Publicado originalmente no site A Terra é Redonda
A discussão jurídica e o julgamento ético da nova “Guerra da Palestina” – que começou com o ataque do Hamas a Israel no dia 7 de outubro de 2023 – são muito importantes mas não são suficientes para explicar a especificidade e a extrema violência e inumanidade desse conflito. E menos ainda, para especular sobre os desdobramentos futuros dessa catástrofe humanitária que está em pleno curso.
Do ponto de vista estritamente jurídico, o Direito Internacional reconhece a legitimidade das guerras de autodefesa de todos os povos e, portanto, também do povo de Israel; mas também reconhece o direito de todos os povos à rebelião e à guerra contra seus invasores e opressores e, portanto, também do povo palestino.
Por isto, do ponto de vista jurídico, não há definitivamente como arbitrar este conflito, porque se trata de uma disputa excludente ou de “soma-zero”, em que não existem árbitros externos que tenham competência e poder, e que sejam reconhecidos e aceitos pelas duas partes diretamente envolvidas. As próprias Nações Unidas já perderam inteiramente sua capacidade de ingerência e seu poder de arbitragem internacional, sobretudo depois que foram desmoralizadas pela decisão dos Estados Unidos e da Inglaterra de invadir e destruir o Iraque, em 2003, sem ter o aval do seu Conselho de Segurança, e baseados apenas em acusações que eles mesmos inventaram e que depois reconheceram ser falsas.
Por outro lado, do ponto de vista ético e conceitual, todos os grandes “genocídios” da modernidade só foram identificados, reconhecidos e condenados pelos donos do poder mundial, depois do seu cometimento. Como aconteceu, por exemplo, com o genocídio dos próprios judeus pelo governo da Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, que só foi “visto” e condenado pelas “potências vitoriosas” depois da guerra, em 1945. Tendo sido necessários muitos anos ou décadas mais, para que fosse reconhecida a cumplicidade dos demais países europeus, que também perseguiram os judeus, e que colaboraram com os nazistas, enviando os “seus judeus” nacionais para que fossem exterminados pelas câmaras de gás alemãs.1
Essa impotência ficou transparente no caso da recente decisão da Assembleia Geral da ONU, aprovada no dia 13 de outubro de 2023, condenando a guerra entre Israel e os Palestinos e exigindo um cessar-fogo imediato. Decisão que foi aprovada por 120 votos a favor, e apenas 14 votos contra, com 45 abstenções, mas que foi inteiramente desconhecida e desconsiderada pelos Estados Unidos e por Israel. Apesar de que tenha sido esta mesma Assembleia Geral que aprovou a Resolução n. 181, de 29 de novembro de 1947, que é considerada pelos Estados Unidos e por Israel como uma verdadeira “cláusula pétrea”, quase uma revelação divina, do direito judeu à instalação do seu novo Estado de Israel dentro do território da Palestina.
Na época, as Nações Unidas contavam apenas com 56 estados membros, e a decisão de criar Israel foi tomada por apenas 33 países que votaram a favor, contra 13 que votaram contra (incluindo todos os países árabes presentes) e 10 outros que se abstiveram, sem que tenha havido qualquer tipo de consulta ao próprio povo que vivia no território que foi entregue aos judeus. Sendo esta, sem dúvida, a causa em última instância desse conflito que já se prolonga há 75 anos, e que segue sem a menor perspectiva de algum tipo de negociação e conciliação que seja aceitável para o povo palestino.
Mesmo assim, não há dúvida que este conflito foi agravado mais recentemente pelas políticas de cerco, assédio e invasão de novas terras palestinas – sobretudo na Cisjordânia – praticada pelos sucessivos governos de Benjamin Netanyahu, que se sucedem desde 2009, e de forma muito particular, pelo seu governo atual formado em coalizão com as forças religiosas mais fundamentalistas e de extrema direita de Israel.
Benjamin Netahyahu tomou posse como primeiro-ministro, pela primeira vez, quase dois meses depois do primeiro grande bombardeio aéreo e terrestre israelense da Faixa de Gaza, que durou 21 dias e matou 1.400 palestinos e 15 israelenses no início de 2009. Benjamin Netanyahu também esteve à frente do novo bombardeio e invasão territorial de Gaza, no ano de 2014, que durou 51 dias e deixou 2.205 palestinos e 71 israelenses mortos; e mais uma vez, liderou Israel durante o conflito de maio de 2021, que durou 11 dias e matou 232 palestinos e 27 israelenses.
E agora de novo, ele tem sido o principal instigador do massacre de civis palestinos, nesta nova guerra com o Hamas, que já provocou a morte de 12.300 palestinos, com 25.400 feridos, e mais de 1 milhão de pessoas expulsas de suas casas, contabilizando-se 1.300 mortos e 5.500 feridos israelenses, até o momento. Podendo-se até imaginar que Benjamin Netahyahu e o Hamas fossem uma espécie de “inimigos siameses”, que se necessitassem e se retroalimentassem mutuamente.
De qualquer forma, esse conflito não teria alcançado a violência atual se Israel não tivesse contado com o apoio militar incondicional dos Estados Unidos, desde o momento em que os norte-americanos decidiram transformar o seu pequeno território – do tamanho de Belize – numa cabeça-de-ponte de seus interesses dentro do Oriente Médio, especialmente depois da “Crise do Canal de Suez” em 1956, e da Guerra do Yom Kippur, em 1973, mas sobretudo depois da vitória da revolução islâmica do Irã, em 1979, quando os Estados Unidos perderam um dos pilares fundamentais de sua “tutela geopolítica” do Oriente Médio, obrigando-os a reagrupar suas forças apoiando-se basicamente em Israel e na Arábia Saudita.
Mas mesmo este novo arranjo teve que ser mudado radicalmente depois dos atentados às torres de New York, de setembro de 2001, e depois do início das “guerras sem fim” dos Estados Unidos contra o “terrorismo islâmico”, no Oriente Médio. E, em particular, depois das derrotas militares ou fracassos políticos e diplomáticos norte-americanos no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria e no Iêmen, que erodiram a credibilidade militar dos Estados Unidos e atingiram sua liderança numa região onde crescem cada vez mais a influência próxima do Irã e a influência distante da China e da Rússia, apoiando, evidentemente, a “desobediência” cada vez mais frequente dos países árabes com relação aos desígnios dos Estados Unidos.
Quando se tem presente este pano de fundo consegue-se compreender melhor porque o ataque surpresa do Hamas contra Israel, do dia 7 de outubro de 2023, caiu como uma bomba sobre o Pentágono, onde foi percebido como mais uma humilhação, pelo establishment militar americano. E foi exatamente o tamanho deste choque que explica o apoio imediato e incondicional do presidente norte-americano à violência e à inclemência da extrema-direita fundamentalista de Israel, dentro da Faixa de Gaza. Na verdade, esta nova Guerra de Gaza não está sendo apenas vingança de Israel, está sendo também uma vingança dos Estados Unidos.
Por isto, neste momento, os prognósticos a respeito desta guerra são muito ruins. Benjamin Netanyahu declarou recentemente que seguirá bombardeando Gaza até eliminar completamente o Hamas. Mas ele sabe perfeitamente que esta eliminação é improvável ou impossível e, portanto, sua afirmação apenas encobre sua decisão – já tomada – de continuar os bombardeios, com a destruição completa da infraestrutura física indispensável para a sobrevida da população palestina. Cabe lembrar que o mesmo Benjamin Netanyahu já comparou-se com o presidente Bush e relembrou a resposta americana aos atentados de 2001, que mataram cerca de 3.500 pessoas, através de duas guerras que mataram 150.000 afegãos e 600.000 iraquianos.
Uma comparação e uma referência que adquirem ainda maior gravidade quando se sabe que esta Guerra de Gaza é uma guerra absolutamente assimétrica, entre um Estado que é uma potência atômica, que conta com uma ajuda militar anual dos Estados Unidos, de 3,8 bilhões de dólares; e do outro, um “Estado palestino” que só consegue sobreviver graças a uma ajuda internacional filantrópica, indispensável para o funcionamento da burocracia da Autoridade Palestina na Cisjordânia, e do próprio governo do Hamas, na Faixa de Gaza.
Neste momento, só quem poderia suspender este massacre seriam os Estados Unidos, derrubando o governo de Benjamin Netanahyu. Mas é muito difícil que isto ocorra, exatamente porque o governo americano de Joe Biden está envolvido até a medula nessa guerra, apostando sua própria reeleição em 2024, e tentando recuperar seu prestígio estratégico e militar depois de sua retirada humilhante do Afeganistão, da sua provável derrota na Ucrânia, e mais ainda, depois do fracasso dos seus serviços de inteligência, que não conseguiram antecipar o ataque do Hamas a Israel.
Deste ponto de vista, se poderia dizer que os Estados Unidos estão quase “condenados” a seguir em frente, ficando cada vez mais isolados, ao lado de Israel, aumentando a aposta do seu establishment militar numa “guerra infinita” e cada vez mais violenta, na Faixa de Gaza e em todo o Oriente Médio, se for o caso. Com o perigo de que estes dois povos que se consideram “escolhidos por Deus” acabem se tornando dois povos isolados e “repudiados pela humanidade”.2 Numa espécie de inversão do mito de Babel.*José Luís Fiori é professor Emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O mito de Babel e a disputa do poder global (Vozes). [https://amzn.to/3sOZ7Bn]
Publicado originalmente na revista Observatório do Século XXI, edição de novembro de 2023.
Notas
1. Vide a pesquisa e o relato recente da perseguição judaica e da colaboração com os nazistas, da França, da Itália e de vários outros países europeus, na obra de Geraldine Schwarz, Os amnésicos. História de uma família europeia (Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2022).
2. É importante observar, nesta direção, o resultado da recente votação da Assembleia Geral das Nações Unidas, do dia 2 de novembro de 2023, condenando pela trigésima vez o bloqueio econômico à Cuba, imposto pelos Estados Unidos, que foi aprovado por 197 votos a favor e apenas 2 votos contra, exatamente dos Estados Unidos e de Israel.
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