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quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Guedes & AI-5: por trás da ameaça, o medo dos ricos sobre a possibilidade de revolta do povo. Artigo de Antonio Martins



Ministro acena com fantasma da ditadura, mas seu alvo é outro. Governo teme que onda de protestos contra o neoliberalismo chegue ao Brasil. E, para deslegitimá-los, tenta reduzi-los a revanche partidária

Multidão enfrente os tanques, no Chile. Repressão mostrou-se ineficaz para conter revoltas contra o neoliberalismo. Por isso, governo tenta outra tática: desligitimá-las preventivamente…

“Ninguém vai dar o golpe pelo telefone”, disse Leonel Brizola em 1961, quando a cúpula do Exército ameaçou bombardear o Palácio do Piratini, em Porto Alegre, onde se defendia a legalidade e a posse de João Goulart. O governador armou barricadas e montou uma rede de rádio. Venceu – não por supremacia militar, mas por sagacidade e determinação política. Seu gesto deveria servir de exemplo hoje. Há quem pense, mesmo à esquerda, que há uma ditadura à esquina, porque o ministro Paulo Guedes sugeriu ontem (25/11), em Washington, que o AI-5 pode voltar. Ao invés de ecoar sua fala, mais vale entender o que se esconde por trás dela.
Multiplicaram-se, desde o final de outubro, os sinais de que governo preocupa-se, cada vez mais, com a onda de protestos que sacode a América Latina. Eis a escalada dos fatos:
> Em 26/10, circularam intensamente, nas redes sociais bolsonaristas, orientações para cancelar atos contra a libertação de Lula, que estavam em plena fase de preparação e ocorreriam uma semana depois (em 3/11). O astrólogo Olavo de Carvalho assumiu pessoalmentea desmobilização: “Meu povo amigo, (…) não vamos participar de manifestação alguma na próxima semana. A onda de parar o Brasil (…) só favorece a esquerda”, escreveu ele. Era um atitude defensiva, diante do que ocorria no continente. Na véspera, uma greve geral e uma manifestação gigante, de 1,2 milhão de pessoas, haviam colocado nas cordas o governo neoliberal de Sebastián Piñera, no Chile. Duas semanas antes, o mesmo ocorrera no Equador. Ao se resguardar, o bolsonarismo mostrava já não ter a mesma confiança em sua tropa de choque.
> Vinte dias depois, novo recuo. Em 17/11, Bolsonaro anunciava que não enviaráao Congresso, este ano, a proposta de “Reforma” Administrativa, que havia sido anunciada meses antes, com alarido, por Paulo Guedes. Matéria do site Poder 360º expôs os motivos. Agora, não era apenas o temor externo. O governo avaliou que a repercussão da Medida Provisória criando os “empregos verde e amarelos” foi bem pior que o imaginado. Preocupou-se, em especial, com as críticas generalizadas à tributação em 7,5% do seguro-desemprego, para desonerar os empresários… Imaginou que seria muito arriscado somar, a esta medida, uma “Reforma” que ameaça cortar salários dos funcionários públicos e desativar serviços públicos prestados por eles.
> Na quinta-feira passada (21/11), emergiu a veia repressora. Ao lançar a APB, seu “novo” partido, Bolsonaro anunciou que o governo acabara de enviar ao Congresso Projeto de Lei em que voltava a propor o “excludente de ilicitude”. O dispositivo isenta de responsabilidade penal policiais e militares que matam ou ferem em certas condições. Imaginou-se, a princípio, tratar-se de reedição de item incluído do “Pacote de Segurança Pública” do ministro Sérgio Moro – e já derrubado no Legislativo. O próprio presidente favoreceu esta interpretação, ao afirmar que se tratava de “uma guinada contra a violência”.
Um dia depois, porém, Alberto Kopittke, diretor-executivo do Instituto Cidade Segura, examinava melhor o projeto. Revelava: ele nada tem a ver com criminalidade. Refere-se apenas a ações das Forças Armadas, quando convocadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Kopittke acrescentava: a proposta é quase a “cópia exata” de um decreto, com idêntico sentido, baixado pela “presidente” autoproclamada da Bolívia, Jeanine Ãnez. Sob a proteção deste “decreto” – tão ilegal quanto o próprio mandato de Jeanine –, as Forças Armadas bolivianas já mataram mais de vinte manifestantes.
Mas se a onda de protestos chegar ao Brasil, será possível detê-la a bala? A experiência latino-americana recente tem mostrado que não. Tanto no Chile (onde a repressão fez 22 mortos) quanto no Equador (onde 10 pessoas foram assassinadas pela polícia e exército), os protestos cresceram quando reprimidos. Por isso, vale a pena observar um aspecto menos notado da fala de Paulo Gudes ontem, em Washington: a tentativa de neutralizar a eventual revolta, insinuando que tem caráter partidário e golpista.
Todas as análises demonstram que uma marca central na onda de mobilizações aberta em outubro é sua difusão espontânea. No Chile, no Equador e mais recentemente na Colômbia, partidos políticos e movimentos sociais organizados tiveram papel nulo ou secundário na revolta. Mas Guedes faz questão de atribuir a Lula e à esquerda uma eventual insurgência popular no Brasil. “Chamar o povo à rua é uma irresponsabilidade (…) Ele [Lula] chamou para a confusão”, disse o ministro. E emendou: “Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Aí o filho do presidente fala em AI-5, todo mundo assusta”.
Como a entrevista em Washington foi planejada com pelo menos dois dias de antecedência, é provável que a fala de Guedes seja menos descuidada do que pode parecer. Ela tem caráterpreventivo. Ao reduzir a revolta a uma maquinação de Lula, contrariado com o resultado das urnas, o ministro tenta deslegitimar uma possível onda de protestos.
De quebra, lança isca para colocar na defensiva uma esquerda acomodada. Quanto mais se acreditar (e se alardear) que o governo está a um passo de implantar a ditadura, menos se debaterá o sentido de seus atos concretos. E menos, ainda, se preparará a resistência e as alternativas.
Nessas horas, sente-se a falta que faz um Brizola.
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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Maio de 1968: um convite ao debate. Por Erick Corrêa



Cinquenta anos depois, é ainda mais necessário examinar em profundidade um movimento que indicou o esgotamento do capitalismo mas inspirou, ao mesmo tempo, a “renovação” pós-moderna do sistema



Por Erick Corrêa, no Outras Palavras
1968 constitui um evento de dimensão histórico-mundial (Wallerstein), assim como 1789-91, 1848, 1917, 1989-91, pois assinala um ponto de virada histórico suficientemente persuasivo para instaurar um novo world time (Eberhard). Particularmente contagiante, a expressão francesa da crise internacional, detonada em Paris no mês de maio, funcionaria como uma espécie de catalisador de outras revoltas antissistêmicas em arenas locais distantes como Varsóvia, Praga, Dublin, Berlim, Tóquio, São Paulo, Cidade do México ou Lima.
Devido a esta repercussão mundial da experiência francesa, convencionou-se nos meios jornalísticos e até mesmo acadêmicos reduzir 68 ao maio de 68, uma referência ao mês no qual a contestação de setores esquerdistas do movimento estudantil universitário explodiu nas barricadas da Rua Gay-Lussac, no entorno da Sorbonne em Paris. Já a referência a maio-junho de 68 incorpora o desfecho conclusivo da crise, quando o impacto causado pelos Acordos de Grenelle – pactuados, no fim de maio, pelo Ministério do Trabalho com a Confederação Geral do Trabalho (CGT), sob a direção do Partido Comunista Francês (PCF) –, somado à proibição das organizações revolucionárias mediante decreto governamental de 12 de junho, e a subsequente vitória eleitoral de De Gaulle, conseguiram finalmente canalizar as energias revolucionárias do movimento para saídas reformistas.
Contudo, este ano turbulento não começou nem terminou em 1968, algo que a expressão anos 68 também tenta exprimir. Na Itália, por exemplo, a contestação eclodiu um ano antes da rebelião na França, arrastando-se por mais dez anos.
A cada decênio, repõe-se uma situação de disputa pela memória e significado de 68, sempre renovada por uma série de publicações acadêmicas e editoriais jornalísticos que polemizam sobre o anacronismo ou, pelo contrário (a depender do ponto de vista), sobre a atualidade ou contemporaneidade das aspirações libertárias e energias revolucionárias liberadas naquele ano.
Não há também consenso quanto ao seu impacto sobre a vida social, se este foi subestimado ou superestimado pelos protagonistas daquela geração. Afinal, 68 foi uma revolução social derrotada, ou tudo não passou de uma intentona hedonista e iconoclasta de perturbação do status quo pela juventude revoltada? 68 resultou na vitória da heteronomia e do individualismo pós-moderno ou simboliza um importante marco temporal nos processos de descolonização e de emancipação das populações submetidas às mais diversas formas históricas de opressão (patriarcal, heteronormativa, xenofóbica, étnico-racial, política)?
Algumas interpretações mais dogmáticas chegam a reduzir a história de 1968 a um tudo ou nada maniqueísta, incapaz de perceber a sua dimensão histórica real.
É nesse sentido, nos parece, que a provocação lançada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1984), de que o Maio de 68 não aconteceu, deve ser entendida: pois, se a luta não começou nas barricadas dos dias 10 e 11 de maio, tampouco ela terminou com as eleições de 23 e 30 de junho, mas se desenvolveu posteriormente também nas trincheiras do campo simbólico, isto é, nos conflitos ideológicos pela memória do evento. De fato, as interpretações sobre 68 dividem-se mesmo no interior de campos políticos afins, principalmente à esquerda do espectro sociopolítico, sobretudo na França, país onde o evento despertou as reações mais furiosas e apaixonadas. O caso dos antigos fundadores da revista Socialismo ou Barbárie (1949-67), Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, é exemplar nesse sentido. Para o primeiro, 68 foi uma revolta bem sucedida, enquanto que para o segundo, não passou de uma revolução fracassada.
Guy Debord, fundador de uma pequena, porém influente organização, a Internacional Situacionista (IS, 1957-72), constatou em 88 que nada havia sido até ali “tão dissimulado com mentiras dirigidas” quanto a história de 68. De fato, naquele mesmo ano, surgia pela primeira vez na França um livro sobre 68 produzido pelo campo néocon (neoconservador), chamado O pensamento 68, dos ideólogos Luc Ferry e Alain Renaut.
Vinte anos depois, no livro O pensamento anti-68 (2008), o filósofo Serge Audier alertava para o que chamou de trabalho de deslegitimação de 68, realizado por três atores principais, oriundos de campos políticos e intelectuais distintos, mas que convergiram na interpretação sobre aquele episódio: os gaullistas (retórica do “complô internacional”), os comunistas (retórica das “provocações esquerdistas”) e os neoconservadores (como o ex-presidente Nicolas Sarkozy), que pretendia liquidar a herança de maio de 68.
Em 2018, o atual presidente da França, Emmanuel Macron, restaurou a polêmica sobre o legado de 68 desde um ponto de vista modernisateur que, longe de liquidar com a herança de 68, pretende instrumentalizá-la, ressaltando as supostas características liberal-modernizantes do evento, enquanto oculta seus aspectos mais selvagens (como a greve geral de 10 milhões de trabalhadores com ocupação de fábricas e universidades).
Para os situacionistas[1], “de todos os critérios parciais utilizados para acordar ou não o título de revolução a tal período de perturbação no poder estatal, o pior é seguramente aquele que considera se o regime em vigor caiu ou se manteve. Esse critério […] é o mesmo que permite à informação diária qualificar como revolução qualquer putsch militar que tenha mudado o regime do Brasil, de Gana ou do Iraque”. A “prova mais evidente” do caráter revolucionário de 68, continuam os situacionistas, “para aqueles que conhecem a história do nosso século, ainda é esta: tudo o que os stalinistas fizeram, sem recuo, em todos os estágios, para combater o movimento, prova que a revolução estava lá”[2].
Debord, por sua vez, identificaria justamente na reação a 68 a origem do novo ciclo de dominação da sociedade do espetáculo, denominado espetáculo integrado, quando países de economia capitalista mais avançada (como França e Itália) passaram a incorporar, na tentativa de frear o avanço das forças revolucionárias liberadas internamente no decurso dos anos 1960-70, algumas das técnicas de governo empregadas tanto pelos regimes concentracionários de Stalin e Hitler, como pelas ditaduras militares dos países de economia capitalista mais atrasada (como Portugal, Espanha, Grécia, Chile, Argentina e Brasil) – sem, contudo, uma correlata supressão dos arranjos institucionais do chamado Estado de direito. Ao comentar a “estratégia da tensão” aplicada pelo Estado italiano contra o movimento del ‘77, Debord notou que “só se ouviu falar com frequência de ‘Estado de direito’ a partir do momento em que o Estado moderno, chamado democrático, deixou de ser democrático” (Comentários sobre a sociedade do espetáculo, § XXVI, 1988).
Como vimos, 68 não se restringe temporalmente aos meses de maio e junho, nem espacialmente à França. No Brasil, diferentemente de países formalmente democráticos como Estados Unidos, França e Itália, em 1968 a exceção se encontrava mais à vontade para mostrar o seu próprio rosto, dado que um processo de ruptura democrática já estava em curso no país há quatro anos. Mesmo assim, o ano de 68 foi marcado pela ascensão da resistência à ditadura instaurada em 64.
A luta dos secundaristas cariocas contra o aumento no preço das refeições, no início de 1968, que resultou na morte do estudante Edson Luís e nas mobilizações subsequentes, culminariam na Passeata dos Cem Mil, em junho. A partir do segundo semestre ocorreu a contra-ofensiva dos militares e dos apoiadores civis do regime. Em julho, a ocupação da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), na Rua Maria Antônia, foi destruída por forças militares e paramilitares de orientação anticomunista como o Comando de Caça aos Comunistas (com saldo de mais um estudante morto). Em agosto, forças de repressão invadiram a Universidade de Brasília (UnB), prendendo e espancando estudantes e professores. Em outubro, os militares invadiram o XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, prendendo centenas de lideranças do movimento estudantil. Em dezembro, a decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-5) fecharia ainda mais o regime, dando início aos chamados anos de chumbo. Com a posse do general Emílio Garrastazu Médici, então chefe do SNI [3], em 30 de outubro de 1969, o regime atinge o ponto de indistinção total onde “o serviço secreto não seria apenas mais um órgão da Presidência da República; seria a própria Presidência da República”[4].
Aos ouvidos brasileiros pós-2013, esse debate (pós-68) parece assumir contornos familiares. Afinal, é inquestionável o fato de que tanto 1968 quanto 2013 marcaram, guardadas suas respectivas particularidades históricas, períodos de acirramento das lutas sociais. Parece-nos que o traço mais distintivo entre uma conjuntura e outra, mais do que nas formas e conteúdos da contestação sociopolítica e da repressão policial, consiste no fato de que a violência estatal de 2013 foi operada, desta vez, não por um regime formalmente ditatorial como em 1968, mas por um regime formalmente democrático.
Se se quiser aplicar a crítica teórica do espetáculo – crítica essa fundamentalmente nucleada pela experiência de 68 – à crise sociopolítica brasileira de 2013-18, deve-se ler com especial atenção os escritos de Guy Debord nos anos 1980. Pois a crise e o esgotamento da chamada Nova República testemunham justamente a entrada definitiva do Brasil na era do espetáculo integrado.
_________________________
[1]As críticas téorica e prática dos situacionistas, indissociáveis da crise revolucionária francesa de maio-junho, ainda são pouco lembradas por nossa historiografia sobre 68. Quando mencionadas, incorre-se em algumas imprecisões. Olgária Matos reconhece, por um lado, que “foram os situacionistas que numa mescla de marxismo, anarquismo, surrealismo, fizeram a crítica mais certeira à sociedade ‘espetacular mercantil’, onde tudo se dá sob a forma da mercadoria e esta se dá como espetáculo” (1981, p. 68). Mas erra ao afirmar que “o dia 22 de março marcou a fusão entre o leninismo, o anarquismo e o situacionismo” (Idem, p. 69). De fato, o grupo 22 de Março ao qual ela se refere (fundado em 22/03/68), resultou de uma agremiação eclética que amalgamava, de modo geral, anarquistas, trotskistas e maoístas, mas não os situacionistas. A IS também não “se formou em Strasbourg” (Idem, p. 66), como afirma a autora, mas na Itália em 1957. Os situacionistas foram os pivôs do chamado Escândalo de Strasburgo, em 1966, um dos episódios antecipadores da crise de maio. Porém, apenas um dos membros da IS, Mustapha Kayathi (autor do manifesto A miséria do meio estudantil), detinha contato com estudantes radicais de Strasbourg. Cf. Paris, 1968: As barricadas do desejo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981. Já Daniel Aarão Reis Filho alude a “um texto dos anos 60” (A sociedade do espetáculo, de Guy Debord), para se compreender “o caráter mediático que a política assume desde então” (1999, p. 67). Ocorre que o livro de Debord é de 1967, e não explica 68 a posteriori, mas o antecipa em diversos aspectos, inclusive para além da questão “mediática”. Cf. “1968, O curto ano de todos os desejos”. In: GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice. Rebeldes e contestadores. 1968: Brasil/França/Alemanha. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 1999.
[2]Cf. “O começo de uma época”. In: Internacional Situacionista, n° 12, 1969, p. 13 (Tradução nossa).
[3]O Serviço Nacional de Informações é o serviço secreto brasileiro, vigente entre 1964-90. A partir de 1990, mudaria de sigla outras três vezes. Foi o efêmero DI (Departamento de Inteligência) entre 1990-92, SSI (Subsecretaria de Inteligência) entre 1992-99 e, desde então, Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
[4]Cf. FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005). Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 186.

domingo, 30 de abril de 2017

Eugênio Aragão, Subprocurador da República: "Temer, vaza!"





Como se sentiu na sexta-feira, golpista? Não adianta fingir. Se desse, teria baixado o pau, né? Mas não baixou, porque lhe deu paúra. Gente demais. Mais de 30 milhões de trabalhadores paralisados em todo o País. E seu ministro da porrada, aquele da bancada ruralista, chama isso de pífio. A raposa falando das uvas. Para quem não tem popularidade e é avaliado como o pior "governante" da história do Brasil, tanta gente na rua não é um bom presságio.

Pífios são vocês. Traidores mesquinhos. Gente feia. Smeagols. Poderia ter entrado para a memória como pacificador, dando apoio à Presidenta Dilma Rousseff e articulando sua base parlamentar, mas preferiu comprar bancada para golpeá-la pelas costas com o Eduardo Cunha, que hoje apodrece na cadeia em Curitiba. E agora você distribui cargos num descarado clientelismo, como se a República fosse res privata sua. A FUNAI, por exemplo, não serve mais aos povos indígenas, serve ao PSC, "é do André Moura"... Nada mais impressiona nesse arrastão que você e sua turma promovem no governo. Política indígena, assim como a educacional, a de saúde, a de moradia... tudo deixou de existir. As pastas que deveriam dar suporte às políticas públicas foram transformadas em regalos para os politiqueiros sem princípios que lhe dão apoio por pura ganância e ambição. Nunca o Brasil chegou tão baixo.

Já não nos comovem cenas deprimentes como aquela experimentada semana passada por seu ministrinho da falta de educação, o Mendoncinha, que gosta de conselhos de ator pornô. Saiu da Universidade Federal da Bahia cortando a cerca, para não ser vaiado pelos estudantes. Neste seu "governo", nada mais surpreende. Nem mesmo manter nos seus cargos oito ministros investigados por corrupção.

Você conseguiu zerar o investimento público neste ano. Assaltou o BNDES, desviando 1 bilhão de reais de seus cofres. Tudo para debelar uma crise que você e os seus criaram para derrubar uma Presidenta eleita com 54 milhões de votos. Depois a aprofundaram com um déficit primário artificial de 170 bilhões de reais, para distribuir 50 bilhões a amigos. E este ano quis fazer a mesma coisa, não fossem os cofres vazios.

Para alimentar sua rede de favores, resolveu desnacionalizar o Brasil, vendendo campos de petróleo a preço de banana para companhias estrangeiras, abrindo o mercado aéreo para empresas não brasileiras, permitindo a venda de terras a estrangeiros sem qualquer limite e por aí vai. É o jeito de manter seu cassino funcionando, né? Ou será o butim que coube a seus aliados do Norte na guerra que moveu contra nossa jovem democracia?

E acha que nós aceitamos pagar a conta desse seu jogo contra a sociedade? Claro que não. Quando as instituições se omitem na defesa da democracia, devolve-se ao detentor da soberania popular – ao povo – o direito de resistir à arbitrariedade. Somos nós os verdadeiros e originários guardiões da Constituição! Os próximos dias de seu "governo" serão seu ocaso. É bom se acostumar. Sexta-feira foi só o começo. Quem sabe a gente se surpreenda em algum momento próximo com um lampejo de dignidade que em toda sua vida não mostrou e possa aceitar seu pedido de renúncia na paz? Sonhar é de graça. Mas seria melhor assim. Seria melhor você sair pela porta dos fundos da história, para não ter que passar por seu corredor polonês pela frente.

Agora, se insistir nessa coisa bandida de destruição da previdência pública para enriquecer seus sócios de fundos financeiros e em pensar que o trabalhador brasileiro é otário e se submeterá a seu capricho de nos catapultar de volta para o regime constitucional de 1891, estará escolhendo o caminho mais doloroso. O povo vai se transformar no pior pesadelo de sua malta. Pense bem antes de testar. Ano que vem – ou até antes – haverá eleições. Ainda é tempo de recuar.

O dia 28 de abril de 2017 foi nossa primeira resposta, a da sociedade brasileira, ao espetáculo deprimente que você e seus ratos no Congresso protagonizaram em 17 de abril de 2016. Foi uma resposta à altura e é bom ouvi-la. Sua liga de super-heróis, a Rede Globogolpe e os MBLs da vida, não tem tamanho para enfrentar o que começamos sexta-feira. Quem viver verá.

Vaza, Temer, vaza!

Eugênio Aragão

Fonte: Contexto Livre

quinta-feira, 16 de março de 2017

Do Pragmatismo Político: O Dia em que o Brasil Parou sem a ajuda da Globo


O Brasil parou nesta quarta-feira (15/03) sem a ajuda da imprensa. Pelo contrário, a Globo e outros veículos da mídia tradicional fizeram um esforço tremendo para garantir que nada estava acontecendo

manifestações fora temer brasil parou

A população brasileira foi às ruas nesta quarta-feira (15) em todas as capitais do país e no distrito federal para protestar contra as reformas trabalhista e da Previdência propostas pelo governo Temer.
O Dia Nacional de Paralisações foi organizado por professores da rede pública, estudantes, motoristas, metroviários, metalúrgicos, bancários, aposentados, movimentos sociais e sindicais. Foram registrados atos em mais de 200 cidades do Brasil.
Como era de se esperar, as manifestações não tiveram a devida cobertura da mídia, nem antes, nem durante e nem depois. Sem helicópteros, sem drones e entradas ao vivo. Pelo contrário, os protestos chegaram a ser criminalizados pelos veículos da imprensa tradicional.
Nunca é demais lembrar que a TV Globo, à época dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, foi elemento central para o sucesso de público daquelas manifestações, já que convocava os atos desde as primeiras horas do dia.
avenida paulista manifestação 15 03
Imagem da avenida paulista nesta quarta-feira (15/03)
Na avenida paulista, em São Paulo, onde os organizadores estimaram um público de mais de 200 mil pessoas, não havia apenas gente identificada com bandeiras do campo progressista.
Várias pessoas diziam que foram enganadas pela Globo e que perceberam que foram lesadas. “Estamos acordando e aderindo à luta”, disse uma manifestante que participava de um ato popular pela primeira vez.
Imagem da manifestação no Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro Candelária 15 03
Uma professora que caminhava pela paulista reclamava que o projeto que Michel Temer tenta implantar no Brasil foi rejeitado pelas urnas. “Esse golpe foi contra os trabalhadores, os aposentados e, principalmente, contra as mulheres”.
Guilherme Boulos, coordenador do MTST, reforçou o que a reportagem de Pragmatismo Político identificou nas ruas. “O dia de hoje é um marco. Até aqui, nas últimas manifestações, estavam vindo às ruas apenas os movimentos organizados. Hoje tivemos um salto de qualidade. Muita gente que não está necessariamente mobilizada veio às ruas. Começou a cair a ficha sobre o tamanho do ataque das reformas trabalhista e da Previdência. É o início de um novo momento”.
A avaliação de Raimundo Bonfim, coordenador da Frente Brasil Popular, vai no mesmo sentido. “Está caindo a ficha da população. No momento do impeachment de Dilma a coisa era mais politizada. Nesse momento, é uma questão concreta, o povo está fazendo as contas. Não é uma coisa que depende de filiação partidária, o prejuízo [se aprovadas as reformas trabalhista da Previdência] vai ser de todo mundo”.
Por tudo o que se viu neste 15/03, é impossível dar as costas para o óbvio: sem a ajuda da Globo, o Brasil parou.
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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Do El País: O golpe nos feios, sujos e malvados, artigo de Xico Sá


Do El País:

Você ai, amigo, não se faça de frio ou desentendido, sem esse papo de reforma sem mexer com os podres de rico... Assim é fácil



Michel Temer, nesta quinta-feira.  EFE
Tento voltar a ser um cronista do amor lírico e louco, mas sempre vem uma notícia ruim e me faz seguir no relato da poeira das ruas, por supuesto. É preciso falar dos feios, sujos e malvados que morrem de morte morrida muito antes de qualquer previdência pública ou privada, muito antes da média das estatísticas, antes dos cálculos dos burocratas, no país onde os meninos cortam cana-de-açúcar antes dos dez e os adultos morrem de morte matada na véspera dos trinta.
Você ai, amigo, não se faça de frio ou desentendido, sem esse papo de reforma sem mexer com os podres de rico, assim é fácil, assim vira manchete limpinha, assim não mexe com os banqueiros, muito menos com os barões da velha casa-grande, assim os comentaristas dos telejornais aplaudem, que lindos infográficos!, vamos cortar na carne, no osso, passa a motosserra, você aí, compadre, cai na metáfora do âncora bonitinho – uma família não pode gastar mais do que arrecada –, só que não sabe que essa economia nada familiar é apenas para pagar juros de uma dívida pública que não tem nada a ver com a sua vida, o seu sal, o seu açúcar, morô?
É o jogo das ilusões, também já cai muito, se liga.
Rasgue esse carnê da dívida eterna, se revolte, vamos à rua contra esses pestes, tente entender melhor o noticiário que é a favor dos ricos e de quem faz dinheiro à sua custa, juro, juros, não importa a cor do partido, o que você tem a ver com quem sempre viveu da sua audiência e agora tenta apenas dividir contigo a velha culpa? Se ligue, cuidado com o truque, quanto mais carece de comentarista mais ilusionismo, mude de canal, please, melhor conversar na esquina.
Não estou aqui de passagem, estou desde 1962, por que tentam aplicar o varejismo do golpe, um dentro do outro, mesmo sabendo que nossas fatigadas retinas estão cansadas de golpismos?
Ah, tá, porque a agenda econômica bate com a superstição neoliberal da hora, que bonito! Aí vem o milagre. A mesma crença unânime da mídia brasileira convencional de que bastaria o vice-traíra assumir no lugar da Dilma para tudo ficar cor-de-rosa. Isso foi vendido página a página, coluna a quinta-coluna. Assim se construí, conta a conta do rosário golpista, o que vivemos agora.
Sim, as instituições estão funcionando, me diz aqui o Ubu-Rei, perdão, o supermacho Alfred Jarry, o filósofo da patafísica, a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções. Lindo.
Óbvio que mesmo a lógica patafísica é infinitamente mais razoável do que o pensamento da legião que caiu no conto do patinho amarelo da Fiesp do sr. Skaf, pego de calça curta na delação da Odebrecht. Propina braba além do caixa 2. Senhor de escravos modernos da Paulista é isso aí, que beleza, isso dá capoeira na senzala. Bonito.
Não, não vamos rir agora, nem por último, nem por escárnio de saber que hoje só vale a obsessão Lula qual a bíblica cabeça de São João Batista.
Ah, jamais vale a lógica (patafísica?) de saber que o Brasil dos corruptos, sem nenhum distanciamento odebrechtiano – expressão que cunhei quando fiz minhas primeiras reportagens sobre o inocente setor das empreiteiras durante o governo FHC – jamais será punido por inteiro. Só a parte manjada e encarnada. A essa altura da madruga, amigos, sou testemunha ocular da história, o senador Aécio Neves, tucano mineiro, toma tranquilamente o seu uísque no Leblon, Rio de Janeiro. Quem tem amigo no poder Judiciário brasileiro tem tudo! Acho chique!
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Josué de Castro -por um mundo sem fome”, entre outros livros. Na televisão, é comentarista dos programas “Papo de Segunda”(GNT) e “Redação Sportv”.

domingo, 4 de setembro de 2016

Em maior ato, protesto "Fora Temer" lota avenida Paulista neste dia 04 de setembro de 2016. Notícias Terra.



Do Notícias Terra:

Manifestantes protestam na Avenida Paulista, neste momento, em São Paulo, contra o impeachment de Dilma Rousseff, afastada do cargo pelo Senado Federal, na semana passada. Eles pedem a saída do presidente Michel Temer e a realização de novas eleições para presidente no país. O protesto foi organizado pelos movimentos Frente Povo Sem Medo e Frente Brasil Popular, contando com a participação de políticos.
Foto: J. Duran Machfee / Futura Press

"Hoje é mais uma mobilização popular pelo Fora Temer exigindo Diretas Já eleições para presidente do país, e defendendo nossos direitos", disse Guilherme Boulos, um dos líderes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e da Frente Povo Sem Medo, em entrevista à Agência Brasil . "Queremos reafirmar também nosso direito à manifestação. É escandaloso o que foi feito pela Polícia Militar e pela Secretaria de Segurança, não só aqui (em São Paulo), nas manifestações dessa última semana".

A concentração foi marcada para a frente do Museu de Arte de São Paulo (Masp), onde os manifestantes estão, neste momento. A ideia dos organizadores é seguir em caminhada até o Largo da Batata, passando pela Avenida Rebouças. Apesar de, neste momento, o ato ocorrer de forma pacífica, houve momento de tensão, quando uma fila de policiais militares começou a chegar ao local, acompanhada de vaias e gritos de frases como "Queremos o Fim da Polícia Militar e Fascistas". Um dos manifestantes arremessou uma garrafa em direção aos policiais e um dos policiais ameaçou responder, mas isso não aconteceu. Do caminhão de som, os organizadores pediram calma aos manifestantes, pedindo que não respondessem a provocações.Foto: J. Duran Machfee / Futura Press

Em São Paulo, a semana foi marcada por protestos contra o impeachment de Dilma Rousseff e por pedidos de Fora Temer. Houve protestos de segunda a sexta-feira e, em todos, houve repressão da Polícia Militar e violência. Em um deles, uma manifestante apresentou ferimentos no olho e corre o risco de perder a visão. Nos últimos protestos, foi constatada a presença de black blocs, com depredações de bancos e de lojas.

"Não esperamos confronto nenhum [hoje]. Nosso confronto é com o governo golpista. Mas nosso objetivo aqui não é ter enfrentamento na rua. Nosso objetivo é fazer com que a manifestação aconteça e dê o seu recado para o Brasil todo do que nós queremos", disse Boulos.

Foto: Peter Leone / Futura Press

Para Vagner Freitas, presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e um dos líderes da Frente Brasil Popular, o ato de hoje na Avenida Paulista é fechado em três temas: "É o Fora Temer e esse desgoverno ilegítimo; nenhum direito a menos, porque o que se apresenta é a retirada de direitos dos trabalhadores e sociais e da democracia; e o povo quer lutar. Consideramos esse governo ilegítimo e seria importante, para voltar a normalidade democrática, que a população pudesse ser atendida em uma votação direta para legitimar o governo", disse.

Freitas disse não esperar por confrontos no protesto de hoje. "Da nossa parte, não. Mas não tenho dúvida nenhuma de que a imprensa deve denunciar ao mundo a escalada de violência que vive o Brasil. É lamentável que uma menina perca a visão, não sei se perdeu, espero que não, mas essa possibilidade dela perder a visão, e a polícia não fazer nada e o secretário não dar uma reclamação sobre isso."


Foto: Peter Leone / Futura Press

Segundo o presidente da CUT, os manifestantes decidiram fazer uma caminhada - e não ficar parados na Avenida Paulista, para indicar que "estão em movimento". "Movimento é movimento. Queremos demonstrar que estamos em luta e na rua e não vamos ficar parados".

A Agência Brasil procurou o Palácio do Planalto para saber se o presidente iria se manifestar sobre os protestos de hoje no país, mas a resposta foi de que não haveria declarações sobre o assunto.

A Polícia Militar não divulgou o número de manifestantes até este momento.

Foto: Renato S. Cerqueira / Futura Press

Polêmica

O protesto deste domingo começou com uma polêmica. Na última quinta-feira (1), após uma sequência de protestos violentos diários na cidade de São Paulo [em todos eles, com forte repressão policial e, nos dois últimos, com a presença também de black blocs, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse que o protesto de domingo, marcado para a Avenida Paulista, estaria proibido. O protesto havia sido convocado pela internet pelos movimentos Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo, para o horário das 14h, em frente à sede da Fiesp. Mais de 20 mil pessoas confirmaram presença ao ato nas redes sociais.

Uma das razões para a proibição do protesto foi a de que este poderia prejudicar a passagem da Tocha Paralímpica, no mesmo local, segundo a Secretaria de Segurança Pública. Outro motivo foi o fato de que os organizadores não tinham avisado o órgão sobre o ato. Em nota, a secretaria ressaltou que, conforme determina a Constituição, é obrigatória a comunicação de hora, local e trajeto em que se realizarão os atos públicos.


Foto: Peter Leone / Futura Press

terça-feira, 19 de julho de 2016

Anatomia de um golpe fracassado (na Turquia, é claro)

160718-Turquia
Presidente turco soube mobilizar, além de sua base islâmica, juventude urbana contrária à quartelada. Tenentes que tentaram assumir poder cometeram erros grosseiros. Sua vitória seria trágica
Por David Barchard, no Prospect | Tradução Antonio Martins (no Outras Palavras)
Ser acordado à meia noite, por notícias de uma tentativa de golpe, era provavelmente a última coisa que alguém poderia esperar na Turquia, numa noite de sexta-feira. Sim, concorda-se em geral que o país está em situação política delicada, enfrentando desafios armados do Estado Islâmico, dos militantes curdos e (segundo o governo), de um movimento dirigido por um clérigo exilado, que vive desde 1999 na costa leste dos Estados Unidos. Além disso, continua a deriva para um sistema político autoritário, de viés islâmico, e diversos parlamentares oposicionistas parecem às vias de enfrentar processos judiciais – ou prisão – por opiniões expressas em discursos.
Mas quando, por volta das onze da noite, o primeiro-ministro Binal Yildririm anunciou que uma intentona estava aparentemente em curso, a incredulidade foi geral. Os militares já dominaram a vida do país, uma força pretoriana que os políticos institucionais não puderam (ou talvez não quiseram) enfrentar. Mas quando os islâmicos chegaram ao poder, em 2002, os militares não se levantaram – apesar de sua evidente contrariedade. E entre 2008 e 2012, seu poder foi reduzido por meio de uma série de prisões e processos por conspiração. O próprio presidente Erdogan, ao final, envolveu-se na disputa.
Testemunhei o último grande golpe militar na Turquia, em 12 de setembro de 1980. Foi anunciado um pouco antes da alvorada. Sua organização e desdobramentos foram planejados com extremo cuidado. No momento da deflagração, os políticos já haviam sido presos e afastados. A lei marcial entrou em vigor imediatamente, em todo o país. Uma junta foi anunciada e empossada. Havia tanques em todas as esquinas e um toque de recolher geral. Acima de tudo, o golpe militar de 1980 ocorreu num momento em que a política do país estava completamente bloqueada; a economia em ruínas; os cidadãos comuns pediam um governo forte e estabilidade – por isso, aceitaram a mudança, ao menos num primeiro momento, com grande alívio; inclusive porque os militares sublinharam que tudo estava ocorrendo “dentro da cadeia de comando”.
Nada disso ocorreu agora. Os organizadores agiram, estranhamente, no final da noite, ao invés do início da madrugada. Não foram capazes de bloquear a TV e as mídias sociais. Assumiram o controle de alguns pontos – as pontes que cruzam o Estreito de Bósforo – mas fracassaram quanto tentaram bloquear a estação terrestre de satélites Gölbsi, na periferia de Ankara. Por isso, a população pôde saber que 42 pessoas foram mortas, na batalha pela estação. Os golpistas parecem não ter prendido políticos – muito menos, o presidente e o primeiro-ministro.
Eles também não tinha a aparência de legitimidade que nasce, na Turquia, do controle da cadeia de comando. O chefe do comando geral, general Hulusi Akar, foi capturado e preso. Muitos outros generais recusaram-se a se somar ao golpe. Em uma ou duas horas, estavam emitindo apelos contra a quartelada. Parece que a força aérea, normalmente considerada o braço mais radical dos militares, não se envolveu, e que os líderes do golpe eram oficiais com grau de coronel ou inferior – inclusive um conjunto de tenentes, muito jovens para ter peso no exército. Tentaram tornar pública a declaração de constituição de uma junta, denominada “Conselho de Paz”, que, no entanto, não tinha assinaturas. Falou-se em lei marcial, mas ela não chegou a ser implantada.
Tornou-se claro, ao contrário, que os golpistas enfrentavam oposição não apenas dos 50% do eleitorado turco – islâmicos conservadores – que apoia o presidente Erdogan, mas também de liberais e da classe média que se opõem fortemente a ele.  Os jovens turcos cresceram com memórias – às vezes narrativas exageradas – do golpe militar de 1980, da repressão contra a esquerda que veio em seguida, os julgamentos em massa, a tortura e as mortes sob tortura. Os militares, vale dizer, promoveram uma liberalização da economia, mas a memória de sua aspereza persiste. Ninguém atiraria flores aos tanques turcos, num golpe deflagrado hoje.
E na Turquia de 2016, o clero islâmico também joga um papel mais aberto que no passado. Nas primeiras horas da manhã de sábado, os minaretes e as mesquitas emitiram um chamado especial à oração, chamando os fiéis a defender a pátria.
O presidente Erdogan, em férias num hotel em Marmaris, costa sudoeste, retomou rapidamente a iniciativa, apesar da falta de apoio em seu entorno. Deu entrevistas à TV, usando a câmera de seu celular – e no meio da noite, havia encontrado um pequeno avião para levá-lo de volta a Istambul.
O fato de ele poder fazer tal viagem em meio a uma tentativa de golpe revela a falta de planejamento e a aparente falta de apoio dos golpistas, entre o conjunto dos militares. Boa parte do exército e toda a força policial (na Turquia, uma instituição em geral pró-islâmica) permaneceu leal ao governo. Houve banho de sangue em escala considerável – acredita-se que mais de 200 pessoas morreram até agora, em conflitos em Ancara e Istambul. Houve bombardeios nas proximidades do palácio presidencial, matando cinco pessoas, e a Grande Assembleia Nacional também foi alvejada. O primeiro-ministro Yildirm diz que mais de 2800 oficiais foram até agora detidos, entre eles cinco generais. A agência turca de notícias, dirigida pelo governo, diz que dez membros do Conselho de Estado, a instância administrativa mais alta, foram presos, e que mais de 2700 juízes foram removidos. Novas prisões e julgamentos inevitavelmente virão. É mais provável que, em vez de se diluir, a tendência ao autoritarismo se aprofunde.
Mas a Turquia livrou-se de um governo militar, dirigido pelo que teria sido provavelmente um regime de jovens oficiais – ou, ainda pior, um mergulho provável em guerra civil entre apoiadores e oponentes do governo eleito –, num momento em que ainda luta de modo áspero contra o terrorismo.