O desafio ético de promessas de campanha impõe minimamente que os compromissos públicos assumidos estejam na esfera de decisão daquele que os apresenta. No jargão popular, não se pode fazer caridade com o chapéu alheio.
“Corte Nacional Anticorrupção”: Moro e sua proposta populista e inconstitucional a serviço dos EUA
Sérgio Moro, o ex-juiz declarado suspeito e incompetente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ao assumir sua candidatura à presidência da República, entra na disputa eleitoral sem qualquer preocupação com a legalidade das políticas públicas que propõe.
O desafio ético de promessas de campanha impõe minimamente que os compromissos públicos assumidos estejam na esfera de decisão daquele que os apresenta. No jargão popular, não se pode fazer caridade com o chapéu alheio.
No domingo (05), em entrevista ao jornal Correio Braziliense, Moro apresentou a proposta de uma “Corte Nacional Anticorrupção”. Segundo ele, com os recursos já existentes no Judiciário, para “aprimorar o combate à corrupção”, utilizando as estruturas já postas e atraindo “os melhores servidores e os melhores magistrados do Judiciário, por meio de um processo seletivo que leve em conta, com procedimentos de devida diligência, não só a integridade dessas pessoas, mas também o comprometimento com o combate à corrupção, sem aumentar custos orçamentários.”
Os problemas da promessa de campanha antecipada de Moro são de diversas categorias.
A primeira é de ordem jurídico formal. A proposição de criação de tribunais, a ser feita ao Poder Legislativo respectivo, é de competência privativa do STF, dos Tribunais Superiores e dos Tribunais de Justiça, pela redação expressa do art.96, II, “c”, da Constituição Federal de 1988. Logo, a proposta oriunda do Poder Executivo seria inconstitucional. Não pode, em consequência, ser feita como compromisso de candidato a presidente da República.
Por outro lado, ao afirmar que fariam parte da Corte os melhores servidores e magistrados, íntegros e comprometidos com o combate à corrupção, o candidato Moro comete, no mínimo, o deslize de afirmar que existem servidores públicos e juízes cuja integridade possa ser questionada em princípio. O que nos autoriza a questionar: quais seriam os critérios moristas para a probidade referida? A julgar por sua própria conduta como juiz, deixar de cumprir as regras do devido processo legal não se enquadraria como problema; tampouco agir com parcialidade e adotar uma relação imoral e corrompida com os membros do Ministério Público, responsáveis pela investigação. Do mesmo modo, a parceria com a mídia tradicional para manipular fatos contra cidadãos, com fins políticos e com o vazamento de interceptações não pareceria obstáculo.
Ademais disso, no ponto central é preciso reconhecer que a “genial” ideia de Moro sobre uma Corte de combate à corrupção não é dele, nem atende aos interesses nacionais. É, mais uma vez, um planejamento feito para acolher a demanda do governo dos Estados Unidos.
Precisamente, no dia 03 de junho de 2021, a Casa Branca divulgou um documento assinado pelo presidente Joe Biden, em conjunto com a transcrição de uma teleconferência, em que altos funcionários do governo expunham a criação de uma comissão composta pelos principais órgãos governamentais do país, incluindo serviços de inteligência como a CIA e a NSA. Esse grupo apresentará ao presidente, dentro de 200 dias, as propostas finais para o plano de atuação global do governo Biden para combate à corrupção. Entre as estratégias, o governo dos EUA quer aumentar os recursos, como assistência investigativa, financeira, técnica, política, a serem destinados a outros países que “exibam o desejo de reduzir a corrupção”.
Na teleconferência, foi dito que os EUA usarão suas agências para o combate à corrupção ao redor do mundo e vão atuar mais fortemente no Hemisfério Ocidental, principalmente na América Latina. Significa que haverá uma expansão da jurisdição norte-americana para alcançar empresas ao redor do mundo.
A declaração intencional de Moro faz parte do pacote Biden de combate à “corrupção estratégica”, o novo centro da doutrina de segurança nacional dos Estados Unidos. Na entrevista dada no domingo, ele próprio assume que esse modelo já vem sendo implementado em outros países, inclusive com apoio do Banco Mundial e de associações de magistrados.
A Lei sobre Práticas de Corrupção no Exterior (Foreign Corrupt Practices Act – FCPA) é uma legislação norte-americana do ano de 1977, cujo objetivo era proibir o suborno e a corrupção de oficiais estrangeiros por qualquer empresa ou indivíduo americano, ou que opere em território americano. Como foi revelado pelas reportagens da “Vaza Jato”, a operação Lava Jato queria permitir, ilegalmente, que os agentes do FBI atuassem na investigação em território brasileiro sem passar pelos canais legais, sem autorização do Ministério da Justiça. Além disso, os procuradores da força-tarefa atuaram junto às autoridades dos EUA na aplicação da FCPA para punir empresas brasileiras.
A norma permite que autoridades norte-americanas investiguem e punam fatos ocorridos em outros países, como se o país possuísse uma jurisdição internacional, sendo, na prática, usada como instrumento de exercício de poder econômico e político dos EUA no mundo, combatendo governos rivais por meio de suas empresas concorrentes das norte-americanas nos mercados globais. As justificativas para o uso da Lei podem ser as mais pífias, como o simples fato de haver um servidor de internet baseado nos EUA ou a realização de um encontro em território estadunidense.
A insistência da retórica do combate à corrupção na voz de Sérgio Moro, sobretudo após ter feito parte do governo de Jair Bolsonaro, em eloquente omissão quanto às várias denúncias de crimes, é um acinte à democracia e à própria ideia de pretender verificar a prática no âmbito do Estado. Sua candidatura como parte da estratégia geopolítica dos Estados Unidos nos impele a prestar bastante atenção em cada movimento e em cada “proposta inovadora” do aspirante a ocupar o Palácio do Planalto.
Tânia M. S Oliveira é advogada, historiadora, pesquisadora e membro da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
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