terça-feira, 4 de outubro de 2016

A Midia Manipulativa, a História e a Volta do Velho do Restelo, por Raul Longo



Enfim, doze anos depois, a constante e cotidiana campanha da mídia deu resultado.

Não foi fácil. Deu muito trabalho recuperar a credibilidade perdida há 25 atrás, desde quando a mídia brasileira induziu o eleitor a acreditar na farsa do Caçador de Marajás.

Então a própria mídia se decepcionou com o produto que ela mesma confeccionou. Não por ser farsa, posto que por farsa o criou. Mas pela egoísta criatura não incluir o próprio criador no repartir dos despojos que quis só pra si. Em apenas dois anos, por vingança a mídia o descartou usando os mesmos que antes induziu a elegê-lo.

Qual o tempo de carência, de tolerância até o repartir dos despojos? No aferido pelo pleito de agora se efetivou o serviço que saiu melhor do que a encomenda, elevando a participação na partilha. Além do estancar da sangria e do estender do tapete escamoteando a sujeira, acima do trono; se varreu o estorvo para além da soleira. Isso tem um preço e o custo há de ser maior. A recompensa tem de equivaler aos permanentes esforços por 13 copiosos anos consecutivos e ininterruptos.

Mas lá em 1992, nas ruas em meio aos Caras Pintadas, já era tarde. Qualquer um que estuda marketing sabe que a má qualidade do produto sempre afeta a credibilidade de seu fabricante e produtor. E mais difícil recuperar a imagem de um mau produto do que construir novo produto.

Construir o Caçador de Marajás foi coisa de poucos meses, mas recuperar a imagem e a confiança no fabricante levou 25 anos. E assim, em 1994 o eleitor pôde mais uma vez errar por si próprio como propícia o aprendizado pela democracia.

Apesar dos 30 anos de inexperiência, sem o voto de cabresto do coronelato da mídia já desgastada por duas décadas de apoio à ditadura militar, o brasileiro elegeu um projeto de governo pela primeira vez desde a instauração da ditadura militar.

Ditadura que o brasileiro retirou aos brados de “Fora Globo que o povo não é bobo!”. Multidões às ruas gritando o mesmo refrão, mas na primeira marola democrática, induzidos pelo cabresto da própria Globo, elegeram um produto midiático.

O povo é assim mesmo. Como coisa viva, é tão impreciso quanto o viver. No entanto, é vivendo que se aprende e quando a marola democrática foi sucedida por uma verdadeira onda de democracia, enfim se escolheu um plano. Um projeto de governo.

Acertando ou errando o povo elegeu o Plano Real e Fernando Henrique comprou a reeleição pendurado naquele projeto que além de não ser dele depois se comprovou tão decepcionante e efêmero quanto o Milagre Brasileiro que nos jogou na boca da inflação, o mais aterrorizador dos monstros dos mares da política brasileira de então.

Ao dar conta o povo se viu adernando na vaga da inflação outra vez e só então caiu na real de que milagres não existem e nenhum plano é estável no oscilante mar da realidade econômica mundial. Sobretudo sob a imprevidente ganância de um comodoro de descontrolada e canina submissão alfandegária.

Também já era tarde pois, privatizados, não nos restavam patrimônios públicos como escaler nem boias de reservas internacionais. O tesouro foi ao fundo, o risco era total e o país submergiu ao apagão das profundezas com o peso de salários congelados por longos 8 anos invernais.

E infernais.

Mas é a democracia e a democracia é viva. Da imprecisão do viver é que se tira o aprendizado. Como coisa viva a democracia é o sistema político que permite o conserto do erro quando o eleitor se perde pelo caminho, mas apesar de recuperado o tesouro e mesmo com muita reserva de gordura, acima da voracidade da ganância da sangria estancada dos que sangram a nação, há que se temer pela democracia, pois se conhece a ditadura e seja de esquerda ou direita sabe-se que aí não há mais possibilidade de conserto algum.

A democracia é um caminho, mas quem sempre se perde é o caminhante e nunca o caminho. Como diziam os velhos navegantes, ao contrário do viver os caminhos do mar são precisos, exatos.

Em 2002 o povo teve como consertar o rumo a despeito dos astrólogos econômicos da mídia preverem tempestades, abismos e hecatombes. Condenaram o rumo escolhido pelo povo e previram que o mar da economia se abriria e engoliria o Brasil já naquele 2003.

Contrariando a mídia, o país começou a emergir naquele mesmo ano. Os astrólogos continuaram prevendo que 2004 seria fatídico, mas passou. O país singrando cada vez mais veloz e então garantiram que o fim se daria em 2005.

Como astrólogos não conseguiam acertar previsão alguma, se tentou fabricar um apocalipse virtual com bases em concretas experiências do PSDB transferidas para o PT. Criou-se o Mensalão e armou-se um motim. Fiscais da mídia se arvoraram em juízes, juízes se arvoraram em deuses e os deuses chegaram até a arrolar mitológicas literaturas que os permitiria condenar sem provas.

E de fato condenaram sem a mídia dar oportunidade para consciências nem preconização de consequências, mas ainda assim não conseguiram fazer o povo de bobo mais uma vez. Sem provas o povo não mais acreditou em milagres, magos ou justiceiros. Também se recusou a comprar caçadores de marajás por lebre.

E o Brasil emergiu de vez livrando-se do peso morto da dívida e da morte pela fome. Ao invés de mergulhar no abismo medieval do mapa astrológico da mídia, saímos do Mapa Mundial da Fome e por sete anos de tempestuosa crise em todos os oceanos navegamos com toda precisão pelos sete mares, comercializando por todo o mundo com galhardia e dignidade, sem mais mendigar descalços em cais de portos d’além mares. Tampouco bancando ridículos valentes e soberbos com povos d’além montes e cordilheiras.

Recebidos com salvas e palmas, cantados por todos os continentes, decantados à beira de todos os oceanos, o mundo era-nos e éramos o mundo. Paris foi Brasil, Nova Iorque foi Brasil, Tóquio e Pequim. Éramos o Cara e a cara do futuro do mundo. Enquanto dos esconsos de porões e do alto de tortuosas torres da mídia, os astrólogos insistiam em previsões de desgraças ano a ano, mês a mês, dia a dia, hora à hora, minuto a minuto.

Hoje o mundo deliberadamente nos afasta, nos recusa e faz questão de que fique evidente a rejeição. Praticamente nos proíbem de sair na foto, nos relegam à distância, à ausência. Sem nome e sem cara, estigmatizados como portadores de doença viral.

Ainda ontem considerados potência e estadista global, hoje somos a vergonha em todo encontro internacional. E até caso de perguntar se cheiramos mal? Talvez não, mas de toda forma cheira mal tão acintosa rejeição. Intencionalmente contra o golpe ou intenção de outro golpe de promoção internacional? Mas de todos os 19, fora um 20 excluído e relegado a zero, há 5 metros de distância? De toda as Nações Unidas resumidas a meia dúzia de palmas ocas e sem o menor entusiasmo? Sem contar os que se levantam e dão as costas.

Apesar da mídia brasileira insistir em que o golpe cumpriu com o rito constitucional, o planeta confiará que o bom resultado da eleição confirme a democracia propagada por inequívocos golpistas e pela mídia criada para apoiar 25 anos de ditadura?

Como interpretar intenções de bombardeios e manobras de palácios de pretensa Justiça, de parlamentos de facciosa e falaciosa representatividade popular? Essas eleições representam alguma realidade popular ou é mero reflexo da irreflexão de consciências incapacitadas por condicionamento a impedir raciocínio? Saberão hoje em quem votaram ontem? Por que votaram? Para que votaram?

Pelo país ou pelo ódio? Por si ou pelo que diz a TV? Pelo que se comprova ou pela convicção que desconsidera qualquer prova?

Atacasse, xingasse, agredisse! Ira e ofensas! Histeria e irrisão!

Por quê? Para quê?

Apenas por frustradas intenções de construção de poéticas pontes para o futuro? Somente para o cumprimento do papel de oposição? Rebeldia à condição decorativa do cargo? Contrariedade de menino mimado?

Ou apenas o comissionamento da corretagem do Pré-Sal?

Serão mesmo pretensões passageiras que agora satisfeitas permitirão que se retome e reinstitua a democracia?

Sarracenos sauditas e gananciosos capitais sionistas, em conluio para iludir o mundo através de terrorismos planejados e escandalosamente bem combinados, serão piratas que carregarão butins petrolíferos escondendo-os em reclusos redutos piratas?

Um eventual esvoaçar noturno de vampiros do negro sangue oleoso da terra que jorrando do mais profundo de nosso oceano nos elevaria entre as nações; mas uma vez saciados nos deixarão em paz retornando para as torres e cavernas de seus castelos em longínqua Transilvânia?

Sanguessugas nacionais ocasionalmente associados à mídia, sibila de farsas e falsetas; afortunadamente encobertos por uma geração de togas garantidoras de criminosa impunidade? Surto da peste do justicialismo fascista a ser debelada em 2018?

Existirá golpe democrático? Volta à normalidade democrática como a prometida por Castelo Branco para 50 anos antes? Para o 1968 do AI-5? Para a censura do AI-5? Para a Operação OBAN do AI-5? Para as torturas do AI-5? Os estupros do AI-5? Exílios, mortes e desaparecidos?

Ou tornamos a ser cordeiros à espera da redenção democrática de 1968, novamente aguardando outro sacrifício pelo cutelo de uma Ato Institucional 50 depois? E por mais quantas décadas para o retorno à Ilha da Democracia em busca de novo acerto em hipotético e futuro 2052 ou 3003, quem sabe?

Deixamos decapitar Penélope confiantes no retorno de Odisseu para vingar o traído futuro de Telêmaco?

Solitário Odisseu cujos marujos se acomodam na calmaria, mas é na calmaria que inexperientes grumetes se perdem por caminhos que a história confirma precisos, exatos.

Caminhos nunca se perdem, quem se perde são os caminhantes como há muito tempo ensinaram os velhos navegantes: “Navegar é preciso. Viver não é preciso”.

Navegar é preciso porque os caminhos do mar são sempre exatos. Mas viver é a arte do impreciso.

Individual ou coletivamente, viver nunca é exato. Ainda que a genética permita prever até a cor dos olhos do filho que nascerá, quem pode prever o caráter das gerações futuras se não cuidar de transferir, repassar as próprias experiências? Sem demonstrar as próprias percepções?

Quais os mais fieis herdeiros do nazismo? Novos germânicos ou jovens do exército do judaísmo sionista?

Qual o projeto de domínio imperialista que mais se expande no mundo atual?

Qual a genética da mídia mundial e brasileira em particular? Dos atuais sistemas de condicionamento de massas? Das mentiras repetidas mil vezes até que se torne verdade?

Revolução para implantação ou restauração da democracia é possível, mas quem na história promoveu golpe para em dois anos se conformar com o retorno democrático?

Se a rejeição popular nas urnas é motivo de golpe, por que a rejeição da política externa haverá de ser motivo de redemocratização?

Quando muito poderia ser incentivo a contragolpe, mas se por medo da precisão do navegar, tíbios marujos preferem as imprecisões do viver aguardando por novos AI-5, por que não abordar tão provida nau a deriva? Mero navio fantasma sem comando, sem rumo nem previsão. Sem seguir estrela que aponte um norte ou melhor sorte.

Muitas e terríveis são as sereias e nem mesmo é possível almejar que novas gerações tenham a mesma percepção de seus fatídicos cantos. Não se deve nem pretender, pois as percepções têm mesmo de ser outras e distintas para se detectar as muitas origens dos falsos encantos. Mas alertar sobre a inexatidão do viver é responsabilidade de todos para que a precisão dos caminhos permaneça inalterada.

Os rumos podem ser vários e de muitas variáveis, pois não importa a exatidão do viver. Se o caminho é exato, todo viver em algum momento encontrará seu próprio rumo.

Muitas e terríveis são as sereias e quem queira escutá-las que se amarre ao mastro, mas não esqueça da cera nos ouvidos de seus marujos, pois na calmaria não se pode esquecer as responsabilidades com a precisão do navegar, já que do viver pouco ou nada se poderá prever.

Por maior a calmaria a atenção da responsabilidade sempre é necessária porque se o grumete se perder do rumo pelo caminho, que seja apenas pela própria teimosia e não pela irresponsabilidade dos que deveriam ter ensinado a navegar, a ler as estrelas, prevenir das oscilações, das intempéries, do cantar das sereias e dos piratas sempre a espreita.

No leme, uma vez alguém alertou: “Não faço o que faço porque quero. Faço o que a sociedade organizada diz o que quer que eu faça”. Em política, isso é o que se chama Democracia Participativa. Com apenas 40 anos de democracia em 516 de história, o grumete brasileiro mal tem noção do que seja Democracia Representativa e ainda nem sabemos o que é a participativa que se aprende participando mesmo, fazendo junto mesmo.

Pretendendo-nos como arautos a anunciar terra à vista, abandonando-nos ao comodismo da calmaria e quando o lufar de um vento mais forte, o adernar mais brusco por uma vaga de um oceano de crises, como grumetes novatos nos pomos a culpar o almirante, perdendo a noção e a nação por trás da primeira onda mais alta do que uma marola.

Um navio não singra apenas pela experiência do almirante. Tem de haver esforços conjuntos de toda a tripulação e constante transmissão de experiências e conhecimentos sobre o içar de cada vela, a importância de cada amarra, o enlaçar de cada nó, o lançar de cada ancora, o cortar de cada onda, o aproveitar de cada vento. E ler as estrelas num universo imenso de constante aprendizado.

O inverso é permitir que o farfalhar de páginas e imagens ao vento, o esvoaçar de vaidades e enfunar das togas descontrolem bússolas e enganem astrolábios em errático rumo perdido por tão precisos caminhos de mares ditosos.

Ondas e marolas são previsíveis pela própria história do mar que sempre foi e permanecerá sendo preciso. Mas viver, não.

Por imprudência com a vida, mais uma vez o Brasil se torna uma nação que se perde de si mesma após avistar o cimo do Monte Paschoal. E segue sendo um sempre descaminho em busca de nunca alcançado oriente, de sempre insuficiente orientação.

E quem são os desgraçados que neste oceano se afogam na imprecisão do viver?

“Dize-o tu, severa Musa! Musa libérrima e audaz!” – suplicava o poeta, mas musas não libertam a ‘desgraçados que não encontram mais do que o rir calmo da turba que excita a fúria do algoz’

516 anos de história formaram suficiente espelho em que só não se enxergam os que creem que negando a chibata curarão a chaga. Viver não é preciso e somos o povo que ri de si mesmo para fingir-se algoz enquanto agoniza por desconhecer as precisões do navegar.

Inexatidões do viver de gente que abre a porta ao ladrão e vai à rua vigiar para que ninguém surpreenda o roubo da própria casa. E àquele que tentar nos alertar, será o que acusaremos de roubo como quer a sacro santa igreja da mídia à qual rezamos pela mentira nossa de cada dia. Pois só na farsa encontramos salvação.

Viver não é preciso, não é exato. Mas navegar é tão exato que até se pode reutilizar as previsões de Luiz Vaz Camões. O navegar é tão preciso que em bem pouco tempo se comprovará o que o poeta já previu há meio milênio atrás.

Os astrólogos apocalípticos da mídia jamais enxergarão. Marujos de primeira viagem, acomodados em calmarias ou seduzidos por sereias, também não. Todos igualmente transferem suas inexatidões culpando almirantes ou imprevisões do caminho que, em verdade, sempre são extremamente precisos e seguem pontuando pelas previsões daquele velho em remota praia do Restelo, desde o Canto IV de Os Lusíadas:

94

Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

                                                               95

— "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

                                                                96

— "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem o povo néscio se engana!

                                                               97

— "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome proeminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?

Raul Longo

Fonte: Contexto Livre

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