberais defensores do intervencionismo, o CNAS gerou um núcleo de quadros das elites políticas dos EUA – dos dois partidos – que se concentrou no desenvolvimento de uma nova estratégia geopolítica para os EUA. Em 2021, ignorando o aviso de Brzezinski, o Centro começou a promover publicamente a preparação para guerras simultâneas. Entre as figuras importantes do CNAS estão o secretário de Estado Antony Blinken, o vice-secretário de Estado Kurt Campbell e a ex-subsecretária de Políticas de Defesa Michèle Flournoy. Ex-funcionários e consultores do CNAS têm permeado os órgãos estratégicos do Estado, inclusive o Conselho de Segurança Nacional.

O Conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, embora não seja membro do CNAS, agora desempenha um papel dominante na presidência e segue a mesma estratégia internacional. Em abril de 2023, Sullivan fez um discurso intitulado “Renovando a liderança econômica americana” no Brookings Institute.9 Esse discurso foi relevante por três motivos. Primeiro, é muito incomum que um discurso tão importante sobre a economia dos EUA seja proferido por um Conselheiro de Segurança Nacional. Historicamente, esses conselheiros, como Henry Kissinger, restringem-se ao âmbito da segurança nacional, da geopolítica e dos assuntos militares. Em segundo lugar, o discurso de Sullivan buscou criar um “novo Consenso de Washington” para restabelecer a hegemonia econômica dos EUA. Terceiro, Sullivan reconheceu a profundidade da crise estrutural dos EUA, incluindo sua estagnação econômica.

Esse plano econômico é necessário para dar suporte à expansão militar. Em julho de 2023, os EUA propuseram um projeto de lei para acrescentar US$ 345 milhões em ajuda militar a Taiwan.10 De Tel Aviv a Kiev e Taipei, os EUA estão intensificando operações militares até as portas da Eurásia.

As guerras frias, necessariamente associadas a conflitos entre potências nucleares, são sempre perigosas. Em 1988, Edward Herman e Noam Chomsky publicaram A manipulação do público: Política e poder econômico no uso da mídia, no qual criticavam o “modelo de propaganda” utilizado pela mídia corporativa dos EUA, muitas vezes em parceria com o Estado. Os autores já apontavam isso muito antes de esse sistema poder se valer das novas ferramentas tecnológicas de vigilância e comunicação direcionada que caracterizam a era digital. Graças às denúncias de Edward Snowden, o mundo pôde vislumbrar a vasta expansão do controle dos EUA sobre todas as comunicações e a forma como integraram todas as plataformas do monopólio tecnológico de TI dos EUA em adjuntos da infraestrutura de segurança nacional dos EUA.

“Colete tudo” foi como um ex-oficial sênior de inteligência descreveu a abordagem do ex-diretor da Agência de Segurança Nacional, Keith Alexander, com relação à coleta de dados. Todos os e-mails, todas as chamadas telefônicas e mensagens de texto de todos os tipos (incluindo os do WhatsApp, Telegram e Signal), cada toque de tecla e cada URL, tudo da grande maioria da população mundial é capturado (fora da China, da Rússia e de alguns outros países). Esses dados são armazenados em imensas redes de discos rígidos em locais como Bluffdale, no estado de Utah. Os EUA criaram uma rede global capaz de captar e administrar quase todos os pacotes de dados de todos os cabos submarinos de fibra óptica, todo o tráfego de celulares e o tráfego de dados via satélite.

Apesar da hegemonia militar, o capital ainda precisa de algo próximo do consentimento. Com o tempo, novas técnicas, como o aprendizado de máquina, proporcionaram um salto qualitativo na capacidade dos EUA de conduzir uma guerra psicológica secreta contra o povo, o Sul Global e suas populações.11

Os modelos econômicos de todas as empresas de mídia entraram em colapso com o advento da internet e a criação de monopólios econômicos de tecnologia, que desintermediaram todos os lucros da mídia. Começou uma nova era de total transformação de meios de comunicação em arma – um desdobramento que faz parte da estratégia geral de guerra híbrida (incluindo sanções econômicas e isolamento diplomático), utilizada pelo establishment dos EUA em todo o mundo.

A reorientação para a Ásia, que na realidade volta-se para a China, começou formalmente em 2012, sob o comando de Obama. Os EUA combinaram estratégias diplomáticas, econômicas, políticas e de propaganda para tentar conter, a princípio, o desenvolvimento econômico da China e, posteriormente, sua crescente influência em instituições como o Brics. A partir de 2016, Trump tentou evitar o conflito com a Rússia e começou a concentrar todas as energias dos EUA contra a China.

Nos últimos oito anos, os EUA utilizaram um conjunto de temas selecionados com curadoria para definir a narrativa da mídia ocidental sobre a China. Apesar dos milhões de pessoas muçulmanas mortas pelas mãos das forças da Otan no Iêmen, na Síria, no Iraque e no Afeganistão, o Ocidente conseguiu integrar seu formidável conjunto de recursos de soft power para travar uma guerra fria virulenta contra a China. Até o principal agente de propaganda nazista, Joseph Goebbels, teria se espantado com a arrogância do Ocidente ao reivindicar o manto dos direitos humanos e tentar usar Xinjiang como ponto de ataque contra a China.

Lawrence Wilkerson, ex-chefe de gabinete do secretário de Estado Colin Powell e ex-coronel do exército, observou que um importante objetivo estratégico da invasão militar dos EUA e de sua longa presença no Afeganistão era conter a Nova Rota da Seda da China (2013-atual) e criar divisões étnicas e agitação social em Xinjiang.12 Os veículos The New York TimesThe Guardian BBC se tornaram os principais apoios em uma campanha de operação psicológica característica dos EUA.

Como explicamos na análise das economias ocidentais, não é irracional que o Ocidente procure retardar o crescimento da China. O ponto central do próximo estágio de desenvolvimento chinês é a promoção de uma economia de dupla circulação, ou seja, aumentar o peso do mercado interno e, ao mesmo tempo, continuar a aumentar seu comércio internacional, passar a um desenvolvimento de alta qualidade e promover o desenvolvimento econômico das províncias do oeste do país. O ataque a Xinjiang atende simultaneamente a muitos interesses ocidentais: enfraquece as estratégias de crescimento interno da China, isola o país internacionalmente, mascara a violência dos EUA contra os países muçulmanos e mantém o apoio a grupos extremistas para desestabilizar seus adversários.

As alegações forjadas de genocídio entre a população uigur em Xinjiang, sem nenhuma comprovação pelo Departamento de Estado dos EUA, permitiram que o governo dos EUA impusesse sanções à China, com o objetivo de atingir toda a cadeia do setor têxtil chinês, que exporta mais de US$ 300 bilhões e responde por mais de um terço das exportações têxteis do mundo, ocupando o primeiro lugar no ranking global.13

Mas, apesar dessas sanções, o comércio exterior de Xinjiang aumentou 51,25% em relação ao ano anterior, atingindo US$ 30 bilhões nos três primeiros trimestres de 2023, e o comércio com cinco nações da Ásia Central cresceu 59,1%.14

A China acaba de anunciar uma zona de livre comércio em Xinjiang para promover a conectividade com os países da região da Nova Rota da Seda.

Além da guerra de “soft power“, os EUA não pouparam esforços para conter o desenvolvimento da China em setores de alta tecnologia, sobretudo para enfraquecer a capacidade chinesa de produzir ou mesmo comprar chips semicondutores de ponta. Ao impor uma competência de longo alcance sobre tecnologias como as máquinas de litografia ultravioleta extrema (EUV) fabricadas pela empresa holandesa ASML, os EUA buscam impedir que a China entre no futuro da tecnologia dos chips. O governo Biden acredita que o impacto disso vai muito além de enfraquecer os avanços militares da China, mas também ameaçará o crescimento econômico e a liderança científica do país.

Gregory C. Allen, diretor do Projeto de Governança de Inteligência Artificial e membro sênior do Programa de Tecnologia Emergente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington, acredita que a mensagem transmitida pelos controles de exportação contra a China, emitidos pelo Escritório de Indústria e Segurança (Bureau of Industry and Security – BIS) dos EUA, em outubro de 2022, faz parte de “uma nova política dos EUA de estrangular ativamente grandes segmentos do setor de tecnologia chinês – estrangular com a intenção de matar”.15 C.J. Muse, analista da indústria nos EUA, declarou: “Se você me falasse sobre essas regras cinco anos atrás, eu teria dito que trata-se de um ato de guerra – seria necessário estar em guerra”.16

Apesar das severas restrições impostas pelos EUA, a China continua crescendo mais do que o Norte Global (Figura 50).

Por meio da Nova Rota da Seda, a China fortalece suas conexões econômicas com o Sul Global. De 2013 a 2022, o volume total de comércio da China com os países participantes da Nova Rota da Seda atingiu US$ 19,1 trilhões, com um aumento médio anual de 6,4%. O investimento bilateral acumulado ultrapassou US$ 380 bilhões, e o investimento estrangeiro direto da China ultrapassou US$ 240 bilhões. Os novos projetos contratados pelo país atingiram US$ 2 trilhões, concluindo um volume de negócios acumulado de US$ 1,3 trilhão.17

Ironicamente, a contenção dos EUA nos campos de alta tecnologia apenas fortaleceu a determinação da China de ser autossuficiente em inovação. Nos últimos anos, o país asiático fez avanços significativos em inovação independente em chips de ponta, veículos elétricos e tecnologia digital, tornando o bloqueio e a contenção dos EUA em campos da alta tecnologia cada vez mais impraticáveis.

O Norte Global empurrando o mundo para a guerra

A ascensão pacífica dos países do Sul Global, liderada pela Ásia e sobretudo pela China, representa um desafio econômico abrangente ao domínio mundial imperialista. É a primeira vez em 600 anos que as potências imperialistas do Atlântico se deparam com uma força econômica não branca capaz de se contrapor a elas.

Para conter a ascensão da China, os EUA estão intensificando a integração interna dentro do campo imperialista, permitindo e exigindo o rearmamento de dois países fascistas derrotados na Segunda Guerra Mundial, Japão e Alemanha. De forma unânime, os líderes políticos dos EUA consideram essencial conter e derrotar a China, como um inimigo estratégico central, e deram início a uma nova guerra fria. Os líderes militares estadunidenses fazem declarações alarmantes sobre a China. O objetivo geopolítico dos EUA é derrubar os regimes da China e da Rússia, desnuclearizar e, se possível, desmembrar os dois países, dividi-los em vários países pequenos e garantir que nunca mais possam desafiar sua hegemonia militar e econômica.

Na fronteira ocidental da Rússia, a expansão da Otan para o leste levou a questão da segurança da Ucrânia a um ponto crítico de ebulição. Antes da dissolução da União Soviética, os Estados Unidos haviam prometido a Gorbatchov que a Otan não se expandiria para o leste, já que sua missão original – combater a União Soviética e conter o comunismo europeu – havia terminado com o fim da Guerra Fria. No entanto, a Otan não cumpriu esse “acordo de cavalheiros” e incorporou 14 novos Estados-membros, incluindo diversas antigas repúblicas soviéticas. Em 2018, a Ucrânia alterou sua Constituição para priorizar a entrada na Otan e na União Europeia como estratégia nacional, o que representa uma ameaça significativa à segurança nacional da Rússia. Como Kiev está localizada a apenas 760 km de distância de Moscou, permitir que a Otan implante armas nucleares na Ucrânia constituiria uma ameaça militar incontrolável para a Rússia.

Ao mesmo tempo, as forças neonazistas no oeste da Ucrânia estavam em ascensão. Em janeiro de 2022, foram realizadas procissões com tochas em cidades como Kiev e Lviv, comemorando o aniversário do colaborador nazista Stepan Bandera. Em conflitos anteriores, extremistas nacionalistas da mesma região hasteavam bandeiras nazistas e ameaçavam aniquilar ucranianos do leste do país e pessoas favoráveis à Rússia. A população russa étnica do leste da Ucrânia teve que organizar a resistência e buscar ajuda russa. Nessas circunstâncias, a Rússia lançou uma “operação militar especial” na Ucrânia, essencialmente enfrentando um confronto direto com a força militar da Otan.

No Pacífico Ocidental, os Estados Unidos fazem tentativas contínuas de alimentar as tensões em torno do Mar do Sul da China e de Taiwan. Em agosto de 2022, apesar da forte oposição e das demonstrações diplomáticas de descontentamento da China, a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan, cometendo uma grave violação do princípio de “Uma só China” e das disposições dos três comunicados conjuntos EUA-China, afetando seriamente a base política das relações sino-estadunidenses. É importante lembrar que, em 1972, no comunicado de Xangai, os Estados Unidos aceitaram a política de “Uma só China”, que reconhece que existe apenas uma China e que Taiwan não é um Estado soberano separado. Em agosto de 2023, a Marinha dos EUA, juntamente com as forças do Canadá e da República da Coreia, realizou exercícios militares conjuntos no Mar do Japão e no Mar Amarelo.18 No entanto, os exercícios terminaram abruptamente após, apenas cinco horas, devido às mobilizações militares direcionadas da China.19

Desde que Ferdinand Marcos Jr. assumiu a presidência das Filipinas, em junho de 2022, o país abriu diversas bases militares para os EUA, fortaleceu os laços de segurança com a Austrália e o Japão e desencadeou disputas com a China sobre questões de soberania no Mar do Sul da China. Navios de guerra dos EUA, do Canadá, da Austrália e de outros países também patrulham e fazem exercícios com frequência no Mar do Sul da China, provocando diversos contatos imediatos e atritos com a Marinha chinesa.

Até o momento, diante das contínuas provocações dos Estados Unidos e de seus aliados, a China tem mantido uma postura contida, esforçando-se para evitar conflitos militares com esses países, pois um confronto desse tipo poderia se transformar em uma guerra nuclear global. No entanto, Taiwan tem uma importância especial. Como parte da China historicamente e segundo a lei internacional, a continuação da separação de Taiwan significa que não houve fim para a guerra civil da China e até mesmo para o “século de humilhação”, que começou com as Guerras do Ópio em 1840. A divisão de Taiwan é inaceitável para a China, mesmo que isso signifique o risco de uma guerra direta contra os Estados Unidos.

Com o apoio direto de Biden e Blinken, Israel está promovendo uma limpeza étnica e o genocídio da população civil palestina em Gaza. A situação deixa evidente a verdadeira face do campo imperialista do Norte Global como um coletivo de colonizadores brancos: quando surgem conflitos entre colonos brancos e pessoas não brancas colonizadas, o campo imperialista apoia em uníssono o lado dos colonos.

As fraturas na Ucrânia e na Palestina exacerbaram a polarização dos social-democratas, sendo que alguns de seus setores se mostraram incapazes de superar o desejo de aceitabilidade e de se unir a um movimento robusto pela paz.

Voltemos à citação da Otan e da UE de que estariam “protegendo nosso bilhão de cidadãos, preservando nossa liberdade e democracia… contra todas as ameaças”. Essa frase, que aparece no primeiro parágrafo do comunicado da Otan-UE de 2023, descreve nitidamente a estrutura do mundo atual: o campo imperialista, centrado nos EUA e baseado na infraestrutura da Otan, está totalmente unido e mobilizado militar, política e economicamente, pronto para sufocar quaisquer forças emergentes que possam representar uma ameaça ao seu status hegemônico. Essa inédita e imensa pressão imperialista obrigou muitos no “resto do mundo” (aqueles que estão fora do campo imperialista) a identificar estruturas e identidades alternativas de autopreservação.

1Se houver evidências de que a indústria tem uma conversão significativamente menor do que outros elementos do PIB, os números da PPC que apresentamos superestimariam as porcentagens do Sul Global. Acreditamos que, apesar desse possível erro, a direção dessa abordagem oferece contribuições úteis. A composição percentual do PIB por setor depende dos dados de preço usados para medir o valor agregado de cada um deles. Os fatores de conversão de PPC são estimativas estatísticas baseadas em cestas de bens e serviços relativos a anos de referência que são posteriormente aplicadas ao PIB relativas às estimativas de PIB (PPC).

2Barbara Kollmeyer, “‘Right Now There Are Changes, the Likes of Which We Haven’t Seen in 100 Years.’ Here’s What China’s Xi Said to Putin before Leaving Russia”, Market Watch, 22 de março de 2023, https://www.marketwatch.com/story/right-now-there-are-changes-the-likes-of-which-we-havent-seen-in-100-years-what-china-president-xi-said-to-putin-before-leaving-russia-d15150ce.

3Agnieszka Bryc, “The Russian Federation and Reshaping a Post-Cold War Order”, Politeja 5, no. 62 (31 de outubro de 2019), p. 161–74, https://doi.org/10.12797/Politeja.16.2019.62.09;  Vladimir Putin, discurso proferido no Conselho de Segurança de Munique, Munique, Alemanha, 10 de fevereiro de 2007, https://is.muni.cz/th/xlghl/DP_Fillinger_Speeches.pdf.

4“Special Report: Cables Show US Sizing up China’s Next Leader”, Reuters, 17 de fevereiro de 2011, https://www.reuters.comarticle/idUSTRE71G5WH/.

5Luke Hunt, ‘The World’s Gaze Turns to the South Pacific”, The Diplomat, 4 de setembro de 2012, https://thediplomat.com/2012/09/the-worlds-gaze-turns-to-the-south-pacific/.

6Xi Jinping, “Remarks by President Obama and President Xi Jinping in Joint Press Conference”, 12 de novembro de 2014, Casa Branca, https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2014/11/12/remarks-president-obama-and-president-xi-jinping-joint-press-conference#:~:text=At%20the%20same%20time%2C%20I,instead%20of%20mutually%20exclusive%20ones.

7“China to Leapfrog US as World’s Biggest Economy by 2028 – Think Tank”, Reuters, 26 de dezembro de 2020, https://www.reuters.com/article/idUSKBN290003/.

8Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives (New York: Basic Books, 1997), 55; 30–31.

9Editores, “Notes from the Editors”, Monthly Review 75, no. 4 (1 de setembro de 2023), https://monthlyreview.org/2023/09/01/mr-075-04-2023-08_0/;  Jake Sullivan, “Remarks by National Security Advisor Jake Sullivan on Renewing American Economic Leadership at the Brookings Institution”, Casa Branca, 27 de abril de 2023, https://www.whitehouse.gov/briefing-room/speeches-remarks/2023/04/27/remarks-by-national-security-advisor-jake-sullivan-on-renewing-american-economic-leadership-at-the-brookings-institution/.

10Nomaan Merchant et al., “US Announces $345 Million Military Aid Package for Taiwan”, TIME, 29 de julho de 2023, https://time.com/6299419/us-military-aid-taiwan/.

11Apesar das recentes denúncias de práticas fraudulentas, a economia comportamental foi utilizada com sucesso como arma pela inteligência dos EUA em campanhas de mídia on-line.

12Daniel McAdams, “‘What Is The Empire’s Strategy?” – Col Lawrence Wilkerson Speech At RPI Media & War Conference”, Instituto Ron Paul pela Paz e a Prosperidade, 22 de agosto de 2018, https://ronpaulinstitute.org/what-is-the-empires-strategy-col-lawrence-wilkerson-speech-at-rpi-media-war-conference/.

13Colum Lynch, “State Department Lawyers Concluded Insufficient Evidence to Prove Genocide in China”, Foreign Policy, 19 de fevereiro de 2021, https://foreignpolicy.com/2021/02/19/china-uighurs-genocide-us-pompeo-blinken/; ‘Textile Exports by Country 2023’, World Population Review, acessado em 26 de dezembro de 2023, https://worldpopulationreview.com/country-rankings/textile-exports-by-country; “China’s Major Exports by Quantity and Value, December 2022 (in USD)”, Administração Geral de Alfândegas, República Popular da China, 8 de janeiro de 2023, http://english.customs.gov.cn/Statics/aeb5aefa-b537-4ef3-8e13-59244228cb0e.html.

14Li Xuanmin, “A Decade of BRI Development Transforms China’s Xinjiang Region into a Core Area of the Silk Road Economic Belt – Global Times”, Global Times, 1 de outubro de 2023, https://www.globaltimes.cn/page/202310/1299158.shtml.

15Gregory C. Allen, “Choking off China’s Access to the Future of AI”, Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, 11 de outubro de 2023, https://www.csis.org/analysis/choking-chinas-access-future-ai.

16Alex W. Palmer, ” ‘An Act of War’: Inside America’s Silicon Blockade Against China”, The New York Times, 12 de julho de 2023, https://www.nytimes.com/2023/07/12/magazine/semiconductor-chips-us-china.html.

17Xinhua, “The Belt and Road Initiative: A Key Pillar of the Global Community of Shared Future”, Escritório de Informações do Conselho de Estado, República Popular da China, 10 de outubro de 2023, http://english.scio.gov.cn/whitepapers/2023-10/10/content_116735061_5.htm.

18David Choi, “US, South Korean, Canadian Warships Train in Yellow Sea Ahead of Incheon Anniversary”, Stars and Stripes, 15 de setembro de 2023, https://www.stripes.com/branches/navy/2023-09-15/trilateral-naval-drill-yellow-sea-incheon-11383145.html.

19An Dong, ‘Apenas cinco horas depois de inicar exercício naval no Mar Amarelo, pseudo-porta-aviões dos EUA foge, carregador se acidenta e exército é forçado a mandar buscas para encontrá-lo]”, IFENG, 18 de setembro de 2023, https://i.ifeng.com/c/8TBMF5tH2bY.