quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Neofascismo à brasileira? Artigo do especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, Luis Castro


"Com agir digno de causar inveja ao “garoto mimado da história humana” descrito por José Ortega y Gasset , que “se comporta exclusivamente como herdeiro”, querendo “impor sua barbárie íntima” estes “cidadãos de bem” não se dignam a ouvir o “outro”, quanto menos debater as ideias supostamente contrárias as suas. E o que é pior, em nossa visão, se utilizam de argumentos de autoridade para legitimar suas propostas e, ao mesmo tempo, fugir do debate, em especial “os mais de dois milhões de assinaturas” ; o “apoio maciço da sociedade brasileira que também por outros meios se manifestou”.
Inflamam o coletivo “com a grande vantagem de saber de antemão o que a plateia deseja ou espera ouvir” (afinal quem não é contra a corrupção?). Preparam o discurso “com muito cuidado para consumo público de modo a torna-lo crível, haja vista saberem que “uma vez estabelecido no imaginário público um significante pode ser destacado de seu significado, posto a flutuar e ser religado metafórica ou metonimicamente a um número indefinido de significados”.
Artigo do especialista em Direito Penal Econômico e Europeu, Luis Castro, publicado no Justificando:

Neofascismo à brasileira?


Medo, segundo Zygmunt Bauman[2], é “o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrenta-a, se cessá-la estiver além do nosso alcance.”
O medo, portanto, segue o saudoso sociólogo, é um sentimento inerente a todos os seres vivos (ainda que por instinto) e em sua essência apresenta-se como um mecanismo de proteção às situações que podem ameaçar suas vidas.
Contudo, conforme denominado por Hughes Lagrange[3], os homens apresentam um medo derivado o qual pode ser descrito como “o sentimento de ser suscetível ao perigo; uma sensação de insegurança” e vulnerabilidade, cujo pressuposto é a falta de confiança nos mecanismos de defesas contra o perigo. Bem por isto, Bauman, sentencia que “uma pessoa que tenha interiorizado uma visão de mundo que inclua a insegurança e a vulnerabilidade recorrerá rotineiramente, mesmo na ausência de ameaça genuína, às reações adequadas a um encontro imediato com o perigo; o medo derivado adquire a capacidade de auto propulsão”
E eis aqui, ao nosso ver, um dos maiores problemas da sociedade atual, pois é nesta zona que atuam “alguns aprendizes de feiticeiro super ambiciosos, mas desafortunados e propensos a acidentes e calamidades, ou mesmo um gênio maligno que imprudentemente se deixou sair da garrafa.”[4]
Dizemos isto, pois a despeito de ser inequívoco que o perigo sempre coexistiu e sempre coexistirá com a vida, novos medos são criados por estes “aprendizes de feiticeiro”, mas não sem antes ser apresentado, por eles próprios, é claro, ao antídoto milagroso.
Isto é, o medo torna-se um instrumento ambivalente excepcional, já que útil, por exemplo, tanto como fomentador da economia (por razões óbvias), quanto como meio de controle e/ou expansão de determinado poder em relação ao outro dentro da sociedade como, pesa dizer, vê-se atualmente no Brasil, notadamente em relação à corrupção.
Sim, pois conquanto seja absolutamente unânime que a corrupção é um verdadeiro câncer e, como tal, deve ser rigorosamente combatida como, de fato, vem sendo combatida auspiciosamente, determinado grupo de pessoas e instituições vem, pesa dizer, disseminando o dito “medo derivado”.
Para tanto, este grupo que se autoproclamam “cidadãos de bem”; os “mocinhos” ao melhor estilo dos filmes de western, aproveitando a sensação de insegurança já vivida pela população brasileira (por outros motivos), entoam um coro focado na falta de confiança dos mecanismos de defesa contra a corrupção. Ou seja, que a legislação vigente é ineficiente para erradicar a corrupção no Brasil.
O único meio de se alcançar este resultado, por conseguinte, é, segundo eles, procedendo a implementação de “mudanças sistêmicas e estruturais”[5]Evidentemente que estes “cidadãos de bem” não estão falando de quaisquer mudanças, mas exclusivamente daquelas por eles propostas, tal como ocorreu com o perigo do bug[6] do milênio, afinal, o conhecimento acerca do antídoto milagroso contra a corrupção é um privilégio seu.
E justamente por ser uma exclusividade sua, qualquer proposta de “mudança sistêmicas e estruturais” diversa da sua significa que o seu autor é “a favor da corrupção” e, “por óbvio” merece queimar no mármore do inferno.
Com agir digno de causar inveja ao “garoto mimado da história humana” descrito por José Ortega y Gasset [7], que “se comporta exclusivamente como herdeiro”, querendo “impor sua barbárie íntima” estes “cidadãos de bem” não se dignam a ouvir o “outro”, quanto menos debater as ideias supostamente contrárias as suas. E o que é pior, em nossa visão, se utilizam de argumentos de autoridade para legitimar suas propostas e, ao mesmo tempo, fugir do debate, em especial “os mais de dois milhões de assinaturas” [8]“apoio maciço da sociedade brasileira que também por outros meios se manifestou”.
Inflamam o coletivo “com a grande vantagem de saber de antemão o que a plateia deseja ou espera ouvir” (afinal quem não é contra a corrupção?). Preparam o discurso “com muito cuidado para consumo público de modo a torna-lo crível [9], haja vista saberem que “uma vez estabelecido no imaginário público um significante pode ser destacado de seu significado, posto a flutuar e ser religado metafórica ou metonimicamente a um número indefinido de significados”. [10]
Na feliz frase de Neil Sheehan, estes “cidadãos de bem” são os “resolvedores de problemas profissionais”, isto é, são pessoas egressas das melhores universidades e que, a despeito de serem inegavelmente inteligentes, são extremamente racionais. Assim, valem-se de “scripts escritos para plateias imaginárias e a cuidadosa lista de comumente três opções – A, B, C – onde A e C representam os extremos opostos e B a solução mediana lógica do problema”. [11]
Contudo, como muito bem assenta Hannah Arendt, “a falha de tal raciocínio começa em querer reduzir as escolhas a dilemas mutuamente exclusivos; a realidade nunca se apresenta como algo tão simples como premissas para conclusões lógicas. O tipo de raciocínio que apresenta A e C como indesejáveis e assim decide por B, dificilmente serve algum outro propósito que não o de desviar a mente e embotar o juízo para a infinidade de possibilidades reais”. [12]
Claro, pois a escassez de informações “engendra a falta de consciência crítica e, por consequência, a fácil manipulação do indivíduo”, isto é, “ falta de instrução é, antes de tudo, privação de escolha e castração de acertada deliberação”. [13]
E a “bola da vez” a reafirmar esta conclusão é o alvoroço causado pelo PL 280/2016 do Senado, o qual “define os crimes de abuso de autoridade e dá outras providências”.
Isto porque, bastou a aprovação do mencionado projeto pela Câmara Federal para pulularem as mais diversas manifestações assentando, por exemplo, que “A aprovação da lei de abuso de autoridade pode significar o fim da Operação Lava Jato” [14]; “O projeto que tipifica como abuso de autoridade a mera interpretação da lei e que prevê a punição dos juízes por crimes de responsabilidade são tentativas claras de ferir a independência funcional dos magistrados, tendo como fim amedrontar os responsáveis pela condução de investigações notoriamente bem sucedidas, como a operação Lava Jato, Acrônimo, Zelotes, entre outras”[15].
Parafraseando o Exmo. Ministro Roberto Barroso, penso haver “muito choro e ranger de dentes, mas eu não tenho o sentimento de que” esta indignação toda esteja fundada em interesses outros que não a “proteção” até agora existente aos membros integrantes da Justiça, leia-se Poder Judiciário e Ministério Público, contra tudo e contra todos.
A corroborar nossa opinião, destaca-se o indisfarçado método de raciocínio “A, B, C” acima denunciado, cujo mote é única e exclusivamente desviar a mente do real problema e, com isto, reduzir sua análise à uma única solução que, sem dúvida alguma, é, ironicamente, aquela defendida pelos “cidadãos de bem”/”resolvedores de problemas profissionais”, como você preferir chamar.
Com o devido respeito, não passa de mais um discurso cuidadosamente preparado para consumo público; fácil de ser repedido e, principalmente, defendido por qualquer mortal comum, independentemente do seu grau de compreensão do que se está a debater.
Note-se que, se aprovado PL 280/2016 não será o “fim da Operação lava jato” ou de qualquer outra operação policial, pelo só fato de que, até onde se tem notícia tanto o Ministério Público, quanto o Poder Judiciário repetidamente aduzem, não haver uma só ilegalidade na condução dos trabalhos levada a cabo nesta operação policial!
Logo, se não há qualquer ilegalidade, leia-se abuso, evidentemente que a lei não se aplicará àqueles que a conduzem, pelo só fato de que no Brasil “o Direito Penal é, por excelência, um Direito Tipológico” [16], de modo que somente há que se falar na prática de um crime, de abuso de autoridade, por exemplo, quando se verificar, dentre outras coisas, a adequação do fato verificado no mundo fenomênico e aquele descrito na norma incriminadora.
A única exceção à esta conclusão seria no caso de tais doutas autoridades não estarem, digamos 100% confiantes quanto aos métodos de investigação utilizados no bojo desta operação policial e das outras em curso e, por isto mesmo, tal como muitos criticam os Parlamentares, estão agindo em “causa própria”.
Longe de nós querermos lançar qualquer suspeita sobre a reputação de quem quer que seja, porém, em nossa visão, mostra-se realmente estranho alguém que sustenta agir dentro da mais estrita legalidade não apoiar tal medida, afinal, a criminalização do abuso de autoridade só vem a fortalecer ainda mais as instituições que, ao fim e ao cabo, ostentarão somente integrantes da mais alta competência, seriedade e, acima de tudo, probidade.
De fato, custamos a entender este verdadeiro paradoxo! Se é verdade que “dever de denunciar” não é uma condenação, pois “o juiz vai examinar, vai passar pelo contraditório”[17], qual parte não é verdade que o mesmo acontecerá nos casos de possível abuso de autoridade?
É evidente que as instituições devem ser livres para atuar com independência, quanto a isto não temos a menor dúvida, contudo, isto em momento algum pode representar uma carta de alforria para se fazer o que bem entender.
Cumpre ressaltar, neste balear, que esta responsabilização pelo abuso, por exemplo, de membros do Ministério Público não é uma jabuticaba de “terra brasilis”.
Embora, convenientemente, estes “cidadãos de bem” omitam que em inúmeros países do mundo existe há muito a precisão de responsabilização cível e penal dos atos dos membros do Ministério Público. A título exemplificativo, citemos o Chile, cuja legislação não prevê qualquer imunidade criminal aos promotores de justiça, os quais podem ser responsabilizados disciplinar, civil e criminalmente pelos seus atos, inclusive no exercício de sua profissão[18].
Na França, igualmente, se verifica a possibilidade de punição cível e penal dos membros do Ministério Público e da Magistratura por atos praticados no exercício de suas profissões. Lá, onde a carreira de juiz e de promotor de justiça possuem a mesma origem, o Conselho Superior da Magistratura, desde a Lei 93-2 de 4/01/1993, os magistrados não possuem nenhum tipo de privilégio, submetendo-se à lei comum, inclusive ao crime de abuso de autoridade previsto no artigo 432-4 do Código Penal francês[19]. Com efeito, o único benefício conferido aos magistrados do Parquet é a imunidade cível e criminal de suas manifestações formuladas perante as cortes.
O mesmo se verifica na Alemanha, onde “diante do princípio da obrigatoriedade de proposição de ação penal, por exemplo, um promotor de justiça pode ser penalmente responsabilizado tanto nos casos de não iniciar uma investigação criminal quando diante da suspeita da prática de um crime, quanto por investigar um inocente” [20].
Curioso notar que a Alemanha convive tranquilamente com maior receio apontado pelos críticos do PL 280/2016, qual seja, ser acusado de abuso pelos cidadãos, sem que isto seja um problema. É que, segundo a pesquisa da Open Society Institute Sofia“os promotores são freqüentemente acusados de tais delitos pelos cidadãos, mas os casos geralmente não vão além da fase de investigação, uma vez que é preciso demonstrar o dolo do promotor, o que é raro”[21].
Ainda, não poderíamos deixar de trazer à baila a sistemática adotada nos Estados Unidos da América, em especial diante de muito de ouvir que este seria o país das liberdades, onde a justiça realmente funciona…
Pois bem, lá também há punição para os promotores que tem desviadas suas condutas no curso da atuação profissional. Segundo a Lei Federal Criminal – 18 U.S.C. § 242 – é permitida a punição por má conduta caso seja verificada a violação dolosa de qualquer direito e garantia constitucionalmente asseguradas ao acusado.
Como exemplo de má conduta punível, cite-se:
“(1) ocultação de provas, (2) mau uso dos meios de comunicação, (3) má conduta envolvendo testemunhas, (4) má conduta investigativa e (5) má conduta de julgamento. Qualquer ato específico de má conduta do Ministério Público pode remontar em mais de uma espécie. Por exemplo, apresentar conscientemente um depoimento cujo conteúdo não reproduza a verdade dos fatos seria uma má conduta envolvendo uma testemunha, bem como uma violação do dever de revelar evidências exculpatórias”[22].
Como se vê, mais não se mostra necessário dizer para se ter como certo que há muito “choro e ranger de dentes” sem que haja justo fundamento para se reclamar.
Mais do que isto, o mundo não vai acabar; as operações policiais não deixarão de existir; o Brasil não sucumbirá a nenhuma força maligna se uma Lei há muito proposta – sim o projeto é de 2009, 5 anos portanto, antes da operação lava-jato – vier a ser aprovada.
“Há muito mas infortúnios sendo proclamados iminentes do que aqueles que acabam realmente acontecendo. Os Pânicos vêm e vão, e embora possam ser assustadores, é seguro que ter]ao o mesmo destino de todos os outros”[23]o esquecimento.
Em verdade, tanto menos ocorrerá se aqueles que se autoproclamam os “cidadãos de bem” deixarem seus cargos, pois as instituições são muito maiores e soberanas do que determinadas pessoas, restando evidente, por conseguinte, que a manipulação do medo por estes não passa, como há muito denunciado por Winfried Hassemer [24], de tática de política criminal populista, típica de “resolvedores de problemas” que não mentem “por seu país – e certamente não pela sobrevivência dele que nunca esteve ameaçada – mas por sua imagem” [25]que nunca na história deste país esteve tão próxima a de um “pop star”.
Luiz Castro é Mestrando em Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal, advogado sócio do MCP | advogados, Machado, Castro e Peret.

[2] BAUMAN, Zygmunt, Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros – Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.8.
[3] LAGRANGE. Hughs. La Civilité à l’epreuve. Crime et sentiment d’inségurité. PUF, 1996, p. 173. Apud BAUMAN, Zygmunt, IBIDEM.
[4] BAUMAN, Zygmunt, IBIDEM. p. 11.
[6] “O perigo do bug do milênio não foi a única notícia aterrorizante que lhe foi trazida pelas mesmíssimas empresas que já tinham oferecido para imunizar, a um preço adequado, o seu computador. (…) O que o bug do milênio demonstrou, e o que Bennett descobriu no caso do tratamento cosmético para desafiar o medo, pode ser visto como padrão para um número infinito de outros casos. A economia de consumo depende da produção de consumidores, e os consumidores que precisam ser produzidos para os produtos destinados a enfrentar o medo são temerosos e amedrontados, esperançoso de que os perigos que temem sejam forçados a recuar graças a eles mesmos (com a ajuda remunerada obviamente)”.(BAUMAN, Zygmunt, IBIDEM. p. 15.)
[7] GASSET, José Ortega y. Rebelião das Massas. tradução Herrera Filho, domínio público. p. 304.
[9] ARENDT, Hannah. Crise na República. Tradução José Volkmann, 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 71
[10] BAUMAN, Zygmunt, IBIDEM. p. 11
[11] ARENDT, Hannah. IBIDEM, p. 19/21
[12] IDEM, IBIDEM, p. 21.
[13] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Ética, educação, cidadania e direitos humanos: estudos filosóficos entre cosmopolitismo e responsabilidade social. Barueri, SP, Manoel, 2004, p. 78
[16] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro, volume 1: parte geral, art. 1º a 120.5ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 363.
[18] Lei 19640/99, artigo 45:- “Los fiscales del Ministerio Público tendrán responsabilidad civil, disciplinaria y penal por los actos realizados en el ejercicio de sus funciones, de conformidad a la ley.”
[19] JOLY-HURARD, Julie. La responsabilité civile, pénale et disciplinaire des magistratsin: Revue internationale de droit comparé. Vol. 58 n.2,2006. pp. 439-475
[20] Open Society Institute Sofia. Promoting Prosecutorial Accountability, Independence and effectiveness. Comparative research, 2008, p. 225 – disponível emhttps://www.opensocietyfoundations.org/reports/promoting-prosecutorial-accountability-independence-and-effectiveness  tradução livre do autor.
[21] IDEM, IBIDEM.
[22] National Association of Crimina Defense Lawyers – NACDL- Crossing the Line: Responding to Prosecutorial Misconduct: ABA Section of Litigation Annual Conference, April 16 – 18, 2008, disponível em https://www.nacdl.org/WorkArea/DownloadAsset.aspx?id=17388  tradução livre do autor.
[23] BAUMAN, Zygmunt, IBIDEM. p. 14.
[24] HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. Revista da Ajuris, Porto Alegre,, n. 62, p. 152-172, nov. 1994.
[25] ARENDT, Hannah. IBIDEM, p. 20.


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