quinta-feira, 12 de abril de 2018

A difícil defesa da Democracia em um Estado de Exceção, por Valdete Souto Severo, juíza do trabalho



"No calor da hora, sobretudo quando os ataques a direitos liberais e sociais somam-se dia a dia, é complicado estabelecer um raciocínio que abranja todas as questões envolvidas e compreenda o que realmente está em jogo. Ainda assim, não é possível calar sobre o que está ocorrendo no Brasil de 2018." - Dra. Valdete Souto Severo

A difícil defesa da Democracia em um Estado de Exceção
Ato Político Nacional na Vigília Democrática pela liberdade de Lula nas proximidades da Polícia Federal (ao fundo) em Curitiba. Foto: Ricardo Stuckert
Quinta-feira, 12 de Abril de 2018

A difícil defesa da Democracia em um Estado de Exceção

Nada é mais complicado do que compreender o momento histórico com a lucidez necessária para enfrentar seus desafios. É bem mais tranquilo olhar hoje para décadas passadas e perceber os equívocos que nos fizeram mergulhar em períodos autoritários. No calor da hora, sobretudo quando os ataques a direitos liberais e sociais somam-se dia a dia, é complicado estabelecer um raciocínio que abranja todas as questões envolvidas e compreenda o que realmente está em jogo.
Ainda assim, não é possível calar sobre o que está ocorrendo no Brasil de 2018.
Notícia da última segunda-feira refere a morte de um militante que prestou depoimento no caso de Marielle. Manuela D’Avila, no mesmo dia, postou vídeo em que denuncia agressão por parte de um cidadão que em seguida, segundo seu relato, foi escoltado pela Polícia Federal, para dentro do local em que Lula encontra-se detido. Sites da grande mídia referem que eram verdadeiros os áudios veiculados em redes sociais, sugerindo o assassinato de Lula durante seu transporte para Curitiba. Esta semana, tivemos também a notícia de que prescreveu um dos processos propostos contra Aécio Neves, e outro contra Serra.
Aliás, basta prestar atenção no processo envolvendo Lula e o tão conhecido apartamento triplex, para percebermos a exceção em que estamos mergulhados. Desde a competência, até a fundamentação, passando pela velocidade ímpar e por um fundamento que, sem provas concretas, se valeu apenas de provas secundárias e convicções extraídas de indícios, tudo revela a possibilidade de estarmos mesmo, como alguns sustentam, diante de uma instrumentalização do processo, possibilitando o seu uso a fins político-partidários. Quem perde não é apenas Lula, cidadão de 72 anos que governou por 8 anos o país e contra o qual tudo o que se obteve foi a prova irrefutável de que alguém ouviu dizer que ele era o destinatário de um imóvel que nunca esteve em seu nome ou de qualquer outra pessoa que não o da empresa que supostamente ofereceu tal imóvel como propina.
Ao colocarem na prisão, com ânsia, fúria e tanta pressa, esse cidadão brasileiro, enquanto deixam que sigam livres pessoas contra as quais existem tantas provas de corrupção, o que se faz é uma opção social. Uma opção de ruptura com o pacto democrático construído em 1988. A Constituição não deve valer apenas para o Lula, precisa valer para todos e todas. Um julgamento pautado em fundamentos jurídicos é também direito de todos e todas.
É bom que se registre que muitas críticas podem e devem ser feitas ao período de governo de Lula. A prática conciliatória, as concessões ao capital, a ausência de uma adequada valorização do ensino, a persistência na prática de alimentar a mídia oficial com dinheiro do Estado e, sobretudo, a lógica de desmanche de direitos sociais, representada especialmente pelo tratamento dispensado a trabalhadores e trabalhadoras grevistas, por leis flexibilizadoras e pela criminalização dos movimentos sociais, são elementos que merecem uma crítica profunda e adequada. Muito pode ser dito. Não se trata, portanto, de tornar Lula um bastião da moralidade ou de reivindicar o retorno a uma prática de governo que acabou contribuindo para o descalabro que se instaura no Brasil especialmente a partir do golpe parlamentar de 2016. Trata-se de reconhecer que todas as críticas possíveis e necessárias aos governos dos últimos anos no país não justificam prisão sem condenação, sem provas, sem direito real ao contraditório, atropelando regras processuais que têm fundamento democrático. Trata-se de reconhecer que permitir a quebra das regras postas, para determinada pessoa, por ranço político ou com o propósito declarado de vê-lo fora do jogo eleitoral, é um ataque à democracia.
Faz muito tempo que o Brasil não respeita suas instituições e nada é mais sintomático dessa realidade do que o voto de uma Ministra do STF, fundamentado no inexistente “princípio da colegialidade”, para tornar majoritário um posicionamento que sem o referido voto, seria vencido. Enquanto os defensores da “reforma” trabalhista bradam contra a possibilidade de interpretação judicial, reivindicando juízes “boca da lei”, que se limitem a reproduzir o texto da ilegítima Lei 13.467, com todas as inconstitucionalidades que ele possui, a livre interpretação da Constituição é a saída para tratar desigualmente situações iguais. Basta comparar os votos proferidos no Recurso Especial Eleitoral 12486-27.2009.6.20.0000/RN e no Habeas Corpus proposto por Lula, pela mesma julgadora. As súmulas do TST, transformadas em regras pela dita “reforma”, também são exemplo disso. Há tempo estamos desconstruindo nosso incipiente Estado de Direito, apenas chegamos agora a um momento em que não há mais como negar essa realidade.
No campo do Direito, estamos pagando o preço de um ativismo descomprometido com a Constituição. O problema, porém, não é o ativismo judicial, pois como ensinava Ovídio Baptista da Silva, ainda no século passado, Direito é linguagem, é cultura e, portanto, lidará sempre com discussões acerca dos limites de sua aplicação/ interpretação. Os juízes jamais serão “boca da lei” ou “boca da súmula”, e de nada serve o artigo 8º da CLT ou as regras do CPC pretendendo isso. Nem o texto da Constituição pode ser o fim último de nosso discurso, pois também ela vem sendo alterada e desconfigurada não apenas por interpretações que a corrompem em sua essência, como também por alterações em sua redação, algumas já perpetradas e tantas outras tramitando como propostas assustadoras em nosso Congresso Nacional, tal como a PEC 300, que pretende desfigurar o artigo 7º da Constituição, alterando, por exemplo, a jornada de 8h para 10h.
A questão passa, portanto, por compreender que abraçamos a exceção quando toleramos que os torturadores do regime militar seguissem no poder após a abertura democrática. Passa pela compreensão de que, a partir já do início da década de 1990, iniciamos um processo de desmanche dos direitos e garantias previstos na Constituição, que acabou culminando no golpe parlamentar de 2016. E passa, sobretudo, pela compreensão de que estamos lidando com um movimento, cujo horizonte último é a destruição da democracia. É disso que também a “reforma” trabalhista realmente se ocupa.
A democracia, embora tolerada em alguns períodos de nossa história, sempre lidou com a resistência do capital, porque se sabe que em uma realidade capitalista, os direitos sociais são a principal arma da maioria oprimida contra a minoria opressora. Apenas cidadãos e cidadãs com condições de moradia, saúde, alimentação e trabalho tem possibilidade de pensar sobre a realidade a sua volta, de atuar politicamente, de obter informações sobre o que está acontecendo na sociedade e, sobretudo, de agir. Retirar direitos trabalhistas, permitindo aumento da jornada, redução da remuneração e do salário, é concretamente impedir que uma parcela importante da população do país tenha condições reais de atuar politicamente para concretizar e reforçar os ideais democráticos que elegemos em 1988.
Mesmo o necessário horizonte de superação de um sistema que sabemos autofágico, concentrador de renda e destruidor do ambiente em que vivemos, passa pelo respeito aos direitos sociais, pois como escreveu Brecht, não há como alterar a realidade se precisamos nos preocupar com a fome.
Por consequência, o discurso agora deve voltar-se à preservação do caráter democrático de regulação das relações sociais que a Constituição de 1988 consagra. Precisamos defender a Constituição de 1988, não por seu texto, mas por aquilo que ela propõe, já em seu preâmbulo, quando refere que instituímos, ali, um “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”.

Nossa luta imediata, portanto, deve ser pela democracia. E democracia não convive com eliminação de pessoas, ameaças de morte, escutas clandestinas, monitoramento de grupos que expressam pensamentos divergentes, decisões não fundamentadas, destruição de direitos sociais ou supressão de liberdades individuais.

No Brasil de 2018, o problema não é mais entre esquerda e direita, por mais que se insista nessa dicotomia estabelecida ainda à época da revolução francesa, e por mais que ela ainda faça sentido na realidade atual.
A questão é saber que tipo de sociedade queremos e assumir posição diante disso. A realidade concreta de avanço de um pensamento autoritário nos convoca a refletir sobre o conteúdo mínimo de uma realidade democrática.
Lutar pela democracia é lutar por uma sociedade plural, que aceita diferenças e busca a inclusão social, na qual as pessoas podem se manifestar sem medo e tenham noção das regras de convívio social e de sua validade para todos e todas.
O que estamos arriscando, portanto, é o retorno a uma lógica autoritária, em que as regras valham de acordo com o perfil político do destinatário da decisão judicial, em que trabalhadores e trabalhadoras não tenham condição de exercício da cidadania e se sujeitem a regimes desumanos de trabalho, em que o pensamento divergente seja punido com a perseguição (declarada ou velada) e mesmo com a morte. Portanto, defender a revogação da Lei 13.467/2017 (a “reforma” trabalhista), criticar a perseguição política viabilizada pelo uso obtuso das regras jurídicas, gritar contra a eliminação física de quem defende direitos humanos, se opor à lógica da intolerância, não é ser de esquerda. É ter compromisso com uma realidade minimamente democrática.
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

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