quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A Midiática Cruzada contra a Corrupção, tal como efetuada, pode conter corrupção na sua origem



Quem é contra a corrupção?

Armando Boito Jr. Professor da Unicamp
As motivações e os objetivos das campanhas contra a corrupção que nos últimos anos têm sido a bandeira de guerra do PSDB e da grande imprensa são vários e nenhum deles é nobre.

O motivo mais óbvio é obter o desgaste político e eleitoral dos governos do PT. Mas, a coisa não para por aí.

Para entender melhor tais campanhas é preciso fazer uma espécie de sociologia política do discurso e da prática das cruzadas contra a corrupção, tratá-los como um fenômeno ideológico que deforma de maneira interessada a realidade política — o que não significa que o faça de modo consciente.

Temos de seguir algumas pistas e a primeira delas é a seletividade da indignação moral tucana: nem toda corrupção é denunciada e combatida. Essa seletividade opera com dois filtros.

Moral e interesses

O primeiro filtro, e o mais óbvio, consiste em denunciar apenas e tão-somente os casos de corrupção que envolvem os partidos adversários, principalmente o PT.

A corrupção tucana é varrida por esses campeões da moralidade pública para debaixo do tapete. Esse comportamento nos obriga a descartar, de saída, toda e qualquer motivação ética na ação tucana, se entendermos a ética, tal qual eles próprios propalam, como um conjunto de valores morais imperativos desvinculados de interesses materiais “menores”.

Não é verdade, portanto, que os tucanos sejam contra a corrupção.

O segundo filtro, esse raramente notado, consiste em denunciar os casos de corrupção que envolvem empresas, instituições e lideranças que desempenham um papel importante na política neodesenvolmentista dos governos do PT.

Não se trata apenas de desgastar o PT para vencer eleições. Trata-se, na verdade, de eleger como alvo as instituições que têm sido um instrumento importante da política econômica e social dos governos do PT.

De fato, a julgar pelos casos rumorosos de corrupção investigados com sanha que atropela o próprio direito — como ficou patente no julgamento da Ação Penal 470 pelo STF — e divulgados com persistência e detalhes inauditos pela grande imprensa, instituições como o Banco Central, onde imperam os interesses do grande capital financeiro, seriam verdadeiras vestais do Estado brasileiro, a despeito das relações incestuosas das sucessivas diretorias do BC com as diretorias de instituições financeiras privadas, enquanto a Petrobrás, instrumento central da política neodesenvolvimentista, seria um antro de larápios.

A oposição tucana, como todos sabem, manifesta-se, há tempo, na voz de seus mais autorizados dirigentes, contra o regime de partilha na exploração do petróleo e contra a legislação que obriga a presença da estatal em todos os poços em exploração.

Os tucanos querem abrir mais a exploração ao capital estrangeiro.

Outro resultado muito apreciado pelo PSDB de um eventual recuo na posição da Petrobrás na exploração do petróleo seria o fato de que a redução dos investimentos produtivos da petroleira brasileira liberaria mais capital para a distribuição de dividendos aos acionistas privados da Petrobrás.

Em reportagens do jornal Valor Econômico, as vozes das finanças têm deixado clara sua insatisfação com o programa “muito ambicioso” de investimentos (produtivos) da Petrobrás que desviam a receita da empresa da nobre tarefa de encher o bolso dos acionistas privados.

As finanças preferem o modelo tucano de gestão da Sabesp: farto na distribuição de dividendos aos acionistas privados e minimalista no investimento para captação, conservação, tratamento e uso racional da água.

Ademais, os tucanos têm se manifestado, e de modo insistente, contra a política de conteúdo local nas compras da petroleira brasileira.

A Petrobrás tem a obrigação de adquirir e contratar 65% dos produtos e serviços junto a empresas locais. Essa política praticamente ressuscitou a indústria naval brasileira. Fernando Henrique Cardoso jogara a indústria naval na lona.

Após uma sucessão de medidas de abertura comercial, restrição de financiamento e outras, Cardoso entregou o governo com o setor naval empregando diretamente apenas 4.000 trabalhadores.

Hoje, os antigos estaleiros brasileiros foram recuperados, criaram-se estaleiros novos, e o setor oferece 80.000 postos de trabalho.

A política de conteúdo local incomoda muito o PSDB, esse procurador dos interesses do capital estrangeiro e das empresas brasileiras integradas esse capital.

Seus economistas mais credenciados contam-nos a seguinte fábula. O objetivo declarado da política de conteúdo local é estimular a produção brasileira de navios, plataformas, sondas, equipamentos, serviços de engenharia etc.

Contudo, dizem-nos, o efeito obtido será, num futuro próximo, o contrário do desejado.

Com a proteção da produção brasileira no sistema de compras da Petrobrás, as empresas ficam a salvo da concorrência internacional, perdem o estímulo para inovar e, no médio prazo, tornam-se obsoletas, sendo levadas ao declínio econômico.

Que felicidade descobrir que a corrupção contaminara justamente o sistema de compras da Petrobrás, isto é, a política de conteúdo local!

Os tucanos e a grande imprensa estão, agora, na fase mais importante da operação política que se assenhorou da Operação Lava a Jato.

Reportagens e editoriais dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo já estão propondo como solução para a “crise de Petrobrás” o fim do regime de partilha, o fim da política de conteúdo local e até a completa privatização da estatal.

Com a Petrobrás exangue em decorrência da “campanha contra a corrupção”, as petroleiras estrangeiras poderão voltar a reinar e a indústria naval da Ásia, Europa e Estados Unidos voltará a ter livre acesso ao mercado brasileiro.

No segmento da construção pesada, o capital europeu almeja um objetivo semelhante.

Em reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo, a Comissária de Comércio da União Europeia, Cecilia Malmstrom, após rápidas considerações de ordem moral criticando a corrupção no mercado brasileiro de obras públicas, afirmou que a União Europeia exige, para fechar um acordo de comércio com o Mercosul, maior abertura às empresas europeias no processo de contratação de obras públicas.

A Comissária Cecilia Malomstrom nada disse sobre as empresas europeias Siemens e Alstom que são rés confessas em processo que apura a prática de corrupção no sistema de trens e no metrô de São Paulo sob governos tucanos.

O que importa mesmo é que em 2013 o mercado de obras públicas no Brasil movimentou mais do que movimentaram os mercados da Índia e da Argentina somados.

Se o judiciário declarar inidôneas as grandes empreiteiras brasileiras, impedindo sua participação na contratação de obras públicas, seja qual for o sentimento ou a ideia que anime procuradores e juízes que vierem a concorrer para essa decisão, a Comissária Cecilia Malomstrom lhes será grata.

A Petrobrás é um instrumento chave do neodesenvolvimentismo. Ela é uma empresa estatal gigante que dá ao Estado capacidade para fazer política industrial e de crescimento.

Em torno dela, giram a indústria da construção naval, a construção pesada e outros segmentos importantes da burguesia interna brasileira.

O PSDB, como representante do capital internacional e da burguesia a ele integrada, não escolheu a Petrobrás como alvo por acaso.

Seguindo essa linha de raciocínio, uma hipótese plausível é que, depois da Petrobrás, chegará a vez do BNDES.

Política e ideologia

Se o que desejam o capital internacional, as empresas brasileiras a ele integradas, o PSDB e a grande imprensa é a destruição de um instrumento chave da política neodesenvolvimentista, porque, então, não vão direto ao assunto? Por que o longo desvio da “luta contra a corrupção”?

Porque os tucanos estão às voltas com a dificuldade — típica das forças políticas que representam interesses minoritários — que consiste em ter de obter apoio popular para bandeiras impopulares.

Eles são obrigados a esconder seus verdadeiros objetivos e a agitar o programa retórico da ética na política para poder obter um mínimo de aceitação.

Não é uma tarefa fácil convencer a massa da população de que o melhor a se fazer seria abrir mão do controle nacional sobre a riqueza do pré-sal, reduzir a receita da Petrobrás, desidratar o Fundo Social da Educação e da Saúde proveniente da exploração do pré-sal e cortar emprego na construção naval.

Para chegar a esses objetivos impopulares são obrigados a escondê-los, a dar voltas, animando a cruzada contra a corrupção.

A favor dos tucanos só podemos dizer uma coisa. No geral, eles não fazem isso apenas com o cinismo. É certo que mentem conscientemente em público e urdem intrigas nos bastidores. Porém, fazem isso no varejo.

No atacado, eles “acreditam crer” nos grandes princípios que alardeiam e se deixam iludir pelos personagens aos quais dão vida na cena pública — o político ético, o gestor competente, o condottiere da mudança e outros.

O fato é que os tucanos lograram confiscar a justa indignação popular com os criminosos de colarinho branco para atingir um objetivo que não interessa aos setores populares, mas, sim, ao grande capital financeiro internacional e a seus aliados internos.

Para uma análise segura desse caso da Petrobrás seria preciso estar de posse de muitas informações que não temos.

Dentro de alguns anos, talvez venhamos saber com segurança como é que foi tomada a decisão de se iniciar a operação que a Política Federal e a grande imprensa denominam “Lava Jato” (sic). Na falta de informações, podemos fazer algumas conjecturas.

Algo que não deve ser descartado é a ideia de que tenha ocorrido uma conspiração orientada por um centro — a crítica à teoria da conspiração não deve nos levar a negar a ideia de que há conspirações na história.

Por exemplo, um lobby das petroleiras ou da indústria naval estrangeira obteve apoio de embaixadas estrangeiras no Brasil para, em festas regadas a champanhe na capital federal, soprar nos ouvidos de procuradores do Ministério Público, de juízes ou de delegados da Política Federal a ideia de criar a operação “Lava Jato” (sic).

Podem ter oferecido também algum estímulo material para convencer esses ilibados senhores da importância da empreitada. A cruzada contra a corrupção pode conter na sua origem a própria corrupção

Outra possibilidade é que a operação tenha uma história mais complexa e tortuosa.

Altos funcionários do Estado, movidos pelo ódio de classe que os indivíduos pertencentes à classe média abastada nutrem pelos governos do PT, decidem desencadear a operação.

O trabalho entusiasma juízes, procuradores do Ministério Público e delegados da Política Federal, todos emulando Joaquim Barbosa.

A animação é tanto maior quando percebem o apoio amplo e firme que a operação recebe da grande imprensa — que age como representante do grande capital internacional e das empresas brasileiras e ele ligadas.

Ato contínuo, os tucanos vêm na operação a oportunidade de ganhar votos e ferir de morte um dos principais instrumentos da política neodesenvolvimentista do PT.

Terceira possibilidade, os dois caminhos anteriormente descritos misturam-se de forma complexa.

Conjecturas à parte, algumas coisas são certas. Primeiro, o PSDB não está preocupado, ao contrário do que afirmam seus dirigentes, com uma suposta “ética republicana”.

Tanto é assim, que condenam apenas seletivamente a corrupção.

Segundo, o objetivo oculto desse discurso opaco é, ao menos para as forças mais poderosas envolvidas na cruzada contra a corrupção, desregulamentar, abrir e privatizar ainda mais a economia brasileira.

Luta popular e corrupção

Dirigentes, parlamentares, ocupantes de cargos executivos do Partido dos Trabalhadores estão ou estiveram envolvidos com corrupção — aliás, isso não representa novidade na história dos partidos de tipo socialdemocrata.

O movimento democrático e popular não deve se calar diante desse fato; deve assumir, sem hesitação, a luta contra a corrupção. Mas, deve fazê-lo a seu modo.

Em primeiro lugar, ao contrário do que dizem os moralistas, a corrupção não é o único elemento a ser considerado na avaliação de um governo ou de um partido político.

O movimento popular não pode descartar a possibilidade de ter de garantir apoio a um partido que abriga corruptos — os moralistas da cruzada contra a corrupção também fazem esse tipo de cálculo, embora não o digam abertamente.

Em segundo lugar, o movimento popular deve saber que a corrupção é uma prática endêmica na sociedade capitalista em decorrência de elementos definidores do próprio capitalismo: a disputa econômica entre as empresas, a concentração da propriedade e da renda — concentração que pode ser convertida em influência política —, da concentração do poder político — que, por sua vez, pode ser convertida em vantagens econômicas — e em decorrência, também, do segredo que protege a burocracia de Estado.

Deve saber, portanto, que ao combater a corrupção combate por leis e instituições que a inibam, mas que não vão erradicá-la. A corrupção não decorre da mera desonestidade dos ocupantes de cargos públicos e dos diretores de empresas privadas.

Por último, deve ter claro que o discurso contra a corrupção e a política que ele estimula estão ligados a interesses de classe que, no caso dos interesses do capital internacional e do PSDB, permanecem ocultos.

O movimento popular tem interesse em que sejam investigados e punidos os crimes de colarinho branco praticados por funcionários da Petrobrás e por diretores de empresas.

Mas, não pode ignorar que o PSDB e a grande imprensa estão usando a cruzada contra a corrupção para suprimir leis e instituições que protegem a economia nacional e para inviabilizar o apoio crítico que o movimento popular tem dispensado ao Governo Dilma.

O declínio do voto popular em Dilma Rousseff na eleição de 2014 em São Paulo indica que o PSDB alcançou em parte esse objetivo.

É preciso tirar outras lições desse caso. Ele evoca a luta por uma Constituinte exclusiva e soberana para reformar o sistema político.

A reforma política, oriunda dessa Constituinte, poderia, além de proibir a contribuição financeira de empresas a candidaturas, prever a organização de Conselhos Populares para supervisionar os processos de licitações e de compras públicas.

Armando Boito Jr., professor de Ciência Política da Unicamp
Fonte: Viomoundo

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