terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Para governo Bolsonaro, garimpeiros destrutivos e pecuaristas incendiários são povos tradicionais

 

“Garimpeiros são como gafanhotos famintos”, diz o sociólogo Luiz Antonio Nascimento, da Ufam, um dos críticos à sugestão de inclusão desses grupos no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).

Na imagem acima garimpeiro no rio Juma, entre Apuí e Nova Apurinã no sul do Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Acervo Amazônia Real)

do Amazônia Real

Para governo Bolsonaro, garimpeiros e pecuaristas são povos tradicionais

Por Leanderson Lima


Manaus (AM) – O governo Bolsonaro quer incluir garimpeiros e pecuaristas na lista de povos tradicionais. Essa pauta estava presente na 11ª reunião do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), colegiado consultivo do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ficou decidido que no prazo de um ano um Grupo de Trabalho (GT) os membros do conselho debaterão e, ao final, decidirão se os destruidores da Amazônia e de outros biomas serão considerados “povos tradicionais”. A simples inclusão desse assunto resultou numa chuva de críticas.

“Garimpeiros são como gafanhotos famintos, destroem tudo pela frente e em seguida vão para outro lugar”, resumiu o sociólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Luiz Antonio Nascimento. Os povos tradicionais são aqueles que vivem na e da terra há séculos, como ribeirinhos, caiçaras, caboclos, indígenas e quilombolas. “Estes usam as terras, os recursos naturais e o meio ambiente como um todo de forma sustentável”, acrescenta o sociólogo, para quem o garimpo é por natureza degradador e insustentável. “Não há um único lugar em que o garimpo deixou algo além de miséria, doenças e degradação social e ambiental.”

O CNPCT foi criado pelo Decreto n 8.750 de 9 de maio de 2016 e que está presente na estrutura da Secretaria Nacional de Políticas da Promoção da Igualdade Racial (Seppir), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta hoje comandada pela ministra Damares Alves. O conselho tem atribuição de fortalecer e garantir os direitos dos povos tradicionais, propondo conferências, coordenando, acompanhando e monitorando a implementação e a regulamentação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Se forem considerados povos tradicionais, os pecuaristas e garimpeiros terão voz e poder de decisão dentro desse órgão.

A solicitação foi feita diretamente pelos garimpeiros e pecuaristas, fundamentada em pedidos de autodeterminação (eles se consideram “povos tradicionais”), à Seppir, que encaminhou a demanda para o CNPCT. No dia 20 de outubro, o GT foi discutido e aprovado em reunião ordinária. Em 8 de dezembro, foram nomeados os membros que comporão o grupo de trabalho. 

O CNPCT divulgou uma nota explicando a situação. No documento, os conselheiros contam que “se deparam” com o que classificaram como “uma divulgação errônea de proposta de pauta que continham informações que ainda precisavam de aprimoramento prévio”, antes de ser divulgada. O primeiro dia da reunião foi no dia 7 de dezembro.

A pauta da reunião é costurada entre os membros do CNPCT e a Seppir, órgão governamental. No caso, o pedido específico para a inclusão dos garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais partiu da Secretaria do governo, segundo a nota. Os conselheiros haviam pedido a correção, por e-mail, um dia antes da reunião, no dia 6 de dezembro, e afirmam que nada foi feito, o que colaborou para “problemática criada por difusão de informações errôneas e inverídicas da pauta publicizada”.

Ainda de acordo com a nota, no dia 8 de dezembro, a reunião tratou da criação do GT para “discutir procedimento para reconhecimento de novos segmentos de Povos e Comunidades Tradicionais – PCTs”. O documento narra que a sugestão da Seppir é que houvesse votação sobre as identidades, mas o entendimento dos conselheiros era que se ampliasse as discussões do autorreconhecimento a “partir de critérios e procedimentos para que todos os grupos tenham segurança, inclusive jurídica para esse processo”.

Houve discussões acerca da composição do GT, e o governo expressou que esta deveria ser paritária, embasado no decreto 9.759/2019. O conselho se posicionou ainda contra a destruição de territórios, o que acontece por meio de projetos “desenvolvimentistas muitos deles governamentais”, também contra mineração em territórios indígenas e em unidades de conservação e “contra quaisquer atividades que ameacem destruir o modo de vida e territórios tradicionais”. 

Desconexão com a realidade

Campanha Amazônia Soja e Gado. Sobrevôo sul do Pará/ Terra do Meio e Norte do Mato Grosso. Trecho Manaus/ Alta Floresta/Cumaru/ Santa Maria das Barreiras e São Félix do Xingú/ Palmas (TO). Arco do desmatamento. (Foto: Alberto César Araújo)
Projetos agropecuários fazem parte dos planos de desenvolvimento na região desde a ditadura militar. Imagem acima: pasto em área de grilagem no norte do Mato Grosso
(Foto: Alberto César Araújo/Acervo Amazônia Real)

Agora o GT vai ouvir povos e comunidades tradicionais (PCTs), pesquisadores, antropólogos e instituições. Esse grupo é composto por quatro integrantes da sociedade civil, um do governo e convidados como MPF, Defensoria Pública da União e outros órgãos. A decisão sobre a inclusão dos garimpeiros e pecuaristas será apresentada em reunião do CNPCT em dezembro de 2022.

Para o professor da Ufam, esse gesto só pode ser entendido como “piada de mau gosto”. “Esse governo Bolsonaro é louco e criminoso e está fazendo de tudo para destruir tudo, e em especial terras indígenas, quilombos e Unidades de Conservação. E tem encontrado caixa de ressonância na mídia, quando ela não denuncia com dureza o que está em curso”, afirma.

“É mais um absurdo dessa criatura. Não há como a gente entender de outra forma. É uma total desconexão com a realidade, querer colocar como PCTs categorias que historicamente perseguem, matam e oprimem essa população”, desabafa Angela Mendes, filha do líder Chico Mendes. “É ultrajante, considerando que pecuaristas e garimpeiros, e muito mais garimpeiros, não se enquadram no que determina a Política Nacional de Desenvolvimento de Povos e Comunidades Tradicionais. É só buscar informações”, diz a tecnóloga em gestão ambiental.

O indigenista do Fórum da Amazônia Oriental (Faor) Marquinho Mota foi mais direto: “Isso aí é uma grande merda! Desculpa a expressão. Como é que garimpeiros e pecuaristas podem ser considerados povos tradicionais? É uma afronta a tudo que os povos tradicionais conquistaram até hoje, porque garimpeiros e pecuaristas são pessoas, agrupamentos, quadrilhas que atacam os povos tradicionais. Não têm como enquadrar esses caras como povos tradicionais. É um absurdo”, considerou.

O CNPCT é presidido por Carlos Alberto Pinto Santos Candidato, membro do Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos e Comunidades Tradicionais (Confrem). Ele informou que foi a “sociedade civil” no CNPCT que propôs a criação do GT e que agora esse processo seguirá ritos e procedimentos para o reconhecimento de novos grupos. “Isso nós conseguimos fazer, justamente para não ir direto analisar o caso de um Grupo A ou Grupo B”, disse.

“Optamos por seguir os preceitos que defendemos: consulta prévia, ampla, livre e informada, respeitando os direitos, a questão da identidade, da cultura, respeitando justamente aquilo que levou a gente a ter um conselho pelo qual lutamos tanto. Não vamos tratar de reconhecimento nenhum [no momento]”, adiantou Carlos Candidato.

Neutralização dos tradicionais

Juarez Silva Jr (Foto: Acervo pessoal)

O historiador Juarez Silva Jr. vê a manobra para incluir garimpeiros e pecuaristas no hall dos povos tradicionais como uma tentativa de desvirtuar um conceito e, assim, “neutralizar” os verdadeiros povos e comunidades tradicionais nos seus direitos.

“A estratégia já foi utilizada há tempos aqui na região amazônica com a finalidade de ‘infiltrar’ de forma metarracista a luta negra e indígena não apenas na região, mas também em nível nacional como vimos no caso das cotas universitárias e demarcação da Terra indígena Raposa Serra do Sol”, explica. Ele lembra que um conceito e uma definição sobre os PCTs já são consagrados científica, social e politicamente, e essa inclusão vai contra o que é consagrado.

“Trocando em miúdos, é a atualização perfeita dos ditados populares: ‘botar a raposa tomando conta do galinheiro’ e ‘juntar alhos com bugalhos’. Isso será extremamente prejudicial aos verdadeiros PCTs, além de abrir ainda mais ‘legalidades’ para a ‘passagem da boiada’ antiambiental”, conclui.

A pesquisadora Elisa Wandelli faz um alerta ainda mais preocupante. “O pleito dos garimpeiros e dos pecuaristas é o que eles têm o direito de realizar. Qualquer grupo pode se considerar como tal, só que o conselho tem que avaliar para ver se aceita eles como parte de povos tradicionais e consequentemente ter direito a voz, voto e influência. E isso vai diminuir mais ainda a expressão, as demandas, os desejos dos povos tradicionais”, alertou.

Questão política

Balsas de garimpeiros no rio Madeira, em Autazes no Amazonas em novembro de 2021
(Foto: Bruno Kelly/Greenpeace)

No último mês, a crise no rio Madeira, quando centenas de balsas do garimpo ilegal formaram uma vila flutuante nas proximidades do município de Autazes (a 112 quilômetros de Manaus), causou danos para a imagem do Brasil perante a comunidade internacional. E, por parte do governo Bolsonaro, nenhuma palavra de condenação ou desestímulo à atividade. Mas não é apenas junto ao governo federal que os garimpeiros encontram força, como bem lembra o advogado da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema).

“Há várias frentes formadas por parlamentares e prefeitos que vislumbram transformar o garimpo ilegal em atividade lícita. Recentemente, uma comitiva de prefeitos da região do Calha do Madeira (Amazonas) esteve em Brasília reivindicando apoio de deputados e senadores para que a atividade do garimpo seja ‘transformada’ em extrativismo mineral familiar. Importante destacar que atividade garimpeira tem sido responsável pela destruição de grandes extensões da Amazônia e resultado em violentos ataques contra povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos”, lembra Diogo Cabral.

No Amazonas, a defesa do garimpo também ganhou força na Assembleia Legislativa do Estado (Aleam), quando muitos parlamentares se manifestaram a favor do “destravamento” do setor, durante a crise no rio Madeira, quando a Polícia Federal, em operação, ateou fogo em balsas que faziam extração clandestina de ouro.

Os garimpeiros e pecuaristas

Garimpo do rio Juma entre Apuí e Novo Aripuanã, no Amazonas
(Foto: Alberto César Araújo/Acervo Amazônia Real)

Fundador do Sindicato dos Garimpeiros do Estado de Roraima – o único no segmento atuando no Brasil -, Crisnell Ramalho conta que não conhece a fundo a proposta colocada em votação na reunião do CNPCT, mas faz questão de lembrar que a mineração é parte da história do País. “Sabemos que o comércio e a indústria brasileira começaram a se desenvolver através dos garimpeiros, tenho livros contando essa história, inclusive quando garimpeiro trabalhava no tempo da escravidão para o rei de Portugal”, diz Ramalho.

O sindicalista que fundou o sindicato de Roraima conta sobre as dificuldades que enfrenta com a própria categoria. “Os garimpeiros não querem sair do trabalho clandestino para trabalhar legalmente. Eu tenho como fundamento o objetivo de transformar o trabalhador garimpeiro em micro, pequeno e até um grande empresário da mineração para que ele recolha tributos, para questionar o governo federal e o Congresso a liberar áreas para garimpeiro trabalhar de forma legal, com projetos ambientais. Só que o garimpeiro não quer”, lamenta.

Já o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Amazonas (Faea), Muni Lourenço, disse não ser contra ou a favor da proposta de incluir pecuaristas como povos tradicionais, desde que a inclusão na categoria, respeite os ditames legais.

Amazônia Real tentou contato com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, mas até o fechamento desta reportagem, o ministério não respondeu a solicitação. Caso o ministério retorne, a reportagem será atualizada.


Leanderson Lima – É graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Nilton Lins. Tem MBA executivo em Gestão de pessoas e coaching, pelas Faculdades Idaam. Com 18 anos de experiência profissional, atuou por veículos como Jornal A Crítica, Correio Amazonense, Jornal do Commercio e Zero Hora (RS). Na televisão trabalhou na TV A Crítica, Rede TV! Manaus, e na rádio A Crítica, como comentarista. É o vencedor do Prêmio Petrobras de Jornalismo de 2015, com a reportagem “Chute no Preconceito”.

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