quarta-feira, 13 de novembro de 2024
terça-feira, 12 de novembro de 2024
Escárnio e deboche repugnante desonesto e na associação PiG-Bolsonaro-extrema-direita: Folha “assina atestado de óbito” publicando artigo de Bolsonaro
A jornalista Helena Chagas avaliou, nas redes sociais, que “o artigo de Bolsonaro na Folha hoje falando de democracia é um escárnio. Atitudes como essa da grande (?) mídia contribuem para normalizar a participação de golpistas como ele no jogo político.
O jornal Folha de S. Paulo, que fez história ao cobrir as Diretas Já, agora recebe críticas de jornalistas, analistas e políticos, por abrir espaço em seu editorial para um artigo assinado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, investigado por crimes comuns e contra a democracia, e declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral.
No artigo provocativamente intitulado “Aceitam a democracia”, Bolsonaro sustenta que os ventos sobram em direção à direita, com cada vez mais países na América Latina e no mundo escolhendo lideranças de direita, como Donald Trump nos Estados Unidos.
O texto diz que a esquerda, quando perde eleição, fraude o resultado ou lamenta que tenha deixado o adversário de direita concorrer. Mas nada disso é capaz de parar o anseio da população por concretizar a agenda de direita, centrada na liberdade econômica, na família e na religião. Para Bolsonaro, a esquerda está desconectada do trabalhador e envelheceu sem lapidar novos líderes para os novos tempos.
Para a jornalista Cristina Serra, ao abrir espaço para que um golpista fale de democracia, a Folha assinou o “atestado de óbito”.
Já a jornalista Helena Chagas avaliou, nas redes sociais, que “o artigo de Bolsonaro na Folha hoje falando de democracia é um escárnio. Atitudes como essa da grande (?) mídia contribuem para normalizar a participação de golpistas como ele no jogo político. Fizeram a mesma coisa quando deram a Marçal um espaço que ele não deveria ter na campanha eleitoral. Isso não é democracia, é leniência em relação àqueles que a ameaçam. Bolsonaro é um golpista e deve ser banido do debate político.”
Para o pesquisador da FGV, Rafael Viegas, “Folha abre espaço para uma estratégia que visa reforçar a narrativa em torno da anistia para aqueles que atentaram contra instituições democráticas durante o governo Bolsonaro e em 8 de janeiro de 2023.”
O deputado federal Ivan Valente (PSOL) afirmou que “Bolsonaro é muito descarado”.
Para o deputado federal Lindbergh Faria (PT), a Folha publicar um artigo de Bolsonaro é um “deboche”. “Bolsonaro nunca escondeu seu ímpeto autoritário. Governou perseguindo as instituições democráticas e a própria imprensa. Sabendo que ia perder as eleições, deslegitimou as urnas, o sistema eleitoral e planejou um golpe de Estado. Fracassou! Ao admitir um artigo do Bolsonaro, a Folha legitima o discurso golpista e a extrema direita. Isso não é liberdade de expressão. É conivência com o autoritarismo! Uma vergonha!”
A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, disse que Bolsonaro defender a democracia é parecido com “um assassino defendendo o direito à vida. É como apagar da memória do país que o inelegível chefiou uma tentativa de golpe armado contra o presidente eleito, com gente que planejava o sequestro dos presidentes da República e do STF; que tentou sabotar o processo eleitoral e fraudar o resultado. Ele é o chefe de uma extrema direita que prega o ódio e pratica a violência contra qualquer opositor, até mesmo em seu campo. É repugnante essa tentativa de normalizar um extremista.”
A analista e especialista em linguagem, Eliara Santana, avaliou que a decisão editorial da Folha é “indefensável” pois Bolsonaro “não é um ator político do campo democrático”.
A era do discurso de ódio de Trump, Bolsonaro, Milei, Musk e assemelhados discutida em artigo de João Cézar de Castro Rocha
Trump, Musk, Bolsonaro e Milei converteram a retórica do ódio em linguagem cotidiana
Do iclnotícias:
A era de Ricardo III: Trump, Bolsonaro, Musk e tutti quanti
O ômega como alfa
A peça só principia quando a guerra acaba. Amanhã ou depois de amanhã. Na primeira cena de Ricardo III o duque de Gloster ainda não é rei, muito embora ambicione o título como se não houvesse amanhã, pouco importando os obstáculos que terá de enfrentar.
(No seu caso, tratava-se apenas de levar à morte seus irmãos e sobrinhos, entre outras tantas vilanias. Sem remorso algum – sobretudo.)
A longa e desgastante Guerra das Duas Rosas finalmente conheceu um vencedor. A família York – representada pela rosa branca – derrotou a família Lancaster – simbolizada pela rosa vermelha – depois de 30 anos de conflito intermitente. Tempo de celebração para os vitoriosos, especialmente para o primogênito dos York, que se tornou o rei Eduardo IV. Numa palavra, após os rigores de batalhas sem-fim, a corte se preparava feliz para os excessos das festas.
Isto é, quase todos… E como nem sempre a exceção somente serve para confirmar a regra, o duque de Gloster, irmão do rei, encontrou motivos em tese incontestáveis para não se unir à euforia generalizada.
Escutemos sua confissão, aliás, nada augustiniana:
“(…) Eu, no entretanto,
que não nasci para essas travessuras
desportivas, nem para declarar-me
a um espelho amoroso, eu (…)
deformado, incompleto, antes do tempo
lançado ao mundo vivo, apenas feito
pela metade, tão monstruoso e feio
que os cães me ladram, se por eles passo…”[1]
De fato, considerando-se a impiedosa autodescrição, o futuro rei Ricardo III não tinha razões para se entusiasmar com os tempos de paz que se anunciavam. Sinuca de bico, beco sem saída: emparedado, o duque de Gloster anunciou uma decisão que mudou a história da Inglaterra, propiciando o advento da Dinastia Tudor. A sentença é tão cortante quanto surpreendente:
“I am determined to prove a villain
And hate the idle pleasures of these days.”[2]
A tradução de Carlos Alberto Nunes deixou escapar uma importante novidade do texto no cenário elisabetano ao optar por um vocabulário que se afasta da força do original:
“(…) determino
conduzir-me qual biltre rematado
e odiar os vãos prazeres de nossa época.”[3]
Imagine-se o impacto dessa fala, especialmente no momento em que o futuro rei assume sem constrangimento algum seu intento “to prove a villain”. Estamos na abertura da peça: primeira cena do primeiro ato. O duque de Gloster entra no palco e antes mesmo de abrir a boca já causa uma impressão indelével na audiência pelas suas deformidades físicas: um braço menor do que o outro, corcunda, coxo; por fim, a expressão, para dizê-lo com alguma elegância, pouco atraente. Machadiana, a pergunta se insinua: por que de família real se assim; por que assim se de família real? As palavras completam o retrato de sua triste figura, trazendo ao centro do palco um novo tipo, ou seja, o vilão que não busca dissimular seus propósitos; pelo contrário, parece orgulhar-se com sua vilania explícita, obscena até, como se a desfaçatez fosse prova de superioridade moral.
O modelo mais comum de velhaco na tradição literária pode ser visto nas artimanhas silenciosas de um Iago, tão ágil na urdidura de intrigas quanto hábil na dissimulação de seu verdadeiro caráter. A cautela inspirava-se num motivo igualmente irrefutável, pelo menos segundo o cálculo do alferes:
“Pois se as minhas ações exteriores mostrarem
Meus atos inatos, meu vero coração
Exposto à clara luz, vai ser rápido até
Que eu entregue às gralhas meu coração desnudo,
Pra que o espicacem. Eu não sou o que sou.”[4]
O vilão precisa não ser o que é, assumindo inúmeros papéis e vestindo peles as mais diversas, a fim de camaleonicamente manipular suas vítimas, ajustando-se às expectativas alheias. Ademais, ganhar tempo costuma ser fundamental para arquitetar planos bem-sucedidos. Por isso, a prudência de Iago também é instinto de sobrevivência. Revelar à luz do dia o móvel de suas ações ameaçaria tornar a trama muito pouco efetiva, já que facilmente previsível. O segredo é alma do negócio de Iago. Na peça, a estratégia do alferes é coroada de êxito: ele só é desmascarado quando já é tarde demais; até o último momento todos creem que ele é um fiel e bom amigo.
O duque de Gloster certamente desprezaria a cautela de Iago. Guerreiro temido no campo de batalha, apesar de suas limitações físicas, homem de coragem lendária, logo após proclamar-se “a villain”, ele enumerou as ações que planejou para tomar o poder. Escutar o duque de Gloster com atenção é indispensável para redimensionar o mundo contemporâneo.
(Trump, Orban, Bolsonaro, Milei, Bannon, Musk e tutti quanti.)
Você me dirá se exagero:
“Por meio de conjuras, arriscadas
insinuações, insanas profecias,
pasquins e invencionices, mortal ódio
mantenho entre o monarca e o irmão Clarence.”[5]
Vale a pena ter contato com o texto no original:
“Plots have I laid, inductions dangerous,
By drunken prophecies, libels, and dreams
To set my brother Clarence and the king
In deadly hate the one against the other.”[6]
A data geralmente aceita para a conclusão da escrita de Ricardo III remonta a 1592. Pois bem: o dono do X, Elon Musk, que provavelmente não leu a peça, lançou mão de idêntico método para ajudar a eleger Donald J. Trump em seu retorno à presidência dos Estados Unidos.
Explico:
(Mal escrevo e já me sinto constrangido.)
Mais modesto: proponho um paralelo.
Como se descobriu posteriormente, o plebiscito do Brexit, a eleição de Trump, em 2016, e, entre tantos exemplos possíveis, o triunfo de Jair Messias Bolsonaro, em 2018, foram influenciados decisivamente pelas novidades inventadas no caldeirão político dos porões da Cambridge Analytica, empresa de consultoria co-criada por Steve Bannon que atuou para modificar drasticamente o cenário das disputas majoritárias em todo o mundo. Processada num tribunal londrino, a empresa, contratada em 2016 pela campanha de Trump, reconheceu-se culpada e admitiu ter coletado informações de aproximadamente 87 milhões de usuários sem o seu consentimento.[7] A massa até então inédita de dados num pleito presidencial foi processada para fornecer relatórios detalhados a fim de orientar as estratégias de Trump em sua jornada rumo à Casa Branca.
Contudo, e eis ponto mais importante, o modelo da Cambridge Analytica era o ardiloso Iago: trabalho sujo feito na surdina, de forma quase clandestina – guerrilha na veia; eis o lema paradoxal da extrema direita contemporânea.
Elon Musk seguiu à risca as lições de Donald Trump, Jair Messias Bolsonaro e Javier Milei: o arquétipo do duque de Gloster; todos estão muito “determined to prove a villain”. Em seus discursos de campanha e no exercício do cargo em nada disfarçam suas intenções autoritárias e extremistas. Pelo contrário, converteram a retórica do ódio em linguagem cotidiana; transformaram a recusa decidida da alteridade em políticas públicas de exclusão na cara dura; revogaram direitos históricos com um despudor que surpreenderia inclusive o Ricardo III shakespeariano.
E ainda assim foram eleitos.
(Em eleições livres e democráticas.)
Acabamos de ver que as tramoias e picaretagens da Cambridge Analytica obedeceram ao receituário de Iago: para produzir um inimigo rumor sempre mais intenso, deve-se trabalhar em silêncio, à sombra. Assim foi no remoto, remotíssimo, ano de 2016.
(Nos tempos céleres que correm, uma vaga memória – se tanto.)
Em 2024 o padrão conheceu uma alteração tão radical que, presos no meio do redemoinho, ainda não tivemos tempo para nos espantar. Os números são tão hiperbólicos que soam irreais.
(Mais ou menos como investir fortunas no banco imobiliário.)
Em seu parque de diversões favorito, o Twitter, rebatizado X, Elon Musk criou a maior usina da história da humanidade de produção ininterrupta de “plots, inductions dangerous, drunken prophecies, libels, and dreams” e com idêntico alvo, qual seja, “to set in deadly hate” – e não importa entre ou contra quem, pois a plataforma X lucra, e muito, exponencialmente, com o ódio que lubrifica suas engrenagens.
(Suas entranhas – if you may.)
Aos números.
Estudo divulgado pelo Center for Countering Digital Hate sugere que Musk tornou o X uma fantástica fábrica de desinformação e, para ficar num só exemplo, em sua conta pessoal, chegou a difundir um vídeo sabidamente falso, um deep fake produzido com a mais avançada inteligência artificial, com declarações comprometedoras (e absurdas) da candidata Kamala Harris.[8]
Sem disfarce algum, pudor nenhum, Musk divulgou fake news e teorias conspiratórias sem cessar para favorecer a eleição de Donald Trump. Sortear 1 milhão de dólares todos os dias, numa óbvia gamificação da política, cujo efeito perverso é a hiperpolitização do cotidiano para despolitizar a pólis, não é nada diante da máquina de dissonância cognitiva coletiva urdida por sua plataforma.
Prepare-se para um choque de realidade:
“O estudo [do Center for Countering Digital Hate] identificou 746 postagens do bilionário entre julho e outubro com referência à eleição ou à política. No total, essas mensagens somaram 17,1 bilhões de visualizações, o dobro da audiência de todas as campanhas de comerciais pagas pelos republicanos na plataforma X.
Se fossem cobradas, essas postagens teriam custado à campanha US$ 24 milhões.
De acordo com o informe, pelo menos 87 das publicações de Musk neste ano promoveram afirmações falsas sobre a eleição dos EUA. No total, essas postagens acumular 2 bilhões de visualizações. Apenas as afirmações de Musk de que os democratas estavam importando eleitores e permitindo que estrangeiros pudessem votar somaram 1,3 bilhão de visualizações.”[9]
Utopia em pleno século XXI distópico: Elon Musk, leitor agudo de Machado de Assis, definiu sua personalidade ao ler o conto: “Suje-se gordo!” Manteve-se fiel à lição machadiana: a eleição de Donald Trump é prova inconteste. E sujo, muito, engordou bastante sua fortuna.
Viver na era de Ricardo III é o desafio que temos pela frente. Aqui, contudo, não podemos nos dar ao luxo de repisar o poema do Bruxo do Cosme Velho, “Perguntas sem resposta”.
(Sei que nada será como antes amanhã. Amanhã ou depois de amanhã. Resistindo na boca da noite um gosto de sol.)
[1] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Ato I, cena I. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 485.
[2] William Shakespeare. King Richard III. Act I, scene I. Cambridge: The New Cambridge Shakespeare, 2009, p. 63.
[3] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Op. cit., p. 485.
[4] William Shakespeare. A tragédia de Otelo, o mouro de Veneza. Ato I, cena I. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2017, p. 137.
[5] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Op. cit., p. 485.
[6] William Shakespeare. King Richard III. Op. cit., p. 63.
[7] “Cambridge Analytica se declara culpada em caso de uso de dados do Facebook”. G1, 09/01/2019: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/01/09/cambridge-analytica-se-declara-culpada-por-uso-de-dados-do-facebook.ghtml.
[8] Ver um estudo feito pelo Centro, https://counterhate.com/research/musk-misleading-election-claims-viewed-1-2bn-times-on-x-with-no-fact-checks/.
[9] Jamil Chade. “Mentiras de Musk sobre eleição e Kamala somaram 2 bi de visualizações”. UOL, 05/11/2024: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/11/05/mentiras-de-musk-sobre-eleicao-e-kamala-somaram-2-bi-de-visualizacoes.htm.
segunda-feira, 11 de novembro de 2024
‘Aceitem a democracia’, diz o maior (e mais cínico) golpista do Brasil. Artigo de Chico Alves
A farsa “democrata” de Jair Bolonaro chegou ao público pela Folha de S. Paulo
Do site iclenoticias.com.br
‘Aceitem a democracia’, diz o maior golpista do Brasil
O artigo surgiu no site de um dos maiores jornais brasileiros como se fosse mais um texto opinativo corriqueiro, em meio aos palpites daqueles que tentam entender a complexidade da política nacional.
Chamou atenção pela assinatura do articulista, que contrastava com o título. O autor: Jair Bolsonaro (aquele mesmo!) O título: “Aceitem a democracia”.
Nas 623 palavras seguintes, um amontoado de mentiras, distorções e manipulações de fatos é apresentado no espaço jornalístico que ao menos em tese deveria ser dedicado a perseguir a verdade.
Ao contrário: em tom de tese cívica, como se fosse uma desinteressada defesa do bem comum, a Folha ofereceu ao leitor um rosário de lorotas.
“Aceitem a democracia”, diz o homem que usou a autoridade de presidente da República para tentar desacreditar o processo eleitoral de seu próprio país.
“Aceitem a democracia”, pede o sujeito que incitou seguidores a investirem contra as instituições, invadindo as sedes dos Poderes, em Brasília.
“Aceitem a democracia”, clama o homem que incentivou um hacker a invadir o sistema de informática do Tribunal Superior Eleitoral.
Tentando simular naturalidade, o ghost writer de Bolsonaro escreveu que “quando uma ideia ganha a alma do povo, é inútil tentar matá-la simplesmente por meio da violência”. Difícil definir o sentimento de ler algo assim assinado pelo personagem inspirador de grupos que levantaram detalhes da rotina dos seguranças do ministro Alexandre de Moraes, do STF, e de Lula, para atacá-los.
Justamente o signatário que serviu de guia aos homens que planejaram e quase conseguiram concluir um atentado a bomba no aeroporto de Brasília.
Cheio de cinismo, o autor critica a “reação da esquerda às suas derrotas”, como se a gangue bolsonarista não tivesse perpetrado o 8/1.
O dublê de articulista e ex-presidente fala em aceitar a “vontade popular”, como se não tivesse esperneado e tentado até os 45 do segundo tempo manter-se na Presidência, mesmo derrotado nas urnas.
Termina o texto dizendo que trabalha “por um futuro melhor para as pessoas, para as famílias” — não incluídas aí as 400 mil pessoas cujas mortes poderiam ter sido evitadas na pandemia de covid-19, se Bolsonaro tivesse seguido os ditames da ciência.
Mas, convenhamos, do “mito” da extrema direita brasileira não se poderia esperar mesmo qualquer manifestação de honestidade intelectual.
O que surpreende no artigo não é o seu conteúdo, que se alinha com todas os disparates difundidos costumeiramente por Bolsonaro, mas o fato de ter sido divulgado não em uma live para a seita bolsonarista ou em algum site de extrema direita.
A farsa “democrata” de Jair Bolsonaro chegou ao público pela Folha de S. Paulo.
A partir daí , quem sabe, pode-se esperar que talvez Marcola escreva um artigo sobre segurança pública ou os promotores do Jogo do Tigrinho façam um texto sobre economia popular.
Na ânsia de exercer o democratismo (a prática de mostrar diversidade de opiniões, mesmo ao custo de abrir espaço para aqueles que querem destruir a democracia) o jornal chega ao ápice do “doisladismo”. Mostra os dois lados de quase todos os assuntos, menos quando se trata de economia. Na pauta do corte de gastos, por exemplo, só há espaço no noticiário para os porta-vozes do “mercado”.
O metaverso da democracia brasileira já tem seu órgão de imprensa oficial.
Afinal, se a extrema direita instaurar o caos institucional no país basta daqui a algumas décadas escrever um editorial pedindo desculpas.
E fazer tudo de novo.
Militares golpistas autoritários da extrema-direita membros dos Kids Pretos fizeram plano de emboscada contra Alexandre de Moraes são também expostos por Juliana Dal Piva em artigo
Ministro foi monitorado como parte do plano de golpe de Estado no fim do governo Bolsonaro
Do site ICL Notícias:
A Polícia Federal arrecadou provas desde fevereiro deste ano, durante e após a operação Tempus Veritatis, de que o grupo de militares conhecido como “Kids Pretos” teria criado um plano para uma emboscada contra o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). O magistrado foi minuciosamente monitorado pelo grupo. Esse plano faz parte dos preparativos para a tentativa de golpe de estado após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.
A coluna apurou com duas fontes próximas à investigação que esses novos dados foram arrecadados em computadores e celulares apreendidos durante as ações. Um dos militares envolvidos no plano seria o general Mário Fernandes, chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. A coluna fez contato desde a tarde de sexta-feira com a defesa do general, mas não obteve retorno.
Na sexta-feira (8), o portal Uol revelou que a PF descobriu dados sobre a preparação do golpe que incluíram o levantamento dos nomes, das rotinas e até do armamento usado pelos responsáveis pela segurança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro Alexandre de Moraes. A coluna apurou que esse levantamento foi feito pelo grupo de “Kids Pretos”.
“Kid preto” é o apelido dado a militares que se formam no curso de Operações Especiais do Exército Brasileiro. Uma das unidades militares onde eles atuam é no Comando de Operações Especiais, em Goiânia. Segundo as investigações, a trama golpista tentou fazer com que militares dessa unidade tomassem parte no golpe de Estado. Entre as atribuições deles estaria prender o ministro Alexandre de Moraes e outras autoridades, sob ordem de Jair Bolsonaro.
Os investigadores descobriram uma reunião dos kids pretos em novembro de 2022, em Brasília. Os detalhes do plano foram encontrados em mensagens recuperadas no celular do tenente-coronel Mauro Cid, que fez colaboração premiada com a PF. Na última semana, o ex-chefe da Abin (Agência Brasileiras de Inteligência), Alexandre Ramagem, e o general Nilton Rodrigues prestaram depoimento no inquérito.
General citado pela PF comandou kids pretos
Segundo as investigações, uma das peças centrais nesse plano era o general Mário Fernandes. Antes de comandar a Secretaria-Geral da Presidência, ele esteve à frente do Comando de Operações Especiais, em Goiânia. O coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, afirmou aos investigadores que Fernandes integrava o grupo de militares mais radicais envolvidos no planejamento do golpe.
Conversas obtidas pela PF mostram que outros envolvidos contavam com a interferência dele para garantir a adesão dos kids pretos ao plano golpista, influenciando diretamente o comandante da unidade na época, general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel.
Um dos indícios encontrados na investigação sobre o papel central do general Mário no plano de emboscada contra Moraes é um áudio. A gravação encaminhada pelo coronel Hélcio Franco ao ex-militar Ailton Barros – também envolvido na trama golpista.
“Quem tem a tropa na mão é o comandante de Operações Especiais. Por exemplo: o comandante deu a ordem, né? Tem que ver esse fenômeno aí do que é a tropa na mão, né? De qualquer forma, eu acho melhor coordenar esse assunto com o Mário, tá? Eu já falei pro Borges que eu não tenho contato com o Mário, e acho que o Borges deve encaminhar esse assunto pro Mário, que é a minha sugestão”.
quinta-feira, 7 de novembro de 2024
Trump e o salto para o abismo. Artigo de Florestarn Fernandes Jr.
"Basta um arroubo de fúria de um dos líderes fascistas para pôr a humanidade a perder", escreve Florestan Fernandes Jr.
As semelhanças entre Hitler e Donald Trump vão além da ideologia de extrema-direita. As estratégias políticas e de comunicação são as mesmas.
Em novembro de 1923, portanto há cem anos, Adolf Hitler liderou uma marcha malsucedida para derrubar o governo do Estado da Baviera.
Pelo crime de alta traição, Hitler foi condenado a cinco anos de prisão, mas cumpriu apenas um.
Resultado: livre para organizar o partido nazista, Hitler chegou ao poder como Chanceler em 1933 e ditador no ano seguinte.
Já Donald Trump sequer chegou a ser julgado por sua atuação na invasão do Capitólio, em janeiro de 2021.
Livre, com muito dinheiro e o apoio do dono do X, Elon Musk, Trump continuou sua cruzada de extrema-direita e agora consegue o feito de ser reeleito nos EUA, com uma votação robusta. Se será um ditador nos moldes de Hitler, só o tempo dirá.
O que me parece mais temeroso é que Trump, aos 78 anos, é um homem bilionário, poderoso, narcisista (portanto egocêntrico) que pode e provavelmente trará prejuízos irremediáveis ao futuro das democracias e do meio ambiente. Ou seja, os danos, em escala global, são existenciais. Infelizmente, esse é o espírito do tempo que vivemos e, diante desse fato, além do lamento, nos cabe a reflexão.
Penso que algo de muito caro nos sonhos e nas mentes das pessoas foi quebrado nas últimas décadas.
Dito isso, há outro ponto muito importante no contexto que discuto aqui: a impunidade daqueles que corroem abertamente o estado democrático de direito. Como bem me lembrou Alfredo Attié durante a apuração dos votos nos EUA: “O grande responsável pela reeleição de Trump é a Justiça norte-americana, em sua omissão e lentidão de responsabilizá-lo pela tentativa de golpe. O mesmo pode acontecer aqui, com uma Justiça que é ainda menos independente.” Attié tem toda razão.
Aqui em nossas bandas, dois anos após a descoberta da minuta do golpe e dos atos terroristas em Brasília, ninguém da alta cúpula do governo Bolsonaro foi sequer indiciado. A punição só veio para aqueles desvairados que destruíram as sedes dos três poderes. Ou seja, no mar de golpistas, os tubarões seguem nadando livremente.
Igualmente livres estão Bolsonaro e sua trupe quanto aos crimes de falsificação da caderneta de vacinação e a venda das joias sauditas.
Isso sem falar no processo que investigava a responsabilidade de Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19. Esse crime de proporções gigantescas, que ceifou a vida de tantos brasileiros, não pode cair no esquecimento.
Lembro aqui que, em janeiro de 2024, Gilmar Mendes determinou que o procurador-geral da República, Paulo Gonet, reavaliasse a conduta e as omissões de Bolsonaro durante a pandemia. Até agora, nada.
Fomos deixando passar tudo, desde a carnificina que foi a Covid, até as ameaças abertas e sistemáticas de golpes de Estado com a participação de militares.
É certo que teremos pressão do novo-velho governo dos EUA contra as democracias comandadas por progressistas. O fortalecimento dos regimes autocráticos de extrema-direita está no horizonte, só que agora em um mundo muito mais complexo e destrutivo que o do século passado.
Basta um arroubo de fúria de um dos líderes fascistas para pôr a humanidade a perder. Tamanha é nossa distopia cotidiana, que me ponho a pensar que talvez, até nessa fatídica hora, pipocarão influencers anunciando e exibindo, em tempo real, nas redes, o mundo se despedaçando, o fim dos tempos.
Na minha ressaca reflexiva, pós-eleição estadunidense, parafraseio o astronauta Neil Armstrong: os eleitores nos Estados Unidos deram um pequeno passo em direção ao passado, mas um grande salto para o abismo.
Democracias morrem... por Valdemar Figueiredo
Trump volta ao poder tendo no currículo a promoção do caos.
Acordamos nesta quarta-feira (06) com a notícia que temíamos na noite anterior: o republicano Donald Trump venceu as eleições e se tornará novamente presidente dos Estados Unidos.
Como na campanha eleitoral de 2016, também em 2024 Trump conseguiu manipular a raiva do eleitorado e transformar sentimentos em votos.
Compartilho aqui na coluna algumas notas que escrevi ao folhear o livro “Como as democracias morrem”.[1]
Outsiders chegaram ao poder não só por conta dos seus talentos, mas também pela negligência do establishment político, que, diante dos sinais, não fecharam as portas. Isto é, o institucionalismo vigente não deu conta de novas realidades políticas.
Durante a campanha eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, e de Jair Balsonaro no Brasil, em 2018, a percepção de recessão democrática se intensificou.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt desnaturalizam a concepção de “América Democrática”. O estudo da cultura política norte-americana leva à conclusão de que os norte-americanos têm uma veia autoritária.
Os partidos políticos são a proteção contra líderes autoritários, demagogos e aventureiros. Daí a forte ênfase do livro no institucionalismo.
Se os sinais eram tão evidentes que o candidato Donald Trump não tinha apreço pelas garantias dos direitos constitucionais nem pelas normas democráticas, como pôde a liderança do Partido Republicano deixá-lo ir tão longe?
Mesmo com todos os alarmes, o establishment político não foi capaz de construir contenções para proteger as instituições democráticas. Colocaram o eleitoral à frente da ordem democrática.
Como autocratas minam sutilmente a democracia?
Cooptação do sistema judiciário e forças policiais. Blindagem dos questionadores e “arma legal” contra os oponentes. Comprar oponentes oferecendo posições públicas ou vantagens. Marginalizar a mídia de oposição. O silenciamento de vozes influentes (empresários, artistas, intelectuais e políticos) por cooptação ou intimidação.
Esquematicamente, governos eleitos no processo democrático e que depois assumem feições autoritárias, utilizam as seguintes estratégias: (1) capturar os árbitros; (2) tirar do jogo importantes adversários; (3) reescrever as regras do jogo para desequilibrar a disputa.
Hoje, imagino, ninguém duvida que o retorno do Trump a Casa Branca representa a delegação a um autocrata para reescrever as regras do jogo. O Trump, na versão 2024, soa como uma ameaça ainda maior.
Convencionalmente, a ideia-força das democracias estabelece que os rivais discordam, mas se toleram e concordam no sentido de respeitar as regras institucionais. Tolerância mútua a partir do reconhecimento da legitimidade do rival.
Na presidência nos Estados Unidos, mesmo na ausência de barreiras constitucionais, em regra, os presidentes foram comedidos não ultrapassando suas prerrogativas para governar. Esse fenômeno é representativo do uso e reconhecimento das “regras não escritas”.
O processo de erosão das regras democráticas (escritas e não-escritas) encontra em Trump a sua expressão mais nítida, mas o processo antecede a esse fenômeno.
Os precedentes históricos em que a disputa pelo poder no bipartidarismo estadunidense se dava no ambiente respeitoso aos adversários, mas sobretudo, respeito pelas regras (escritas e não-escritas), foram descontinuados.
Extremismos, polarizações radicais estimulando rupturas e interdição do diálogo. Exercício da política na lógica da ruptura em que o adversário é tratado como inimigo.
Ainda sobre a crescente animosidade na disputa partidária nos Estados Unidos, importante contextualizar a imersão dos cristãos evangélicos a partir do final dos anos 1970. Os dois partidos radicalizaram nas disputas de natureza racial e religiosa. “A intolerância se mostrava politicamente útil” (Ibid, p. 155).
“A democracia norte-americana não é tão excepcional quanto às vezes acreditamos que seja. Não há nada em nossa Constituição nem em nossa cultura que nos imunize contra colapsos democráticos (Ibid, p. 194).”
Embora reivindique a identidade de nação democrática, os Estados Unidos não se diferenciam de outras nações. A democracia não está consolidada, é algo que está sempre adiante e precisa ser buscada. É por isso que podemos falar de avanços e retrocessos democráticos nos Estados Unidos e nos outros países que se dizem democráticos.
O processo de aperfeiçoamento institucional exige vigilância constante e a capacidade de construir acordos em torno de interesses comuns.
Essas ideias são utilizadas para pensar os desafios impostos pela figura política do Trump. Para os autores, o governo Trump representava um retrocesso de severa inflexão das instituições democráticas norte-americanas.
Cogitar um pós-Trump em que a tarefa comum seja a recomposição democrática em duas normas fundamentais: tolerância mútua e reserva institucional.
Infelizmente, a esperança de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt foi adiada.
Trump é uma real ameaça à democracia e os seus eleitores sabem disso.
[1] LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018
Cupins alados e a vitória de Trump, por Dora Incontri
A curto prazo, não sou otimista. A imagem dos cupins me assalta. São milhares que saem em voo desesperado, como são milhões os extremistas do planeta em atitudes de agressão, mentira e retrocesso. Já a médio e longo prazo tenho esperança. O sofrimento está superlativo. Será ainda pior. Então, pela dor, haverá um despertar coletivo, de resistência ao mal
Cupins alados e a vitória de Trump
por Dora Incontri, no Jornal GGN
Nesta noite, ninguém dormiu aqui em casa. Milhares de cupins alados tentavam entrar pelas janelas e lá fora aglomeravam-se em torno das luzes da garagem e do jardim. E ao mesmo tempo, líamos a notícia de que Trump havia vencido a eleição nos EUA. Uma coincidência simbólica significativa essa, da invasão dos cupins e da nova ascensão do fascista!
Não que a candidata democrata fosse tão melhor que o republicano. Pouca coisa. Mas a vitória de Trump é o suficiente para piorar muito o cenário do mundo, com o avanço estratégico e galopante da extrema direita, toda assentada em Fake News, negacionismo científico, misoginia, lgtbfobia, ódio aos imigrantes, fundamentalismo religioso e outras barbáries. Qualquer um dos dois candidatos, porém, seria obediente aos interesses da indústria bélica dos EUA, à manutenção do status imperialista norte-americano, à economia neoliberal… Kamala apenas teria um pouco mais de verniz democrático.
O problema é que se fecha o cerco de uma direita internacional unida – sustentada por bilionários, como Elon Musk – que promete instalar com mais ódio e profundidade um estado de guerra permanente e global e ignorar solenemente a agenda climática do apocalipse. Em suma, a infelicidade geral do planeta, a ameaça de extinção dos seres vivos (no caso, nós, enquanto humanidade), a miséria, as secas, as enchentes, tudo sufocante e trágico.
A curto prazo, não sou otimista. A imagem dos cupins me assalta. São milhares que saem em voo desesperado, como são milhões os extremistas do planeta em atitudes de agressão, mentira e retrocesso. Nessa semana, tivemos a prisão de jovens nazistas na Alemanha, que planejavam um golpe; vimos extremistas espanhóis se valendo da tragédia de Valencia, para semear instabilidade no governo à esquerda. Os cupins alados são os reprodutores, que vão semear as colônias que depois destruirão jardins, plantas, gramados, prédios, que comerão livros e podem mesmo sobreviver à irradiação atômica. Uma praga!
Esse avanço está já muito concatenado e amarrado. Pouco provável que tenhamos um recuo proximamente. Também pelo fato de estarmos vivendo um momento de esquerda intimidada, acovardada, que flerta com o centro, com o neoliberalismo, sem se assumir nem mesmo como esquerda. Uma esquerda envergonhada, que se rende ao capital.
Precisamos, por isso, arregimentar forças, formarmos vínculos, comunidades, lideranças, assumirmos um discurso claro, de combate não só ao capital, mas a essa democracia liberal, que sempre acaba por desembocar no fascismo. Essa democracia elegeu Hitler, elegeu o nosso inominável, elegeu Trump por duas vezes. Manobrada pelos poderes econômicos e militares, essa democracia não é democracia de fato.
Como anarquista, também não me apetecem os autoritarismos de esquerda. Temos que avançar além dos limites da história que já se fez. O que estamos fazendo é repetindo o avanço do nazifascismo de 100 anos atrás. Sem a perspectiva de nenhuma revolução que se faça contrapeso à tomada das trevas.
Já a médio e longo prazo, tenho esperança. O sofrimento está superlativo. Mas será ainda pior. Então, haverá um despertar coletivo, de resistência, de força, de coragem. E conseguiremos atravessar os dias sombrios, para um novo amanhecer. Mas não fiquemos de mãos atadas e boca fechada, por enquanto. Façamos a cada dia nossa parte de militância, educação política e fortalecimento de nossos melhores afetos, de nossa melhor esperança. Até chegarmos na outra margem da história!
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
O fim da democracia liberal pela oligarquia escancarada, por Luis Felipe Miguel
Ou surge uma nova democracia ou vamos para um tipo de oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral
Do Jornal GGN:
O fim da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel
Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.
A vitória de Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original – operários e rednecks empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quando ao eleitorado negro e latino.
Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.
De fato, o Partido Democrata parece não saber o que apresentar ao eleitorado. Em 2020, Biden obteve uma vitória apertada – em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.
Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.
No começo do mandato, em gesto ousado, Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” – reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.
Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.
Quando a incapacidade física e mental de Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e – após um longo e desgastante processo – ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.
Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.
Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Harris fez uma campanha errática.
Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.
Do mandato de Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.
Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.
O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.
A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.
Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.
A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela – ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.
Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).