As investigações do MP revelaram que os repasses da rachadinha chegavam às mãos do capitão Adriano por meio de contas usadas por sua mãe, Raimunda Veras Magalhães, e sua esposa, Danielle da Costa Nóbrega. As duas ocupavam cargos comissionados no gabinete do deputado na Alerj entre 2016 e 2017. Ambas nomeadas por Queiroz, amigo do ex-capitão dos tempos de 18º batalhão da Polícia Militar, Jacarepaguá.
Segundo o MP, a mãe e a mulher de Adriano movimentaram ao menos R$ 1,1 milhão no período analisado pela investigação, amealhado com o esquema de rachadinha por meio de contas bancárias e repasses em dinheiro a empresas, dentre as quais dois restaurantes, uma loja de material de construção e três pequenas construtoras.
Com sede em Rio das Pedras, as construtoras São Felipe Construção Civil Eireli, São Jorge Construção Civil Eireli e ConstruRioMZ foram registradas, segundo o MP, em nome de “laranjas” do Escritório do Crime. O dinheiro então chegava aos canteiros de obras ilegais por meio de repasses feitos pelo ex-capitão aos laranjas das empresas.
Trecho de interceptação detalha registro da construtora em nome de laranja.
O papel de “investidor” nas construções da milícia ajudaria a explicar a evolução patrimonial de Flávio Bolsonaro, que teve um salto entre os anos de 2015 e 2017 com a aquisição de dois apartamentos: um no bairro de Laranjeiras e outro em Copacabana, ambos na zona sul do Rio. Os investimentos também permitiram a compra de participação societária numa franquia da loja de chocolates Kopenhagen.
Flávio entrou na vida política em 2002, com apenas um carro Gol 1.0, declarado por R$ 25,5 mil. Na última declaração de bens, de 2018, o senador disse ter R$ 1,74 milhão. A elevação patrimonial coincide com o período em que a mãe e a mulher do ex-capitão estavam nomeadas em seu gabinete.

O papel de Adriano

A ligação do ex-capitão com as pequenas empreiteiras envolvidas no boom da verticalização em Rio das Pedras e Muzema foi levantada em meio à investigação sobre as execuções da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Foi a partir das quebras de sigilos telefônicos e telemáticos dos integrantes do Escritório do Crime que os promotores descobriram que o grupo paramilitar havia evoluído da grilagem de terras à construção civil, erguendo prédios irregulares na região e, assim, multiplicando seus lucros.
Adriano da Nóbrega e dois outros oficiais da PM integrantes do grupo – o tenente reformado, Maurício da Silva Costa, e o major Ronald Paulo Alves Pereira – usaram, segundo os promotores, nomes de moradores de Rio das Pedras para registrar as construtoras na junta comercial do Rio de Janeiro. A estratégia de usar “laranjas”, segundo o MP, foi adotada para tentar dar legitimidade às atividades do Escritório do Crime na construção civil.
A descoberta foi usada pelos promotores como base para a abertura do inquérito que resultou na Operação Intocáveis – nome escolhido numa referência às patentes de oficiais da Polícia Militar ostentadas pelos chefes da organização criminosa. A ação contra a milícia foi coordenada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP, o Gaeco, e desencadeada, em janeiro de 2019, como forma de fechar o cerco à milícia suspeita de arregimentar os assassinos da vereadora do PSOL. Na ocasião, o ex-capitão Adriano e outros 12 suspeitos tiveram as prisões decretadas.
Trecho da denúncia cita a milícia de Adriano, construções e empresas em nome de laranjas.
Dados do inquérito a que tive acesso comprovam que Adriano, Costa e Pereira eram os “donos ocultos” das construtoras ConstruRioMZ, São Felipe Construção Civil e São Jorge Construção Civil. As três empresas foram registradas na junta comercial no segundo semestre de 2018, respectivamente, em nome Isamar Moura, Benedito Aurélio Carvalho e Gerardo Mascarenhas, conhecido como Pirata. Os três “laranjas” foram presos na operação policial, juntamente com os oficiais da PM Costa e Pereira.
Numa das interceptações, o miliciano Manoel de Brito Batista, que atuava como uma espécie de gerente das obras, alerta em tom ameaçador a um interlocutor que o questiona sobre um prédio recém erguido na favela Rio das Pedras: “Eu tenho oito apartamentos naquele prédio, o resto é tudo do Adriano e do Maurício. Entendeu? Você procura eles e fala com eles, entendeu? Não adianta ficar me mandando mensagem”. Batista também foi preso na Operação Intocáveis.
Manoel era o síndico dos negócios no ramo imobiliário.
Na denúncia do MP, Batista é citado como responsável pela supervisão dos canteiros de obras e pela negociação de imóveis. Numa das escutas telefônicas, ele oferece um andar inteiro num prédio recém erguido por 60 parcelas de R$ 4 mil. Valor previamente acertado com o ex-capitão Adriano, ora tratado por “Gordinho”, ora por “Patrãozão”, apelidos captados nas investigações da rachadinha e das execuções de Marielle e Anderson.
Trecho de conversa entre Manoel e Adriano.
Era Adriano que definia preços, condições de pagamentos e, em muitos dos casos, fazia a cobrança dos valores diretamente aos compradores e inquilinos. Não há na investigação uma estimativa dos lucros obtidos pela milícia no ramo imobiliário, mas o preço médio dos apartamentos, com dois quartos, sala, banheiro e cozinha nas duas favelas gira em torno de R$ 100 mil.
Planilhas apreendidas durante a operação policial num imóvel usado como sede do Escritório do Crime, o Moradas do Itanhangá, indicavam retiradas semanais feitas pelo ex-capitão e também pelo tenente reformado Maurício e pelo o major Ronald, também amigo de Flávio Bolsonaro. Além de ser o responsável pela contabilidade do grupo, Ronald também foi homenageado por Flávio Bolsonaro com uma menção honrosa em 2004. Em várias conversas gravadas pelo MP, o major aparece combinando de se encontrar com Batista para “bater” as contas no fim da semana.
Major Ronald mantinha planilhas contábeis, com repasses de dinheiro para Adriano, plantas de prédios e outros documentos relacionados às construções ilegais.

‘O MP está preparando uma pica do tamanho de um cometa para empurrar na gente’

A frase de Queiroz foi dita em áudios de Whatsapp divulgados pelos jornais O Globo e Folha de S.Paulo em outubro. Desde então, muito se especulou a que ele se referia. Investigadores ouvidos pela reportagem acreditam que Queiroz sabia que o inquérito tinha identificado o uso do dinheiro desviado no esquema de rachadinha para financiar o boom de construções ilegais na Muzema e em Rio das Pedras, comunidade onde Fabrício Queiroz se refugiou em dezembro de 2018, como revelam as quebras de sigilos telefônicos e telemáticos.
Na opinião de envolvidos na investigação da rachadinha, a conclusão do cruzamento de dados financeiros dos 86 citados no inquérito, dentre eles o atual senador Flávio Bolsonaro, vai ser capaz de comprovar os crimes, entre eles lavagem de dinheiro. E, assim, explicar a suspeita evolução patrimonial do primeiro-filho e, sobretudo, justificar a movimentação do senador para tentar a todo custo paralisar o trabalho dos promotores.
Item 29 revela que o crime de lavagem de dinheiro está sendo apurado em procedimento específico no inquérito da rachadinha do então deputado Flávio Bolsonaro.
Nas redes sociais e nas poucas entrevistas em que falou sobre o esquema de rachadinha, Flávio Bolsonaro afirma ser vítima de perseguição da imprensa e critica o vazamento de informações do processo, que está sob segredo de justiça. O político também afirma não ter conhecimento sobre o fracionamento de salários de seus funcionários. Procurado pelo Intercept, o senador não se manifestou.
O filho 01 chegou a atribuir a responsabilidade das supostas irregularidades a Queiroz, que teve identificados 438 transferências e depósitos em suas contas, totalizando cerca de R$ 7 milhões entre os anos de 2014 e 2017.
Queiroz também fez depósitos regulares de cheques e em dinheiro em contas do primeiro-filho e da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que numa das operações recebeu R$ 24 mil. Na ocasião, o presidente disse que o valor era parte de um empréstimo de R$ 40 mil que teria feito ao ex-assessor parlamentar e amigo. Para os investigadores, apenas a conclusão do inquérito permitirá o esclarecimento do fluxo de dinheiro, mas a decisão sobre o prosseguimento da investigação depende dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio, que suspenderam os julgamentos devido à pandemia de coronavírus.
Desde o início da investigação, em outubro de 2018, o trabalho dos promotores foi suspenso três vezes, atendendo à defesa de Flávio Bolsonaro. Ao todo, os advogados impetraram nove pedidos no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal de Justiça do Rio, alegando que as quebras de sigilo bancário e fiscal do então deputado estadual não poderiam ter sido concedidas por um juiz de primeira instância. Medo de que alguém descobrisse que nem só de chocolate é feito o milionário patrimônio do senador que entrou na vida política em 2002 com um Gol 1.0 e um sobrenome influente.