Caixa dois é o jargão usado para se referir a qualquer dinheiro recebido ou pago que não entra na contabilidade oficial de uma empresa ou organização. No caso eleitoral, representa as doações não registradas oficialmente nas prestações de conta da campanha política à Justiça. Sem esse registro, além de não se saber o montante de fato arrecadado pelas candidaturas, não é possível identificar a origem das doações, se são fruto de fontes ilegais ou de atividades criminosas.
Esse dinheiro por baixo do pano é tão costumeiro nas eleições brasileiras que parece não haver vergonha em admiti-lo. Preso na Operação Lava-Jato em fevereiro deste ano, o publicitário João Santana, responsável pelas campanhas dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, disse que 98% das campanhas no Brasil utilizam caixa dois e que isso envolve “das pequenas às grandes campanhas”. Com o avanço das delações na Lava-Jato, a lista dos citados em casos envolvendo caixa dois expôs como a prática é multipartidária. Por isso o tema da anistia unifica vozes rotineiramente divergentes no Congresso.

Pressão multipartidária pela anistia

A manobra pela anistia do caixa dois entrou na pauta da Câmara pela primeira vez em setembro, sem uma convocação especial para a sua votação e sem a apresentação prévia do texto aos parlamentares. O requerimentogerou polêmica. Deputados do PSOL e da Rede protestaram e exigiram do presidente que comandou a sessão, deputado Beto Mansur (PRB-SP), que o tema fosse retirado da pauta. Em meio à pressão dos deputados contrários à manobra, Mansur foi obrigado a encerrar a sessão.
Em meados de novembro, com o avanço das discussões na Câmara sobre o pacote de medidas anticorrupção, a discussão sobre o caixa dois foi retomada e, com ela, a pressão dos congressistas pela anistia. Na quarta-feira passada, dia 24, o texto-base do pacote, elaborado pelo pelo Ministério Público Federal e proposto como projeto de iniciativa popular, foi aprovado em comissão na Câmara dos Deputados. O item oito fala em responsabilizar os partidos políticos em casos de caixa dois e criminaliza a prática inclusive para as pessoas físicas envolvidas nessa contabilidade paralela. A pena proposta é de quatro a cinco anos de prisão.
Apesar de não haver nenhuma lei que contemple o caixa dois, há entendimentos, como o da ministra Cármen Lúcia, de que ele é, sim, um crime ou, no mínimo, uma infração eleitoral. Um dos argumentos é que o artigo 350 do Código Eleitoral fala que é crime “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita”. A descrição da falsidade ideológica seria, portanto, a que mais se aproximaria do que é o caixa dois.
Professor da Universidade Católica de Brasília Paulo Henrique Perna Cordeiro, especialista em direito constitucional, explica ao The Intercept Brasil que o Congresso Nacional baseia o argumento da anistia no princípio da irretroatividade da lei. Ou seja, uma lei só pode abranger os fatos ocorridos depois de sua criação, uma vez que, antes, o crime não era ainda crime. Desta forma, o caixa dois cometido antes de uma lei que o criminaliza não pode ser punido. No entanto, neste caso específico do caixa dois, o professor sustenta que até o STF entende a prática como criminosa e, portanto, a anistia irrestrita não poderia acontecer.

Discussão sem fim

Após muita controvérsia, a comissão especial da Câmara aprovou o texto do projeto que traz a criminalização do caixa dois sem incluir a proposta de anistia. A ideia seria incluí-la como emenda durante a análise do texto pelo plenário da Casa. No entanto, no sábado, depois de se reunir com o presidente Michel Temer, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que não haverá a emenda pela anistia.
Coletiva no Planalto
Presidentes do Senado, Renan Calheiros, da República, Michel Temer, e da Câmara Rodrigo Maia, no Palácio do Planalto
 
Foto: Beto Barata/PR
Também no sábado, atuando como porta-voz do governo, o deputado Rogério Rosso (PSD-DF) disse que Temer vetaria uma possível anistia, caso a medida fosse aprovada pelo Congresso. No dia seguinte, em meio à crise que levou à demissão do ministro Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo), Temer, ao lado de Maia e Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, confirmou que a anistia, caso exista, será vetada.
No entanto, o poder de veto do presidente não é absoluto e muito menos encerra a discussão. Após aprovação pela Câmara e pelo Senado, o projeto de lei segue para análise presidencial. Se o presidente fizer qualquer tipo de veto a partes do texto, ele retorna para o Congresso. Cabe aos deputados e senadores aprovarem ou rejeitarem por maioria absoluta os cortes feitos pelo Planalto. Ou seja, a voz final é dos parlamentares.
Em Brasília, a preocupação é crescente ao passo que avançam as assinaturas do acordo de delação da empreiteira Odebrecht, que trará uma centena de políticos financiados por recursos ilícitos. Entre eles estão ministros, governadores, deputados e até o presidente Michel Temer, que, segundo a construtora, teria  recebido R$ 10 milhões para o caixa do PMDB. O material da Odebrecht é farto em nomes que vão do governo à oposição. Nesse cenário, não causa admiração que a anistia ao caixa dois seja desejada a ponto de unir políticos de todas as cores e credos.