quarta-feira, 30 de março de 2016

Mídia: só Brasil não democratizou

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A partir da “Ley de Medios” argentina — agora temporariamente revogada — quase toda a América do Sul enfrentou oligopólio que dominia comunicações. Aqui, ninguém mexeu com ele
Por Thales Schmidt, no Calle2
A ex-presidente argentina Cristina Kirchner estava com Diego Maradona, então técnico da seleção argentina, e o mandachuva do futebol no país, Julio Grondona, quando anunciou: “Acabou o sequestro dos gols. Eu não quero uma sociedade de sequestros de pessoas, nem de imagens e nem de ideias”. O campeonato nacional de futebol de 2009, antes exclusividade da TV a cabo do Clarín, seria agora exibido nos canais públicos da TV aberta. A jogada foi o começo de uma escalada entre Clarín e governo federal que ainda atravessa a política argentina − e que parece ter chegado ao fim com a eleição de Mauricio Macri.
Poucos meses depois do anúncio de Cristina, o Congresso argentino votou e aprovou uma nova legislação − que teve iniciativa da sociedade civil − para as empresas de televisão e rádio: a Lei de Serviços e Comunicação Audiovisual. Conhecida como Lei de Meios, a medida pregava o fim do monopólio de grandes grupos de comunicação ao restringir a porcentagem de mercado que poderiam dominar e quantos canais poderiam deter, além de incentivar veículos independentes.
A lei foi um duro golpe para o Clarín. O grupo era grande demais para as restrições antimonopólio das novas regras e precisava vender partes de seu negócio para se adequar.
Clarín conseguiu arrastar sua situação na Justiça durante anos até perder na Corte Suprema (maior instância do judiciário argentino), em 2013; mas antes do maior grupo de comunicação do país efetivamente se dividir, Macri foi eleito e revogou já no primeiro mês de seu mandato os principais pontos da Lei de Meios por meio de Decretos de Necessidade e Urgência, um recurso parecido com as Medidas Provisórias brasileiras.
Uma das maneiras de medir a concentração de um mercado é verificar quanto as quatro maiores empresas do setor faturam em comparação com as demais. Os quatro maiores canais de TV aberta argentinos concentraram 89% dos rendimentos do mercado em 2009. Já na TV a cabo, esse número é de 81,8%, e a companhia Cablevisión, do grupoClarín, lidera o mercado com uma fatia de 45%. Os dados são dos livros “Los dueños de la palabra” e “De la concentración a la convergencia”, respectivamente.
No Brasil, o quadro não é muito diferente. As quatro maiores redes de TV aberta – Globo, SBT, Band e Record – controlam uma rede com 843 canais, segundo levantamento feito pelo projeto Donos da Mídia.
“Multinacionais compraram praticamente todo o mercado de cerveja nos nossos países, mas você pode dominar o mercado de cerveja de um país sem afetar sua vida institucional. Concentração da mídia, ao contrário, afeta a democracia. Democracias fortes colocam limites à concentração de mídia”, disse Edison Lanza, relator de liberdade de expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), em entrevista ao Buenos Aires Herald.
Na Holanda, se um grupo tem mais de 25% da circulação de jornais, fica proibido de ter um canal de TV aberta ou rádio. Na Alemanha, se um grupo de comunicação tiver canais cuja soma supere 30% da audiência, ele fica proibido de comprar ou participar de outros canais. No Reino Unido, o magnata Ropert Murdoch, dono de um império de mídia espalhado pelo globo e avaliado em mais de 50 bilhões de dólares, tentou comprar a maior empresa de TV a cabo do país − e foi barrado pelo Parlamento.
Por que no Brasil não se discute monopólio da imprensa?
As regras brasileiras para empresas de rádio e televisão são de 1962, feitas pelo governo de João Goulart. Para Pedro Ekman, Coordenador do coletivo Intervozes, os políticos não tocam no assunto por uma questão de governabilidade: “Os governos e os monopólios de comunicação sempre combinaram o jogo juntos. A partir do governo Lula (2003- 2010) isso muda, mas não muito. Existe um pacto de que alguns assuntos não são tocados, e a mídia é um deles”.
Organizações da sociedade civil brasileira, entre elas o Intervozes, protocolaram junto ao Ministério Público Federal em 2015 uma ação contra 40 políticos brasileiros donos de canais de TV ou rádios − situação apontada como ilegal na ação. Aécio Neves (PSDB -MG), Fernando Collor de Mello (PTB-AL), Jader Barbalho (PMDB-PA) e Tasso Jereissati (PSDB-CE) fazem parte da lista de 32 deputados e 8 senadores denunciados. O objetivo da iniciativa é suspender as concessões dos canais de TV e rádios e obrigador o governo federal a licitar esses espaços para novos proprietários.
Ekman explica que o Ministério das Comunicações sempre interpretou a situação como legal.
A Constituição de 1988 estabelece que a comunicação “não pode, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Até hoje, esse artigo não foi regulamentado pelo Congresso brasileiro. “Temos uma situação clara de monopólio, a Globo concentra 70% do mercado de publicidade na TV, apesar de só ter 48% da audiência. Em qualquer país civilizado, haveria uma ação antimonopólio contra isso. No Brasil, vemos isso como natural” diz Ekman.
E o resto da América Latina?
A experiência argentina não é um caso isolado. Equador, México, Uruguai e Venezuela também reformaram suas legislações de comunicação nos últimos 15 anos. Essas mudanças coincidiram com a eleição de presidentes progressistas na região, como Hugo Chávez na Venezuela, Rafael Correa no Equador e Pepe Mujica no Uruguai.
Martín Becerra, professor de políticas de comunicação da Universidade Nacional de Quilmes, conta que essas mudanças foram influenciadas pela percepção de que “os meios de comunicação privados funcionavam como a oposição – ou como uma maneira dela se expressar”.
“Acredito que exista uma relação, mas não é uma relação direta. Porque existem outros governos progressistas que não fizeram reformas em suas leis de comunicação, como Brasil, Chile e Bolívia. Em troca, há governos que não são progressistas e que fizeram reformas, como o México. Então uma relação existe, porque na Venezuela, Argentina, Equador e Uruguai se encontram governos que podemos chamar, genericamente, de progressistas.”
O professor argentino analisa que a chamada virada à esquerda do continente está acabando: “Evo Morales acaba de perder o referendo de sua reeleição na Bolívia, a situação venezuelana é muito crítica. Há muitos sinais que o momento político não é mais o mesmo. Eu diria que a América Latina está atravessando outra etapa”.
O que foi a Lei de Meios?
A Lei de Meios não teria existido sem a participação da sociedade civil argentina. A primeira versão da proposta de lei utilizou como base os “21 pontos por uma radiodifusão democrática”, documento elaborado pela Coalizão por uma Radiodifusão Democrática – grupo formado por mais de 200 entidades entre ONGs, sindicatos universidades, canais comunitárias e cooperativas.
Néstor Busso, membro do Forum Ar­gentino de Rádios Comunitárias, foi quem apresentou o documento para a então presidente Cristina Kirchner na Casa Rosada em 2008. “Fizeram 25 fóruns de consulta em todo o país, foram feitas mais de 200 modificações ao projeto original”, conta.
As regras antimonopólio da Lei de Meios foram elogiadas pelas relatorias de liberdade de expressão da OEA e da Organização das Nações Unidas (ONU). As restrições impostas pela lei limitam apenas a propriedade dos meios de comunicação e não afetam sua linha editorial.
Ainda assim, a OEA apontou que a legislação era aplicada com mais rigor ao Clarín do que com as outras empresas.
“A lei foi aplicada com critério desigual para os diferentes grupos de comunicação com base na sua proximidade com o governo de Cristina Kirchner. Tão grotescas foram essas arbitrariedades que se aplicaram prazos e exigências diferentes para situações similares para umas e outras empresas”, aponta José Crettaz, editor de política do jornalLa Nación.
Busso diz que a aplicação parcial não é justificava para que ela seja modificada por decretos. “As mudanças são feitas porque o governo Macri só pensa em negócios e em comércio, como disse o ministro de Comunicações Oscar Aguad: ‘a comunicação é uma questão de mercado’. Para nós, a comunicação é um direito humano, essa é a diferença substancial. O Estado tem que intervir para garantir esse direito, isso supõe colocar limites na concentração e favorecer a pluralidade de vozes”.
Um dos destaque da legislação foi a criação do Fundo de Fomento Concursável e o estabelecimento de cotas de produção nacional e independente. Entre 2013 e 2014, o fundo distribuiu, por meio de concursos, 50 milhões de pesos, o equivalente a R$ 13 milhões, para canais de rádio e televisão sem fins lucrativos. Foram beneficiadas iniciativas de comunicação indígenas, de sindicatos, cooperativas e ONG’s. Procurado pela reportagem, o Enacom não respondeu se pretende continuar com o fundo.
O que Macri está fazendo?
Além de relaxar as restrições antimonopólio (veja detalhes abaixo), os decretos de Macri fecharam o organismos responsáveis por aplicar a Lei de Meios e, em seu lugar, criaram o Ente Nacional de Comunicações (Enacom). Quatro dos sete integrantes do novo diretório são nomeações de Macri, que pode remover qualquer membro sem maiores explicações ou justificativas.

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