quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Guedes & AI-5: por trás da ameaça, o medo dos ricos sobre a possibilidade de revolta do povo. Artigo de Antonio Martins



Ministro acena com fantasma da ditadura, mas seu alvo é outro. Governo teme que onda de protestos contra o neoliberalismo chegue ao Brasil. E, para deslegitimá-los, tenta reduzi-los a revanche partidária

Multidão enfrente os tanques, no Chile. Repressão mostrou-se ineficaz para conter revoltas contra o neoliberalismo. Por isso, governo tenta outra tática: desligitimá-las preventivamente…

“Ninguém vai dar o golpe pelo telefone”, disse Leonel Brizola em 1961, quando a cúpula do Exército ameaçou bombardear o Palácio do Piratini, em Porto Alegre, onde se defendia a legalidade e a posse de João Goulart. O governador armou barricadas e montou uma rede de rádio. Venceu – não por supremacia militar, mas por sagacidade e determinação política. Seu gesto deveria servir de exemplo hoje. Há quem pense, mesmo à esquerda, que há uma ditadura à esquina, porque o ministro Paulo Guedes sugeriu ontem (25/11), em Washington, que o AI-5 pode voltar. Ao invés de ecoar sua fala, mais vale entender o que se esconde por trás dela.
Multiplicaram-se, desde o final de outubro, os sinais de que governo preocupa-se, cada vez mais, com a onda de protestos que sacode a América Latina. Eis a escalada dos fatos:
> Em 26/10, circularam intensamente, nas redes sociais bolsonaristas, orientações para cancelar atos contra a libertação de Lula, que estavam em plena fase de preparação e ocorreriam uma semana depois (em 3/11). O astrólogo Olavo de Carvalho assumiu pessoalmentea desmobilização: “Meu povo amigo, (…) não vamos participar de manifestação alguma na próxima semana. A onda de parar o Brasil (…) só favorece a esquerda”, escreveu ele. Era um atitude defensiva, diante do que ocorria no continente. Na véspera, uma greve geral e uma manifestação gigante, de 1,2 milhão de pessoas, haviam colocado nas cordas o governo neoliberal de Sebastián Piñera, no Chile. Duas semanas antes, o mesmo ocorrera no Equador. Ao se resguardar, o bolsonarismo mostrava já não ter a mesma confiança em sua tropa de choque.
> Vinte dias depois, novo recuo. Em 17/11, Bolsonaro anunciava que não enviaráao Congresso, este ano, a proposta de “Reforma” Administrativa, que havia sido anunciada meses antes, com alarido, por Paulo Guedes. Matéria do site Poder 360º expôs os motivos. Agora, não era apenas o temor externo. O governo avaliou que a repercussão da Medida Provisória criando os “empregos verde e amarelos” foi bem pior que o imaginado. Preocupou-se, em especial, com as críticas generalizadas à tributação em 7,5% do seguro-desemprego, para desonerar os empresários… Imaginou que seria muito arriscado somar, a esta medida, uma “Reforma” que ameaça cortar salários dos funcionários públicos e desativar serviços públicos prestados por eles.
> Na quinta-feira passada (21/11), emergiu a veia repressora. Ao lançar a APB, seu “novo” partido, Bolsonaro anunciou que o governo acabara de enviar ao Congresso Projeto de Lei em que voltava a propor o “excludente de ilicitude”. O dispositivo isenta de responsabilidade penal policiais e militares que matam ou ferem em certas condições. Imaginou-se, a princípio, tratar-se de reedição de item incluído do “Pacote de Segurança Pública” do ministro Sérgio Moro – e já derrubado no Legislativo. O próprio presidente favoreceu esta interpretação, ao afirmar que se tratava de “uma guinada contra a violência”.
Um dia depois, porém, Alberto Kopittke, diretor-executivo do Instituto Cidade Segura, examinava melhor o projeto. Revelava: ele nada tem a ver com criminalidade. Refere-se apenas a ações das Forças Armadas, quando convocadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Kopittke acrescentava: a proposta é quase a “cópia exata” de um decreto, com idêntico sentido, baixado pela “presidente” autoproclamada da Bolívia, Jeanine Ãnez. Sob a proteção deste “decreto” – tão ilegal quanto o próprio mandato de Jeanine –, as Forças Armadas bolivianas já mataram mais de vinte manifestantes.
Mas se a onda de protestos chegar ao Brasil, será possível detê-la a bala? A experiência latino-americana recente tem mostrado que não. Tanto no Chile (onde a repressão fez 22 mortos) quanto no Equador (onde 10 pessoas foram assassinadas pela polícia e exército), os protestos cresceram quando reprimidos. Por isso, vale a pena observar um aspecto menos notado da fala de Paulo Gudes ontem, em Washington: a tentativa de neutralizar a eventual revolta, insinuando que tem caráter partidário e golpista.
Todas as análises demonstram que uma marca central na onda de mobilizações aberta em outubro é sua difusão espontânea. No Chile, no Equador e mais recentemente na Colômbia, partidos políticos e movimentos sociais organizados tiveram papel nulo ou secundário na revolta. Mas Guedes faz questão de atribuir a Lula e à esquerda uma eventual insurgência popular no Brasil. “Chamar o povo à rua é uma irresponsabilidade (…) Ele [Lula] chamou para a confusão”, disse o ministro. E emendou: “Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Aí o filho do presidente fala em AI-5, todo mundo assusta”.
Como a entrevista em Washington foi planejada com pelo menos dois dias de antecedência, é provável que a fala de Guedes seja menos descuidada do que pode parecer. Ela tem caráterpreventivo. Ao reduzir a revolta a uma maquinação de Lula, contrariado com o resultado das urnas, o ministro tenta deslegitimar uma possível onda de protestos.
De quebra, lança isca para colocar na defensiva uma esquerda acomodada. Quanto mais se acreditar (e se alardear) que o governo está a um passo de implantar a ditadura, menos se debaterá o sentido de seus atos concretos. E menos, ainda, se preparará a resistência e as alternativas.
Nessas horas, sente-se a falta que faz um Brizola.
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