sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Pepe Escobar: Dançando ao som do Disco Inferno de Trump

 

A encenação supera a substância, pois cada sorriso e carranca são transformados em armas pela mídia para os espectadores da arena


Do Jornal GGN:

                                                               Gage Skidmore – Wikimedia Commons

Pepe Escobar: Dançando ao som do Disco Inferno de Trump

No final da década de 1970, Donald Trump, com pouco mais de trinta anos, arrogante como sempre e recém-casado com Ivana em 1977, podia ser visto entrando e saindo da agitada vida noturna de Nova York, especialmente na discoteca glamorosa e cheia de festas Studio 54.

Um matador de pista de dança certificado no Studio 54 foi Disco Inferno , do The Trammps , mixado pelo mago da dança Tom Moulton, lançado em 1976, dois anos antes do eterno favorito de Trump, YMCA — agora ressuscitado para o furor global como trilha sonora dos passos de dança de Trump 2.0.

Para todos os efeitos práticos, Trump é agora o DJ que está transformando o planeta inteiro em um Disco Inferno (“as pessoas estão gritando, fora de controle”), já que tudo é “tão divertido quando o boogie começou a explodir”. E o “boogie” de Trump explodindo em série não é menos do que o som amplificado sem parar de teatro, grandiloquência e caos descontrolado.

O espetáculo do som e da fúria de Trump — uma torrente de ordens executivas, sessões de fotos, truques de ilusionismo cuidadosamente roteirizados, manchetes de tirar o fôlego — significando… algo que vela a mesma velha mentalidade imperial, agora explodindo abertamente como um circo de três pistas armado. A encenação invariavelmente supera a substância, pois cada sorriso e carranca são transformados em armas pela mídia para os espectadores da arena fascinados e sanguinários.

O Sr. Disco Inferno venceu uma mini-guerra comercial com a Colômbia em apenas 10 horas, após postar uma imagem se retratando como um chefe da máfia no estilo Al Capone, usando terno risca de giz e chapéu fedora, ao lado de uma placa que diz “FAFO”, que significa “F**k Around and Discover”.

Ele vencerá a guerra por procuração na Ucrânia. Em 24 horas. Desculpe, em 100 dias. Desculpe, talvez mais. E “se eles não resolverem essa guerra logo, quase imediatamente, vou impor tarifas massivas à Rússia e impostos massivos e também grandes sanções”. Por quê? Porque, “você sabe, eu amo o povo russo”.

Ele se gaba de que os Estados Unidos “têm a maior quantidade de petróleo e gás” (não têm) e vão usá-los; ele “pedirá à Arábia Saudita e à OPEP para baixar os preços do petróleo” (eles dirão não); porque se “o preço do petróleo caísse, a guerra na Ucrânia terminaria imediatamente” (este definitivamente não é um caso de “causa e efeito”).

Ele fará “os maiores cortes de impostos da história dos EUA”. Os EUA podem garantir o fornecimento de GNL para a Europa (claro, com uma margem de lucro enorme); os EUA “não precisam do Canadá para fabricar carros, nem petróleo e gás canadenses”; as “enormes reservas de petróleo e gás” dos Estados Unidos permitirão que eles “se tornem uma superpotência industrial e a capital mundial da IA ​​e das criptomoedas”.

Enterrado no som e na fúria está o fato de que os EUA podem contar com um fluxo constante de gás para necessidades domésticas, mas isso se torna problemático quando se trata de exportações. Daí a obsessão pela expropriação – como no Império da Pilhagem: os EUA precisam muito de reservas iraquianas, sírias, venezuelanas, mexicanas, iranianas e russas. Porque mesmo se exportadas cuidadosamente, não há instalações de liquefação suficientes nos EUA para abastecer a UE. E é por isso que a Europa continua amplamente dependente do GNL russo e de outras fontes desde a sabotagem dos Nordstreams.

A satisfação… veio em uma reação em cadeia


Sim: há sangue chegando na pista de dança. Para entrar no ritmo real do Disco Inferno, podemos também nos concentrar nos três principais desafios para Trump 2.0: a guerra tecnológica contra a China; a guerra geoeconômica contra a Maioria Global; e a guerra por procuração na Ucrânia.

A irrupção da startup de tecnologia chinesa DeepSeek, sediada em Hangzhou, no cenário global foi algo para ficar para sempre, dizimando instantaneamente a estratégia americana de “quintal pequeno, cerca alta” para destruir os avanços tecnológicos da China.

O DeepSeek deve de fato ser visto como o “maior azarão” no domínio do Large Language Model (LLM) de código aberto, agora identificado de Jacarta a Wall Street e ao Vale do Silício como potencialmente a arma secreta de Pequim na guerra da IA ​​com os EUA. Até o Sr. Disco Inferno foi forçado a admitir a descoberta do DeepSeek como um “chamado para despertar”.

No cerne da questão, encontramos dois modelos conflitantes: hipercapitalismo neoliberal versus socialismo meritocrático.

O chefe da DeepSeek, Liang Wenfeng, é um geek fascinante. Seu nome (Wenfeng) significa “Vanguarda da Cultura”; um dos significados do seu sobrenome (Liang) é “ponte”. Então ele pode ser visto – como é na China – como o Sr. Ponte para a Vanguarda da Cultura (aqui está o Sr. Ponte em uma excelente entrevista , em chinês; por favor, use a tradução automática).

O Sr. Bridge fez um Sun Tzu espetacular sobre as sanções dos EUA sobre a exportação de unidades avançadas de processamento gráfico (GPUs), especialmente os chips avançados da Nvidia. Além disso, as empresas chinesas de Big Tech não podem competir com o poder de fogo financeiro das Big Tech dos EUA.

Então a resposta foi desenvolver modelos LLM poderosos e econômicos, sem acesso a literalmente centenas de milhares de chips Nvidia H100s. A DeepSeek declarou que eles usaram apenas 2.048 Nvidia H800s e apenas US$ 5,6 milhões para treinar um modelo com 671 bilhões (itálico meu) de parâmetros: isso é uma fração muito pequena do que a OpenAI e o Google gastaram para treinar modelos do mesmo tamanho.

E tudo foi desenvolvido localmente, por meio de dezenas de doutores das principais universidades chinesas — Pequim, Tsinghua, Beihang — e não por especialistas da Ivy League americana.

Então, em poucas palavras, a DeepSeek é uma empresa LLM 100% chinesa que foi capaz de criar modelos de código aberto e um aplicativo gratuito para download para todos os consumidores usarem. Isso por si só destrói o atual modelo de negócios de IA hipercapitalista neoliberal imposto pelos Estados Unidos.

As regras do jogo estão de fato sendo reescritas. Então qual é a resposta americana – previsível? Pedir mais sanções . Paralelamente, a DeepSeek foi forçada a suspender novos registros porque seu site sofreu um ataque cibernético massivo. Fale sobre o preço a pagar por eviscerar um enorme US$ 1 trilhão dos tecno-feudalistas reunidos na Bolsa de Valores de Nova York.

O Sr. Disco Inferno, é claro, apoia a mercantilização de todos os dados em comparação a dados gratuitos para todos. Logo antes do choque do DeepSeek, ele havia — teoricamente — garantido até US$ 1 trilhão dos sauditas, incluindo, em grande parte, investimentos para desenvolver IA e data centers nos EUA.

O novo jogo, claro, está apenas começando. A Stargate, joint venture da OpenAI com a SoftBank do Japão, também fortemente promovida por Trump, planeja gastar pelo menos US$ 100 bilhões em infraestrutura de IA nos EUA. Em paralelo, a xAI de Elon Musk está expandindo massivamente o supercomputador Colossus para conter mais de 1 milhão de GPUs para ajudar a treinar seus modelos de IA Grok.

Eu não conseguia o suficiente, então tive que me autodestruir

Agora, para a guerra contra a Maioria Global. O inestimável Prof. Michael Hudson é inflexível: em um ensaio absolutamente obrigatório, ele explica concisamente que “quando Trump prometeu a seus eleitores que os Estados Unidos devem ser os ‘vencedores’ em qualquer acordo comercial ou financeiro internacional, ele está declarando guerra econômica ao resto do mundo.

”A principal lição de Hudson: se as nações do Sul Global quiserem salvar suas economias “de serem mergulhadas na austeridade, inflação de preços, desemprego e caos social”, elas terão que “suspender os pagamentos de dívidas estrangeiras denominadas em dólares”.

É um trabalho em andamento: “Circunstâncias… estão forçando o mundo a romper com a ordem financeira centrada nos EUA. A taxa de câmbio do dólar americano vai disparar no curto prazo como resultado do bloqueio de importações por Trump com tarifas e sanções comerciais. Essa mudança na taxa de câmbio vai pressionar os países estrangeiros que devem dívidas em dólares da mesma forma que o México e o Canadá serão pressionados. Para se protegerem, eles devem suspender o serviço da dívida em dólares.

”Pode haver sérios problemas à frente para o Sr. Disco Inferno: “O teatro político America First de Trump que o elegeu pode destituir sua gangue, pois as contradições e consequências de sua filosofia operacional são reconhecidas e substituídas. Sua política tarifária acelerará a inflação de preços nos EUA e, ainda mais fatalmente, causará caos nos mercados financeiros dos EUA e estrangeiros. As cadeias de suprimentos serão interrompidas, interrompendo as exportações dos EUA de tudo, de aeronaves a tecnologia da informação. E outros países se verão obrigados a fazer com que suas economias não dependam mais das exportações dos EUA ou do crédito em dólar.

”O Prof. Hudson observa como Trump “pensa que a economia dos EUA é como um buraco negro cósmico, ou seja, um centro de gravidade capaz de puxar todo o dinheiro e o superávit econômico do mundo para si. Esse é o objetivo explícito do America First. É isso que torna o programa de Trump uma declaração de guerra econômica ao resto do mundo. Não há mais uma promessa de que a ordem econômica patrocinada pela diplomacia dos EUA tornará outros países prósperos. Os ganhos do comércio e do investimento estrangeiro devem ser enviados e concentrados na América.

”A UE, no Norte Global, é ainda mais vulnerável ao “America First”. Davos veio e foi com um mero piscar de olhos na tela, além do estranho banqueiro dos EUA se gabando do “pico de pessimismo” na Europa – ligado ao tsunami tarifário de Trump – e a chefe do Banco Central Europeu Christine “Olhe para o meu novo cachecol Hermès” Lagarde se perguntando se “não era pessimista” dizer que a Europa está enfrentando uma “crise existencial”.

A balança comercial EUA-UE está em um robusto 1,5 trilhão de euros por ano, incluindo fluxos massivos de investimentos atlantistas. Mas o que realmente importa é a bagunça financeira em nações individuais da UE, especialmente as duas primeiras, Alemanha e França, com sua Via Dolorosa sendo estendida ad infinitum quando se trata de seu custo de empréstimo impulsionado por cortes de impostos nos EUA.

Ouvi alguém dizer (Queimando, Queimando) queime essa mãe

E agora para a frente das Guerras Eternas.

O Sr. Disco Inferno, se passando por um humanitário para os cliques de câmera sem parar, pediu aos vassalos Jordânia e Egito para se tornarem de fato cúmplices na limpeza étnica, absorvendo até 1,5 milhão de pessoas de Gaza. O Artigo 49 da Quarta Convenção de Genebra explicitamente “proíbe a transferência forçada de pessoas protegidas para fora ou para dentro de território ocupado”.

Transformar um genocídio em uma oportunidade imobiliária em um “local fenomenal” ocorrerá paralelamente ao cortejo energético dos sauditas, depois que MbS em Riad prometeu na semana passada investir pelo menos US$ 600 bilhões – e até um possível US$ 1 trilhão – nos EUA.

A posição oficial saudita é sobre a necessidade de “investimentos estratégicos” para “estabilizar fluxos de receita de longo prazo” – sem mencionar a consolidação de gastos luxuosos em todos aqueles sistemas de armas feitos pelos EUA. Chame isso de um caso geopolítico clássico de Poder do Capital se fundindo com A Estratégia do Caos.

Dizer a Riyadh como dançar é uma coisa. Atrair o urso russo para a pista de dança é uma proposta completamente diferente.Como o famoso historiador francês Emmanuel Todd demonstrou brilhantemente , “o trabalho de Trump será administrar a derrota dos EUA contra a Rússia”. Essa é a decisão mais difícil de todas. O anátema supremo de Trump é ser visto como um perdedor.

Então, há apenas duas opções viáveis. 1. “Acabar com a guerra” sem realmente acabar com ela, apenas adiando-a para o fim da década, roubando uma vitória russa de fato por meio de uma grande manipulação e uma gigantesca campanha de relações públicas. 2. Continuar armando Kiev – especialmente por meio de vassalos da OTAN, enquanto se apresenta como um pacificador que não pode entregar por causa da Rússia. Essa será uma variante tóxica da atual “guerra até o último ucraniano”.

Esse tipo de truque não vai funcionar em Moscou. Putin e o Conselho de Segurança deixaram bem claras as condições para um fim real da guerra – não uma pausa para o rearmamento da OTAN.

Parâmetros principais: Ucrânia como um estado neutro e não membro da OTAN; membro da UE até 2030; Ucrânia não reduz o tamanho do exército; não reconhece oficialmente a soberania russa sobre os territórios conquistados; “algumas” sanções contra a Rússia são suspensas imediatamente após a conclusão do acordo de paz, algumas – ao longo de três anos – dependendo da conformidade da Rússia; todas as restrições à importação de energia russa para a UE devem ser suspensas; e por último, mas não menos importante, a questão espinhosa de um “contingente europeu de manutenção da paz”.

A CIA está alimentando Trump com todo tipo de desinformação sobre tudo, desde o estado real das coisas no campo de batalha até o estado da economia russa. Do jeito que está, os russos assistem a toda essa grandiloquência com apenas um sorriso irônico. Peskov: “Moscou ainda não recebeu notícias de Washington sobre um possível contato com Trump e Putin… A prontidão para a reunião permanece.”Até agora, nada. Jogo totalmente vazio. Talvez Trump, em segredo, esteja praticando seu golpe de mestre: “O calor estava ligado, subindo para o topo / Todo mundo indo forte, e foi aí que minha faísca esquentou”.

Hora de ir para a pista de dança.

(Simplesmente não consigo parar) quando minha faísca esquenta
(Simplesmente não consigo parar) quando minha faísca esquenta
(Simplesmente não consigo parar) quando minha faísca esquenta
(Simplesmente não consigo parar) quando minha faísca esquenta

Bem, pode acontecer que a faísca realmente quente seja detonada não pelo Sr. Disco Inferno, mas pelo parceiro de dança Vladimir Putin.

O plano autêntico ou não de 100 dias para um possível acordo que tem circulado nas câmaras de eco de Washington, Londres e Kiev aborda algumas probabilidades: um telefonema entre Putin e Trump nas próximas duas semanas ou mais; uma possível reunião, bilateral (Trump-Putin) ou trilateral (com o ator ucraniano; bastante improvável) até meados de março; início das negociações sobre os principais parâmetros; um possível cessar-fogo até a Páscoa; uma Conferência Internacional de Paz até o final de abril, mediada pelos EUA, China, alguns membros da UE e alguns do Sul Global; eleições presidenciais na Ucrânia no final de agosto.

Pepe Escobar – Analista geopolítico independente, escritor e jornalista

Reinaldo Azevedo – Trump, o da Riviera na Gaza irrigada de sangue, tem múltiplos negócios no Oriente Médio

 

Da Rádio BandNews FM:




Reinaldo Azevedo: Querem mudar Lei da Ficha Limpa só para beneficiar Bolsonaro? É inconstitucional

 

Da Rádio BandNews FM:




Bob Fernandes, em vídeo: Trump prega limpeza étnica, “Assumir Gaza”. Zambelli cassada. Para Tarcísio, Marçal & cia, covardia

 

Do Canal do analista político Bob Fernandes:




terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Religiosos extremistas: o estranho ecumenismo centrado na ambição do poder político. Artigo de Valdemar Figueredo (Dema)

 

Os pretensos "cristãos" ultraconservadores, "islamitas" radicais e "judeus" fundamentalistas ultraortodoxos de extrema-direita são contrários à modernidade, à democracia, à pluralidade, aos direitos humanos e ao Estado laico

Do ICL:


Religiosos extremistas: estranho ecumenismo político

Artigo de 
Valdemar Figueredo (Dema)

As profecias sobre o fim ou arrefecimento do religioso na modernidade ocidental, visivelmente, malograram. Além do fenômeno religioso estar bem situado nas sociedades modernas, ganha feições radicais, como integristas católicos, fundamentalistas protestantes, islamistas e ultraortodoxos judeus.

Para essas vertentes religiosas radicalizadas, dissidentes, a sociedade moderna seria uma sociedade “sem Deus” que se converte (segundo eles) numa sociedade “contra Deus”.

Jean-Louis Schlegel[1] ao distinguir os quatro grupos que se colocam nos extremos, permite-nos perceber o quanto se tocam na vida pública. São diferentes no que diz respeito às doutrinas e crenças religiosas, mas bem parecidos nas reivindicações políticas no Estado.

Islamistas

O Estado islâmico que idealizam se guiaria pela lei islâmica. O que serve para o sujeito religioso serviria para a vida civil, social, cultural e econômica. A vida social, para os islamistas, seria expressão da sua fé. O Alcorão ditaria a regra de fé e conduta. Legislação e legisladores obedeceriam a lei maior, vocalizada pelos religiosos devidamente legitimados por Deus.

Integristas católicos

Saudosos de uma ordem social católica. Algo que aconteceu em alguns contextos nacionais ao longo da Idade Média. O poder legitimado por Deus sob a tutela do poder eclesiástico verticalizado e “divinamente” hierárquico. Esse espírito, nomeado como integrismo católico, esteve presente na Igreja durante o século XIX enquanto reação contrarrevolucionária na França. Fundamentalmente, contra a modernidade. Contra a separação Igreja e Estado. Para os integristas, a democracia não é algo a ser vivido no âmbito interno da Igreja, muito menos na esfera externa, no Estado. Neste sentido, coincide com os islamistas.

Fundamentalistas protestantes

Embora não condenem em si as instituições democráticas ou recusem o expediente da alternância de poder, reivindicam a condição de Moral Majority. Isto é, são adeptos de certa ditadura da maioria. Usam a “democracia procedimental” para impor os seus valores ao restante da sociedade. Como se os “infiéis” ao serem regidos pelos “fiéis” fossem, ainda que a contragosto, também beneficiados. Expoentes nos Estados Unidos desde o final da década de 1970, proponentes de uma agenda política contra o aborto, contra a emancipação das mulheres, contra os direitos dos homossexuais, pelas preces nas escolas, pela leitura bíblica nas instituições públicas, pela posse e porte de armas pelos cidadãos. Creem no patriotismo enquanto expressão de povo eleito por Deus para abençoar outras nações. Todos esses elementos reunidos serviriam como antídoto contra o comunismo e a ascensão da esquerda, supostamente ateia.

Judeus ultraortodoxos

Muito do que fora dito sobre islamistas, integristas e fundamentalistas aplica-se também aos ultraortodoxos, guardadas as devidas proporções. Parcela dos ultraortodoxos são afeitos aos guetos como preservação das tradições e proteção das ameaças da modernidade. Mas, entre eles, há quem seja favorável à conquista do poder do Estado de Israel para estabelecer uma teocracia. Para as favas com a democracia ocidental, o governo dos sacerdotes estabeleceria a lei sem apartar o Estado da religião. O pluralismo celebrado pelo Estado democrático de direito, neste caso, não se aplicaria.

xxx 

Apoiados na lógica causa e efeito, os extremistas religiosos alegam que os fracassos da modernidade têm relação direta com a ausência de Deus. Como se alijar Deus das decisões centrais na política e o alienar da vida social resultasse em mazelas naturais, miséria social e econômica, vícios e desvio moral. Todas as insatisfações com a modernidade são postas na conta da arrogância humana que se colocou no lugar de Deus, dizem.

No Brasil, 86,8% da população se declarou cristã. Em plena modernidade tardia ou pós-modernidade, muito longe das previsões de ocaso do religioso, no Brasil, conta-se mais templos religiosos do que hospitais e escolas juntos (IBGE, 2022).

Assistimos a ascensão na República Federativa do Brasil de religiosos extremistas. Pouco afeitos a pluralidade, variações de integristas católicos e fundamentalistas protestantes atuam despudoramente num estranho “ecumenismo” político.

[1] SCHLEGEL, Jean-Louis. A lei de Deus contra a liberdade dos homens. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Valdemar Figueredo (Dema)

Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

O mundo e o Brasil na era da Inteligência Artificial, por Luís Nassif

 

É provável que nem todos os investimentos sejam realizados ou metas cumpridas. Mas a relevância do PBIA está no mapeamento de todo o setor

                                                                        Júlio César Silva – MDIC


No início do século 21 o Brasil tornou-se uma potência em software livre – desenvolvido por comunidades de desenvolvedores em código aberto. Houve grande impulso no início do governo Lula, em torno do sistema operacional Linux e de vários aplicativos, inclusive substituindo o campeão Office, da Microsoft. Tudo isso ancorado na adoção de sistemas abertos pelo setor público.

Ainda hoje, corporações como o Ministério Público Federal utilizam programas de código aberto em seus notebooks funcionais. O Banco do Brasil utilizava em suas agências, mas passou a substituir por sistemas fechados.

O lobby das empresas de tecnologia sempre foi muito forte e acabou reduzindo o espaço para o software livre. 

Agora, com o DeepSeek, o movimento ganha um novo fôlego. A empresa chinesa desenvolveu uma tecnologia barata e abriu o código para quem quiser. A Inteligência Artificial (IA) sai do controle das grandes corporações e se democratiza, justo no momento em que o Brasil preparou seu plano de IA, apresentado na 5a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.

O plano se baseia em duas âncoras.

A primeira, a regulamentação do FNDCT (Fundo Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação), proibindo o contingenciamento de seus recursos, conforme lei aprovada pelo Congresso Nacional. A segunda, a viabilização da captação de crédito para a Finep (Financiadora de Estudos e Pesquisas) e para o BNDES, por meio do Mais Inovação, a taxas de juros favorecidas.

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial 2024-2028 trabalha com cinco eixos principais:

Infraestrutura e Desenvolvimento de IA – Investimentos em supercomputadores, redes de alta velocidade, energias renováveis e software nacional para IA.

Difusão, Formação e Capacitação em IA – Educação e treinamento de profissionais para suprir a demanda do mercado de IA.

IA para Melhoria dos Serviços Públicos – Aplicação de IA para melhorar serviços de saúde, educação e segurança pública.

IA para Inovação Empresarial – Incentivo ao desenvolvimento de IA para aumentar a competitividade da indústria e do comércio.

Apoio ao Processo Regulatório e de Governança da IA – Criação de diretrizes para garantir o uso ético e seguro da IA no Brasil.

Eixos 1 – A infraestrutura

O PBIA prevê a aquisição de supercomputadores de alto desempenho e a ampliação da capacidade de processamento através da descentralização dos recursos tecnológicos pelo país. Ponto importante será a sustentabilidade energética, já que o processamento consome grande quantidade de energia.

Outro ponto relevante é a criação de um ecossistema de dados e software, facilitando a montagem de consórcios de pesquisa entre os diversos institutos.

Os recursos ainda são pequenos para o desafio: R$ 3,0 bilhões para a infraestrutura e R$ 500 milhões para sustentabilidade e energias renováveis para IA.

Os sistemas de software livre terão uma injeção de recursos de R$ 1,4 bilhão, com a criação de curadoria e disponibilização de conjuntos de dados nacionais para treinamento da IA em português.

Prevê também a criação de um modelo de IA fundacional em português.

Finalmente, o Programa de Pesquisa e Desenvolvimento prevê R$ 873 milhões para a criação de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia voltados para IA, e cooperação internacional com América Latina, Caribe e África.

Eixo 2 – a capacitação

Serão R$100 milhões para campanha nacional de conscientização sobre IA para a sociedade. Inclui a criação da Olimpíadas Brasileira de IA.

Haverá R$ 548,5 milhões para a criação de cursos de graduação e disciplinas em IA em universidades e faculdades, a expansão do ensino técnico-profissionalizante, bolsas de estudo para graduação, mestrado e doutorado em IA, incluindo bolsas no exterior. E Laboratórios Interdisciplinares de Formação de Educadores (LIFE).

A meta é criar 5 mil vagas em cursos de graduação de IA em 3 anos, oferecer 100% das vagas em IA e ciência de dados no FIES, criar e ampliar 47 laboratórios LIFE e 1.200 bolsas para pesquisadores focados no desenvolvimento de soluções de IA.

Serão investidos também R$ 500 milhões em uma plataforma nacional de cursos online gratuitos de IA e parcerias com empresas e Sistema S para formação técnica em IA. 

A meta é capacitar 20 mil profissionais no primeiro ano, 30 mil no segundo e 50 mil no terceiro. E fornecer 250 mil vagas para formação técnica em IA até 2028.

Eixo 3 – serviços públicos

A previsão é de investimentos de R$1,76 bilhão para a modernização e digitalização dos serviços públicos através de IA.

R$ 59 milhões serão aplicados em um núcleo de IA do governo federal, que criará uma plataforma de IA para desenvolvimento e implementação de modelos nos serviços públicos, além de testar soluções, antes da implementação em larga escala.

As metas são de capacitação de 115 mil servidores, estruturação de 25 projetos estratégicos de IA (devidamente identificados) e 25 projetos-pilotos de experimentação com IA até 2026,

Ponto relevante é o investimento de R$ 1,4 bilhão na criação de uma Nuvem Soberana – para armazenar dados governamentais -, o estabelecimento de uma política de governança de dados públicos, e de sistemas de privacidade e segurança da informação.

A meta é catalogar 2 mil conjuntos de dados do governos federal até 2027 e economizar R$ 6 bilhões com a eliminação de exigências burocráticas.

Mais R$ 259 bilhões serão aplicados no Programa de Soluções de IA para Serviços Públicos, implementando soluções de IA em pelo menos 10 órgãos por ano.

Eixo 4 – inovação empresarial

São previstos R$ 13,79 bilhões em investimentos, R$ 4,49 bilhões dos quais para a criação de datacenters nacionais, apoio à cadeia produtiva, incentivo a startups, fomento à adoção de IA por micro e pequenas empresas e inserção de mestres e doutores em IA em empresas privadas.

R$ 2,3 bilhões irão para datacenters sustentáveis no Norte e Nordeste. Haverá a expansão da Rede Embrapii (uma parceria Ministério de Ciência e Tecnologia e Confederação Nacional da Indústria) para 35 unidades até 2026. R$ 400 milhões irão para apoio a startups de IA. E R$ 9,39 bilhões para desenvolvimento de soluções aplicadas à indústria, em alinhamento com a NIB (Nova Indústria Brasil).

O mapa da mina

É provável que nem todos os investimentos sejam realizados, nem todas as metas cumpridas. Mas a relevância do PBIA está no mapeamento de todo o setor, na definição clara das linhas de ação, na visão sistêmica para a implantação da política.

Leia também:

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Alguns tópicos sobre as implicações das novas descobertas no mundo da física quântica para o conhecimento de poucos humanos...

  Implicações filosóficas da física quântica... 

Do Canal Fatos Desconhecidos (apenas para refletir):

Imagine um problema tão complexo que levaria milhares de anos para todos os computadores da Terra solucionarem juntos. Agora, imagine uma máquina capaz de resolvê-lo em apenas um segundo. Essa é a promessa do novo computador quântico do Google.



Eduardo Bueno: AMÉRICA É UMA FRAUDE

 

Do Canal de Eduardo Bueno - Buenas Ideias:

AMÉRICA, FRUTO DO FAKE - Tem gente que anda querendo trocar o ancestral nome Golfo de México para Golfo da… América! Mas claro que o cosplay de Doritos que propôs isso não sabe o q quer dizer nem uma nem outra palavra. Mas claro que Buenas Ideias tudo sabe e tudo vê… Venha tomar sua decisão conosco.



Mídia Internacional: A Guerra Comercial Começou, Trump x Mundo

 

Do Canal de Julien Jubert:

A guerra econômica entre China e México, Canadá versus EUA envolve tarifas, incentivos industriais e disputas comerciais. Washington pressiona parceiros do T-MEC para reduzir laços com Pequim, enquanto China investe no México para driblar barreiras. Canadá enfrenta tensões com os EUA por subsídios e políticas industriais divergentes, afetando cadeias produtivas. E um grande foco, tarifas… Neste vídeo veremos a mídia internacional falando da guerra tarifária entre EUA X CHINA, Canadá, México. Tarifas do TRUMP



Análise Politica com Luis Nassif pelo ICL Notícias: Trump, geopolítica, Brasil...

 

Do ICL Notícias a A Voz Trabalhadora:




sábado, 1 de fevereiro de 2025

O nazifascismo entrou em cena, por Dora Incontri

 Eis um regime que se anuncia fascista, 100 anos depois da ascensão de Mussolini na Itália, que passou à condição de Duce, no ano de 1925.




O nazifascismo entrou em cena

por Dora Incontri, no Jornal GGN:

Não há como normalizar o que se apronta no mundo. Não há como relaxar diante do cenário que se põe com a ascensão de Trump, respaldado pela extrema direita mundial, com a comunicação dos donos das big techs, que terão terreno livre para manipular as massas. Não há como ignorar e achar desculpas para a saudação nazista de Elon Musk. Estamos diante de um regime que se anuncia fascista, exatamente 100 anos depois da ascensão de Mussolini na Itália, que assumiu o cargo de Primeiro-Ministro em 1922, mas passou à condição de Duce, no ano de 1925.

Figuras caricatas todas essas que esposam a prática da extrema direita: cheios de caretas, frases de efeito, estética duvidosa, arroubos autoritários e, sobretudo, supremo desprezo por qualquer civilidade, por qualquer respeito humano. Logo no primeiro dia de governo, Trump já mostrou a que veio: perseguirá imigrantes, estimulará a pena de morte nos estados, cancelará a cidadania das crianças nascidas nos EUA, filhas de imigrantes. Já retirou o país da OMS e do acordo climático de Paris. Na posse mesmo, baixou diversos decretos absurdamente discriminatórios e autoritários. Nem me dou ao trabalho de nomear todos. Apenas registro o assombro, o lamento, a indignação e a perspectiva sombria que nos bate à porta.Se o Duce e logo em seguida o Führer puseram fogo no mundo e desencadearam a Segunda Guerra Mundial, agora é a maior potência militar do planeta que assume descaradamente a postura nazifascista. Aliás, a potência que já usou a bomba atômica, a única até agora a cometer esse crime contra a humanidade.

É claro que temos o dever de entender a história e saber que a Segunda Guerra não foi esse duelo entre a liberdade e o nazifascismo. Teorias e práticas eugenistas, por exemplo, já eram adotadas nos EUA antes da ascensão do nazismo na Alemanha, em relação à população afrodescendente. Tivemos até no Brasil, defensores de tais descalabros eugenistas, como o autor que li a infância inteira, Monteiro Lobato. Empresas americanas como a IBM e a Coca-Cola (com a criação da Fanta na Alemanha nazista) além de inúmeras alemãs, que incluíam a Volkswagen, a BMW, a Bayer, a Basf e outras, sustentaram e apoiaram a insanidade nazista.

Digo isso para demonstrar que é o capital que sustenta o totalitarismo de direita e que não houve uma disputa entre o puro bem e o detestável mal, na Segunda Guerra. Estavam todos mais ou menos implicados na responsabilidade do sangue derramado. E no outro polo da luta, estava Stalin, também ditador sanguinário, em que pese o mérito de ter ajudado a derrotar o nazismo.

Encerrada a Segunda Guerra, inicia-se a polaridade da Guerra fria e os EUA se constituem como um império que semeia o tempo todo, guerras, ditaturas pelo mundo afora, inclusive a nossa, a brasileira, de que agora os norte-americanos estão assistindo um pequeno recorte no filme Ainda estou aqui. Mas sabemos que com o analfabetismo político que reina por lá, ainda mais forte nesses tempos de zumbis das mídias eletrônicas, a maioria absoluta do povo não tem ideia do papel do governo dos EUA nas ditaduras ferozes da América Latina, incluindo o treinamento de torturadores.

A tão propalada “maior democracia do mundo” foi a patrocinadora de inúmeras ditaduras no mundo. E pior, que democracia sempre foi essa, que desde o início excluiu os negros, que só tem dois partidos (que têm diferenças muito pequenas entre si), que nunca promoveu programas de saúde popular, que mantém um verdadeiro campo de concentração, como a prisão de Guantánamo?

Agora então, o que restava de uma esquerda liberal – que pelo menos se empenhava pelos direitos civis internos, mas com pouquíssimos representantes que se manifestavam por exemplo contra o genocídio da Faixa de Gaza, que os EUA patrocinaram, apoiando largamente Israel – essa tímida facção de ideias um pouco mais à esquerda, Trump fará tudo para calar, para imobilizar, impondo-se com a maioria do Congresso e a maioria da Suprema Corte.

O que havia de arremedo de democracia acabou.

E nós, como ficamos? Em alto risco, porque temos os lambe-botas dos EUA, os simpatizantes do imperialismo yanque, que desejam alinhar os ponteiros da política brasileira com Trump. O clã dos Bolsonaro, que sofreu já todas as humilhações feitas por Trump (a última foi o fiasco de não serem aceitos para a posse do dito cujo); Tarcísio que celebrou a ascensão do novo governo e é da mesma cepa que Jair e Donald, e outros representantes dessa extrema direita tupiniquim, com complexo de vira-lata, que se volta feroz contra os interesses do Brasil e contra os próprios cidadãos brasileiros.

O risco é nosso, o risco é mundial. Um risco quase certo de acontecer o pior. Governos de extrema direita em vários países, alinhados na barbárie e na destruição.

Por tudo isso, não podemos tratar o tema com naturalidade, como a mídia corporativa tende a fazer. Como aliás, fizeram com Hitler e com Mussolini.

Estejamos em alerta máximo, em posição de resistência coletiva, de lucidez aguda, com esperança de que tenhamos os meios de virar mais essa página trágica da história, que certamente ainda vai nos causar muito choro e ranger de dentes.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

Rubens Paiva era torturado por sádicos assassinos da ditadura militar ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, por Urariano Mota

 

"Em depoimento anexado pelo Ministério Público à denúncia, Marilene Franco disse ter ouvido os gritos de Rubens Paiva, que era torturado em um salão ao lado de onde ela estava. Para abafar os gritos, um rádio foi ligado em alto volume. Tocavam ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos…”

Do Jornal GGN:

As razões dos torturadores, que mataram um homem ao som de canções com extrema perversidade, não cabem no samba curto de um artigo.



Rubens Paiva era torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos*

por Urariano Mota

Hoje pela manhã, enquanto seguia para um médico, disse à senhora  Francêsca:

– Não me sai da cabeça esta composição de Mozart – e tentei cantarolar, ou assassinar com a voz esta obra-prima

E continuei:

– Isso é bem melhor que Roberto Carlos, não é?

Ao que ela me respondeu:

– É. Aí já seria uma tortura.

Aquilo me ficou. Depois, enquanto esperava no consultório, me lembrei de que eu já havia escrito sobre Roberto Carlos e a tortura nos anos da ditadura brasileira. Ao chegar em casa, revi o texto de 2014, que volta à tona com o justo sucesso do filme “Ainda estou aqui’. Aos trechos.

Em mais de uma oportunidade já escrevi que podíamos escrever a história política do Brasil a partir do som da sua música popular. Assim foi, por exemplo, em páginas de Soledad no Recife, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. (Ao que acrescento agora em 2025: assim é com o romance “A mais longa duração da juventude”, onde há discussões homéricas sobre os grandes compositores da música popular).

Mas jamais poderia imaginar, e aqui mais uma vez a realidade supera o imaginado, que a música popular fosse usada do modo mais vil, como o noticiado na imprensa dos últimos dias.

A informação consta de um depoimento escrito pela professora Cecília Viveiros de Castro, que esteve presa nas mesmas instalações que Rubens Paiva. Cecília estava então com 48 anos. Ela foi detida ao voltar de uma visita ao filho, Luiz Rodolfo, exilado no Chile

Com ela estava Marilene Corona Franco, cunhada de seu filho. As duas traziam cartas de outros exilados para suas famílias.  No prédio da Aeronáutica, elas ouviram gritos de um preso que estava sendo interrogado. ‘Era a primeira vez que constatava a existência dos horrores da tortura, tão negados pelo governo’, diz.

Em depoimento anexado pelo Ministério Público à denúncia, Marilene Franco disse ter ouvido os gritos de Rubens Paiva, que era torturado em um salão ao lado de onde ela estava. Para abafar os gritos, um rádio foi ligado em alto volume. Tocavam ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos…”

A notícia não informa, talvez em nome da objetividade, que o ex-deputado Rubens Paiva foi morto ao som de Roberto Carlos por diferentes razões na escolha das músicas. Tentemos um esboço aqui. Roberto Carlos, o Rei, veio na contramão, contrário à rebeldia política, em real estado de conformismo.

A “maioria silenciosa”, nela incluídos os jovens mais alienados do mundo, os pequeno-burgueses que apenas queriam uma razão de se dar bem na vida, em lugar de uma razão de viver, acompanhavam Roberto Carlos na canção “Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui / Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui … / Quem poderá dizer o caminho certo / É você, meu Pai / Jesus Cristo! Jesus Cristo!….”

As razões dos torturadores, que mataram um homem ao som de canções com extrema perversidade, não cabem no samba curto de um artigo. As pessoas nascidas nos últimos anos não sabem que no tempo da ditadura a música era também uma realização política, a música era uma concreção, o mais próximo de uma arma possível. O seu lugar na vida e no imaginário da juventude rebelde era um ato inalienável de combate.

Sei que os fãs do “Rei” vão dizer: “Roberto Carlos não tem culpa dos crimes da ditadura”. É verdade. Mas, por coincidência, a música de Roberto Carlos acabou por ser uma das mais representativas desses anos. O Rei não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas que realçavam o mundo ordenado pelo regime. Entre outras, o Rei compôs a canção que foi um hino, um gospel de corações vazios, um som sem fúria de negros norte-americanos. O Rei orou “Jesus Cristo, eu estou aqui”. Que profunda ironia para o nome do filme “Ainda estou aqui”.

É uma perversa vitória do real que esse crime expresse tão cruel o valor da música popular no Brasil. Roberto Carlos e Rubens Paiva, numa estranha associação que eles não queriam.

*Vermelho Rubens Paiva era torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos – Vermelho

Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.

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