quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Em Outras Palavras: O que torna nossas metrópolis insustentáveis - o poder político e econômico das empreiteiras

Reportagem sobre uma praga brasileira. Empreiteiras financiam partidos, dirigem Orçamento das cidades e as moldam segundo seus próprios interesses

Que torna nossas metrópoles insustentáveis





Extraído do site Outras Palavras


Por Thales Schmidt e Vinicius Martins | Imagem: Chensiyuan

“A liberdade da cidade é muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações”. David Harvey no artigo “A Liberdade da Cidade” – publicado no livro Cidades Rebeldes – reflete que, além de usufruir de bens e serviços indispensáveis à vida, a população urbana deve ter o direito de decidir os rumos do desenvolvimento das cidades.

Desde 2001 algumas ações do governo federal têm apontado nessa direção: aplicação do Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), criação do ministério das Cidades, obrigatoriedade da elaboração de Planos Diretores Participativos para municípios com mais de 20 mil habitantes – e a implantação do programa Minha Casa, Minha Vida.

O objetivo dessas iniciativas é definir a função social da cidade e da propriedade, além de buscar soluções para problemas crônicos causados pelo crescimento desordenado e excludente das áreas urbanas. Os principais atingidos desse quadro são as populações de baixa renda, afetadas, principalmente, pela falta de acesso aos equipamentos e serviços públicos essenciais como praças, escolas, hospitais, transporte e segurança.

Apesar da criação desses mecanismos de regulação, a direção do solo urbano ainda não pertence aos interesses da sociedade civil. O mercado imobiliário e as empreiteiras são os responsáveis por determinar a finalidade da cidade e por expor a crise prática da legislação de terras nos municípios.

A disputa pela cidade

“O que está comandando as cidades não é interesse público, não é interesse coletivo, não é justiça social, não é sustentabilidade. Tudo isso é discurso, todas as grandes cidades brasileiras têm ótimos planos diretores, a nossa legislação é muito avançada, conhecimento técnico nós temos, mas nós estamos perdendo na correlação de forças, estamos levando uma surra na disputa com aqueles que têm lucro com as cidades, com o crescimento das cidades”, analisa Ermínia Maricato, professora titular do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, e autora da proposta de criação do ministério das Cidades do Brasil.


Quase um quarto, 22%, ou 1,39 milhão dos 6,2 milhões habitantes do Rio de Janeiro moram em aglomerados subnormais, as chamadas favelas

O Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstra que 84% da população brasileira vivem em áreas urbanizadas. Estima-se que existam no país cerca de 6329 aglomerados subnormais – ou favelas -, de acordo com o último Censo do IBGE. O número engloba um total de 3.224.529 domicílios e 11.425.644 pessoas.

Segundo Juliano Costa Gonçalves, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Especulação imobiliária na formação de loteamentos urbanos: um estudo de caso, a prática acarreta em conflitos na organização espacial das cidades. “O processo de urbanização costuma ser bastante caro, como levar saneamento e energia a novos bairros, por exemplo. Quando essas áreas ficam presas no processo de especulação, aumenta-se a área urbana. Então, você obriga que algumas pessoas morem nas regiões mais periféricas da cidade, que muitas vezes não têm bons processos de urbanização nesses lotes”, ressalta Gonçalves.

O pesquisador lista outras consequências da especulação, como a falta de acesso à infraestrutura pública básica: iluminação, ruas asfaltadas, escolas e hospitais. No rol de problemas produzidos pelo mercado de terras estão os vazios urbanos e o alargamento do tecido urbano, a segregação sócio-espacial – provocada pela alta no preço dos aluguéis – e complicações na configuração do transporte público. Ou seja, os pobres não frequentam os mesmos parques, escolas e hospitais que os ricos.

Gislene Pereira, professora da Universidade Federal do Paraná, analisa que esse processo é cíclico dentro do sistema capitalista, portanto está presente em outros países do globo. “A cidade que temos é resultado da forma pela qual ela é produzida, ou seja, dentro das regras de produção de um sistema capitalista. Esse modelo de cidade, portanto, é o mesmo em todos os países capitalistas. E os problemas – segregação espacial, periferia, carência de infraestrutura, etc – estão presentes em todas as cidades capitalistas; não é, portanto, uma exclusividade do Brasil”, explica.

Para lidar com déficit de habitação no país, o governo federal criou em 2009 o Minha Casa, Minha Vida. Atualmente, o programa encontra-se em sua segunda fase e promete entregar mais 1,6 milhões de moradias até o fim do ano. No entanto, o projeto costuma receber críticas de especialistas em urbanismo. “O maior déficit habitacional no Brasil está na faixa de 0 a 3 salários mínimos, faixa que praticamente não é atendida pelo programa Minha Casa Minha Vida. Nessa situação, o deficit deve aumentar, como efetivamente está ocorrendo”, aponta Gislene Pereira.

Gislene complementa que: “o problema do deficit habitacional deveria ser enfrentado de modo articulado com a questão do uso da terra urbana. Não falta terra, o que falta, de fato, é terra urbanizada a preço acessível. Dessa forma, somente se pode pensar em atender às demandas por habitação se houver uma política de controle do uso do solo de forma a garantir a oferta de terra urbanizada a preços acessíveis para a população de menor renda”.



O aumento dos valores dos contratos de venda e aluguel em São Paulo costuma ser maior do que a inflação do mesmo período. Em 2010 – um ano após o lançamento do Minha Casa, Minha Vida – o valor do aluguel mais que dobrou em comparação com a inflação do período. Fonte: Índice Fipe Zap

Empreiteiros: os senhores da cidade
O Minha Casa, Minha Vida é um dos programas dos programas federais que vêm garantindo uma poderosa fonte de recursos para as empreiteiras nacionais – empresas responsáveis por empreendimentos vitais para a cidade como obras rodoviárias, túneis, pontes e até a construção dos edifícios e casas em que habitamos. Nesse setor, a unidade usada para calcular projetos, valores e lucros é a dos bilhões.
Boa parte do fluxo de dinheiro que alimenta o caixa dessas empresas vem do Estado brasileiro por obras dos governos federal e estaduais. Segundo levantamento da revista O Empreiteiro, referência do setor de engenharia, em 2013 a União foi responsável por investir R$ 12,416 bilhões em obras e serviços por meio de licitações públicas; todavia, o valor ainda é menor que o investido pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco no mesmo período: R$ 18,415 bilhões.
Os eventos esportivos sediados pelo Brasil – Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro – têm garantido contratos gordos para o setor. De acordo com reportagem da Agência Pública, os dez maiores contratos dos dois eventos chegam a quase R$ 30 bilhões. Programas federais com grandes investimentos em obras de infraestrutura econômica e social, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – iniciado em 2007 e já na segunda edição – também fazem a festa das corporações.
O casamento entre poder público e empreiteiras, contudo, é de longa data. O historiador Pedro Campos, professor da Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro, analisou a formação das principais empreiteiras brasileiras durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) em sua tese de doutorado. “Os empreiteiros já eram importantes no país antes da ditadura, eles crescerem muito na década de 50, em especial nas obras de Juscelino Kubitischeck (1956-1961). Naquele período eles começam a se organizar em nível nacional, criaram organizações de empreiteiros e a partir dessas organizações passam a ter um papel político e uma atuação junto ao aparelho de Estado muito decisiva”.
Durante o regime ditatorial, a situação melhorou ainda mais para as empreiteiras nacionais. Por meio do decreto 64.345, o militar e então presidente Artur da Costa e Silva (1964-1966) determinou que obras de infraestrutura no Brasil só poderiam ser feitas por empresas nacionais. A medida ajudou o estabelecimento das empreiteiras brasileiras em áreas com forte concorrência internacional, como a construção de hidrelétricas, engenharia industrial, de petróleo e outras obras urbanas. A decisão fez com que as empreiteiras nacionais fossem as únicas beneficiadas pelos grandiosos projetos desenvolvimentistas dos militares. A restrição a empresas estrangeiras só foi revertida em 1991 pelo presidente Fernando Collor (1990-1992).
“Existia um cenário ideal para o desenvolvimento dessas empresas, tanto é que elas se desenvolveram de maneira bastante expressiva ao longo do regime. E no final da ditadura o que a gente tinha eram grandes conglomerados econômicos, aquelas empreiteiras que já eram grandes e importantes na ditadura no final eram multinacionais que atuavam em vários lugares do mundo”, aponta Pedro Campos.
Evolução da receita bruta das empreiteiras nacionais mostra consolidação da baiana Norberto Odebrecht como a principal empresa do setor, única a ultrapassar R$ 10 bilhões de receita bruta em 2013. Fonte: O Empreiteiro
As grandes empreiteiras nacionais são superlativas em todos os seus números. A maior delas, a construtora baiana Norberto Odebrecht, teve em 2013 uma receita bruta de R$ 10,149 bilhões e conta com mais de 125 mil funcionários. Segundo ranking das maiores empresas do setor realizado pela revista O Empreiteiro, 40% da receita no período se deve a contratos com o setor público.
Levantamento do Estadão Dados apontou que a mesma Odebrecht foi responsável por doar R$ 47,7 milhões para a campanha eleitoral de 2014. Outra gigante do setor, a Andrade Gutierrez doou R$ 93,6 para o mesmo pleito. Ainda assim, nenhuma doadora supera o grupo pecuarista JBS, com R$ 357,3 milhões aplicados. Na legislação atual, as empresas podem doar até 2% do faturamento bruto do ano anterior ao da eleição.
O fim das doações empresariais foi um dos pontos das mudanças políticas votadas pela Câmara dos Deputados. Embora a extinção das doações de empresas tenha sido aprovada em primeira votação, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) conseguiu reverter a decisão por meio de manobra regimental no dia seguinte; procedimento repetido durante a votação da redução maioridade penal. Os temas ainda serão votados novamente por Câmara e Senado.
“O grande problema urbano no Brasil hoje é o financiamento de campanha. Está tudo absolutamente comprometido com o financiamento de campanha. Nas nossas grandes cidades, e pequenas e médias também, grande parte da orientação do crescimento urbano é dada por interesses de proprietários de uma elite local, das grandes empreiteiras, do capital imobiliário e dos parlamentares e prefeitos de plantão. É assim que se dá a decisão, por exemplo, de ao invés de construir metrô, você construir viaduto, ponte, túnel, para transporte rodoviário e não transporte sobre trilho”, indica Erminia Maricato.
O historiador Campos também aponta o financiamento privado como um grande problema do sistema político atual: “Se uma empresa que presta serviços ao Estado pode (financiar campanhas), é obvio que isso vai dar problemas. Se uma empreiteira que faz obra pública para um governo pode financiar campanha, isso é realmente algo que vai gerar problemas, distorções e uma rede de propinas”. Para o historiador, as doações são uma espécie de “investimento” para conquistar “protagonismo e poder politico”.
Desde 2014, a Polícia Federal e Ministério Público Federal investigam uma rede de corrupção e distribuição de propinas na Petrobras, os investigadores acreditam que o esquema ocorra há pelo menos 10 anos. A chamada Operação Lava Jato apura o desvio de bilhões de reais de licitações e contratos da maior estatal brasileira, dinheiro usado para pagar altos funcionários corruptos e políticos. PT, PMDB, PP, PSDB e PSB abrigam 47 políticos alvos de investigação por participação no esquema. A lista de suspeitos inclui os presidentes da Câmara Federal e do Senado: Eduardo Cunha e Renan Calheiros – ambos do PMDB.
O processo se notabilizou por ir além das operações policiais mais costumeiras no Brasil ao prender não só agentes políticos e públicos corruptos, mas também os corruptores. Altos dirigentes de empreiteiras como OAS, Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Queiroz Galvão, UTC, Engevix, Iesa e Galvão Engenharia estão respondendo pelos desvios praticados. Marcelo Odebrecht, presidente da maior empreiteira nacional, e Otávio Marques de Azevedo, chefão da Andrade Gutierrez, estão em prisão preventiva.
Regulação urbana
Ainda que o Brasil tenha mecanismos de regulação do tecido urbano que são referências mundiais – como edificação compulsória, o IPTU progressivo, a Desapropriação para Fins de Reforma Urbana, o Direito de Preempção, a Outorga Onerosa e outras ferramentas – os interesses das empreiteiras costumam prevalecer na decisão da política urbana das cidades brasileiras. No meio do caminho da efetivação do direito à cidade estão a política e o jogo de correlação de forças que traça os rumos do desenvolvimento e emprego de verbas públicas.
A aplicação de tais instrumentos legais seria vital no atual contexto de forte especulação imobiliária das médias e grandes cidades brasileiras. Entretanto, há uma crise prática que impede o efeitos da legislação no espaço urbano. “O que você tem agora é uma politica que é regressiva do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, da justiça social e territorial, do direito à cidade. Atualmente, as nossas cidades, com raras exceções, estão em um caminho regressivo”, analisa Ermínia Maricato.
“O planejamento tem que atuar sobre a lógica de produção do solo urbano, o que significa utilizar os instrumentos legais existentes para interferir na lógica de produção urbana individual, priorizando a questão coletiva. O Brasil, apesar de avançado na legislação, ainda está engatinhando na aplicação desses instrumentos. Como referência, citaria as cidades de Bogotá e Medellin, na Colômbia, que têm obtido bons resultados nas políticas urbanas”, aponta Gislene Pereira.
As cidades de Bogotá e Medellin têm priorizado os cidadãos para guiar o desenvolvimento urbano. Em pouco mais de oito anos, os municípios investiram em mobilidade urbana planejada e sustentável, segurança cidadã com a remodelação das polícias e um novo ordenamento do espaço público. As melhorias colocam como foco as populações de baixa renda, dispondo para esses estratos sociais equipamentos públicos como escolas, bibliotecas, hospitais, praças e espaços de convivência, além de corredores para ônibus e ciclovias. Todas as obras fazem parte de uma política integrada de desenvolvimento urbano. Os resultados diminuíram os índices de violência urbana e colocaram as duas cidades entre as melhores indicadores de qualidade de vida da Colômbia.

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