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quinta-feira, 5 de junho de 2025

Folha de São Paulo. Colher verdade para vender mentira? Artigo de Armando Coelho, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo

 

A Folha de S. Paulo vive há anos “contando mentiras dizendo verdades”. Aliás, tema de uma peça publicitária dela, premiado em Cannes (1988).


Do Jornal GGN:



Folha de S. Paulo. Colher verdade para vender mentira?

por Armando Coelho Neto

O tema, em princípio, é Folha de S. Paulo, mas cabe antes falar de Globo, por pertencerem a mesma cepa. Em 1992, a emissora produziu a bem-sucedida série “Anos Rebeldes” (Gilberto Braga), na qual conta parte da ditadura militar, com foco inclusive na guerrilha, sequestro de embaixadores, etc., mas comete a proeza de omitir o seu próprio papel como braço dos ditadores e que deles foi porta-voz.

Folha de S. Paulo. Não, leitor, não cabe relembrar que ela conseguiu lacrar que foi vítima de “invasão” pela Polícia Federal, durante o governo Fernando Collor de Mello, o salvador da pátria de então, um “imbroxável” da época que tinha “aquilo roxo”. Junto com a Globo et caterva, o jornal o tornou presidente. “Invasão? ” Os policiais federais da operação nunca foram ouvidos. Vale a versão dos Frias.

Também não cabe aqui, falar de “Folha Corrida”, um documentário produzido pelo Instituto Conhecimento Liberta (ICL), segundo quem, a Folha abrigava agentes da ditadura que “torturavam de manhã e trabalhavam no jornal à tarde”. O veículo publicava fotos, nomes completos e filiação de militantes do Partido Comunista, conclamando o público a fazer denúncias. É o que diz a produção do ICL.

A Folha de S. Paulo vive há anos “contando mentiras dizendo verdades”. Aliás, tema de uma peça publicitária dela, premiado em Cannes (1988). Num fundo difuso, o narrador enaltece um governante que recuperou a economia de seu país e devolveu o orgulho ao seu povo, e até queria ser artista. Ao ser aberta a imagem, surge Adolf Hitler, e ouve-se: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só verdades”.

Na prática, a Folha de S. Paulo colocou Lula e Hitler no mesmo patamar, com visível intento de desqualificar Lula, com a imagem esfolada pela prisão espúria, e apoiar a candidatura adversária. É que esse mesmo comercial voltou a ser exibido em 2018, durante a campanha presidencial daquele ano, quando os indiscutíveis feitos do presidente Luís Inácio Lula da Silva estavam sendo exaltados.

Os feitos positivos de Hitler e de Lula eram verdadeiros, já que tanto um quanto outro trouxeram dados positivos às economias de seus respectivos países. Tanto um quanto o outro, devolveram o orgulho ao seu povo. Mas, com mentiras embutidas, seja na falsa e maldosa comparação entre as duas personalidades, seja pelo fato da comparação estar a serviço da candidatura apoiada pelo jornal, que se diz isento.

Quando fake news e disciplina nas redes sociais voltam ao centro do debate, nota-se que na prática as redes só potencializaram o que Globo e Folha (meros exemplos) já o faziam. Como dito no comercial, difundiam e difundem mentiras falando verdades, de forma clara ou camuflada. Não debater o sequestro do orçamento por um parlamento corrupto é uma forma de mentir.

Em 13/08/2024, a Folha publicou: “Moraes usou TSE fora do rito para investigar bolsonaristas no Supremo, revelam mensagens”. O uso do genérico “rito” colocou sob suspeita a pessoa do ministro e o próprio tribunal, criando dúvida sobre algo que a rigor não teria rito algum. Seria uma nova Vasa-Jato? O veículo só quis estabelecer uma falsa similaridade e ou semelhança com o ex-juiz ladrão de Curitiba.

A Folha está preparando uma série especial de reportagens sobre o julgamento do ex-capitão. Diante do impacto no futuro do país, com garantia de sigilo e fins estatísticos, o jornal quer saber de possíveis leitores, quais temas gostariam que fossem aprofundados. Nesse sentido, é importante tirar a máscara do jornal, e dele pedir compromisso com a democracia, sem flertes com golpistas.

Folha, Globo et caterva sabem que pavimentaram o caminho para o nazifascismo. Sabem que os problemas de hoje têm raízes num passado próximo com o qual compactuaram. Palavras como ditadura, democracia, censura, direitos fundamentais ganham sentido de ocasião. Os que distorcem os seus sentidos ganham palanques e visibilidade em nome de uma polifonia corrosiva.

Se a Folha está mesmo preocupada com o impacto do julgamento do ex-capitão, tem que resgatar o sentido real das palavras, dar a dimensão real dos acontecimentos. Da Adutora do Gandu aos 700 mil mortos, falar de genocídio, fome, joias, imóveis, discriminação, aporofobia, inclusão, narcopentecostalismo, coisa e orçamento públicos. Há que se reconstituir a história, resgatar valores. Sem anistia.

Entrar na história para contar a História, sem essa de colher verdade para vender mentira.

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo

Imprensa e "grande" mídia empresarial (controlada pelos agentes do mercado financeiro): a quinta-coluna do projeto autoritário da direita, por Daniel Gorte-Dalmoro

 

“Uma escolha muito difícil” apenas um subterfúgio para não assumirem logo que a democracia é um detalhe irrelevante para os donos dos poderes.

Do Jornal GGN:

    Foto: reprodução


Grande imprensa brasileira: a quinta-coluna do projeto autoritário da direita

por Daniel Gorte-Dalmoro

De um lado, os grandes veículos de imprensa dizem defender a democracia. De outro, abrem espaço para os Bolsonaro darem sua distorção dos fatos – mesmo quando é inconteste a participação na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro – e fazerem política, mantendo sua relevância no cenário político nacional. Por outro lado, ainda, dia sim, outro também, apresentam Tarcísio como alguém de uma direita moderada, mesmo sabendo quem ele é – assim como sabiam quem era Bolsonaro, sendo a conversa de “uma escolha muito difícil” apenas um subterfúgio para não assumirem logo que a democracia é um detalhe irrelevante para os donos dos poderes.

O paradoxo da tolerância, de Karl Popper, é conhecido dessa imprensa, e não tem como dar a ela o benefício da dúvida, de que não saberia que tolerar (e dar voz) aos intolerantes põe em risco a própria tolerância que é um dos pilares de uma sociedade democrática e liberal.

O que essa imprensa também sabe é o modus operandi da nova extrema-direita, seja pelo que vivenciou durante a presidência de Bolsonaro, seja com o que acompanha nos EUA, com Trump: sem nenhum princípio republicano, persegue quem não se submete a seus desígnios e os adula: a única imprensa que eles aceitam é a que dá a versão oficial dos fatos. Investigação? Só se for dos adversários do governante, convertidos em inimigos.

O que a grande imprensa tem feito, portanto, é investimento futuro, sem risco de perdas: sabendo do republicanismo de Lula e do PT (republicanismo de almanaque, de tão distante das lutas políticas que atravessam o país, diga-se de passagem), fustiga o governo sem dó nem ética, distorcendo dados e notícias favoráveis e criando factóides para desgastar o governo. Fazem-no porque tem a tranquilidade de que publicidade oficial continuará caindo na conta, apesar de fazerem mau jornalismo (se é que o que fazem é jornalismo). 

Se Lula ganhar em 2026, não tem problema, a vida segue normal, sem reação do Planalto. Se a extrema-direita ganhar, tem o cartão de visitas a apresentar ao próximo presidente: foram uma quinta-coluna no enfraquecimento da democracia e podem continuar sendo agraciados com verbas publicitárias governamentais. Isso para não falar no agrado que fazem aos donos do capital que vandaliza o país, visto que a plataforma da nova direita para países periféricos é o capitalismo de butim – vide as privatizações da era Temer/Bolsonaro, como da Petrobrás, e agora a privatização da Sabesp por Tarcísio -, sem nenhuma preocupação com desenvolvimento econômico ou social.

Há quem questione se apoiar um projeto autoritário, ainda que com verniz democrático, não seria um tiro no pé da imprensa. De modo algum! Quem sucumbiria não seria a imprensa e sim o jornalismo. As empresas seguiriam lucrando – e colaborando com a repressão -, como foi durante a ditadura militar-empresarial de 64-85.

Quem precisa estudar um pouco mais sobre o paradoxo da intolerância é o PT e o governo.

Daniel Gorte-Dalmoro é escritor e funcionário público. Filósofo e Sociólogo formado pela Unicamp, Mestre em Filosofia pela PUC-SP (se debruçou sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord), Psicanalista em formação. Autor, dentre outros, de Trezenhum. Humor sem graça. (Ibiporã 1011) e Linha de Produção/Linha de Descartes (Editora Urutau).

terça-feira, 13 de maio de 2025

José Sócrates, ex-Primeiro Ministro de Portugal: O Brasil não é mais uma potência subordinada e a imprensa venal brasileira deveria ter um pouco mais consciência da importância do seu próprio país

 

O Brasil é um país influente em várias direções — na relação tradicional com o Ocidente, na nova relação que desenvolveu com os países do Brics e ainda como poder emergente do que agora se convencionou chamar Sul Global.

Do site ICL Notícias:


COLUNISTAS ICL

O Brasil não é mais uma potência subordinada

A imprensa brasileira deveria ter um pouco mais consciência da importância do seu próprio país


José Sócrates
José Sócrates

Primeiro-ministro de Portugal, de 2005 até 2011


O Brasil ocupa hoje, na comunidade internacional, uma invejável condição de potência não alinhada. O Brasil é um país influente em várias direções — na relação tradicional com o Ocidente, na nova relação que desenvolveu com os países do Brics e ainda como poder emergente do que agora se convencionou chamar Sul Global. Esta tripla circunstância coloca-o na condição de potência irradiante, daqueles países singulares que são capazes de oferecer diálogo, cooperação e confiança em várias geografias. O Brasil não é mais uma potência subordinada.

Deixem-me contar uma pequena história que ilustra o ponto político que quero sublinhar. Em 1976, o presidente americano Gerald Ford concedeu ao Brasil um estatuto de conselheiro especial. Essa iniciativa levou o presidente da comissão dos negócios estrangeiros do Congresso a perguntar ao Secretário de Estado Henry Kissinger se os Estados Unidos não estavam a elevar o Brasil ao estatuto de potência mundial. Kissinger respondeu assim: “Senhor presidente, o Brasil tem uma população de 100 milhões de habitantes, vastos recursos económicos e um elevado ritmo de desenvolvimento. Está a tornar-se uma potência mundial e não precisa da nossa aprovação para isso”.

Talvez seja verdade, como alguns dizem, que o problema do Brasil seja não ter consciência de si próprio. Hoje o Brasil tem 220 milhões de habitantes, tem vastos recursos naturais e uma economia ainda mais forte do que há 50 anos. Tem também uma nova posição no mundo. A sua política externa já não se resume a uma especial relação com os Estados Unidos, como antigamente, mas atira agora em várias outras direções, o que lhe dá novas oportunidades e novas responsabilidades. O Brasil não precisa de autorização de ninguém — nem da sua própria imprensa- para se assumir como potência mundial dotada de autonomia para prosseguir os seus próprios interesses. Não, o Brasil não é mais uma potência subordinada.

A mudança, podemos hoje ver com mais clareza, começou em 2006, no momento em que se realizou a primeira reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros da China, da Rússia, da Índia e do Brasil. Se há uma nova ordem mundial em construção, o Brasil está no centro dela — como nunca esteve no passado. A consciência deste novo papel na cena internacional deveria levar os críticos do governo a moderar as suas críticas quanto à viagem de Lula da Silva à China e à Rússia. A China é o maior parceiro comercial do Brasil e os Brics, dos quais a Rússia faz parte, representam um novo polo do poder político mundial que acrescenta influência e dimensão ao Brasil. Todos, no mundo inteiro, entendem as viagens — menos a oposição ao governo e a imprensa brasileira. Não, o Brasil não é mais uma potência subordinada.

Bem sei, esta nova posição não é isenta de riscos. Ela vai exigir muita frieza e muito equilíbrio por parte dos responsáveis da política externa brasileira. Os Brics já não são o que foram — um conjunto de médias potências que se uniram para contrabalançar a posição hegemónica da superpotência americana. Essa era a situação de 2009, na primeira reunião de líderes dos Brics. Não mais.

Hoje os Brics têm no seu seio uma superpotência desafiante que deseja, como todos os países sempre fizeram, obter um novo lugar na cena internacional que esteja de acordo com o seu novo poder econômico, com a dimensão da sua população e com a sua memória histórica. Esta circunstância altera o equilíbrio interno dos Brics e cria um novo desafio para a política externa brasileira. Mas é um desafio de crescimento, não de declínio.

Vai ser preciso muita prudência e muita sensibilidade, é verdade, mas por favor, compreendam que tudo isso se faz com mais presença no palco da política mundial, não com mais ausência, não com mais afastamento. A imprensa brasileira, quando analisa as viagens do presidente Lula, deveria ter um pouco mais consciência da importância do seu próprio país. O Brasil não é mais uma potência subordinada.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

A era do discurso de ódio de Trump, Bolsonaro, Milei, Musk e assemelhados discutida em artigo de João Cézar de Castro Rocha

 

Trump, Musk, Bolsonaro e Milei converteram a retórica do ódio em linguagem cotidiana

Do iclnotícias:



Segue o artigo de João Cezar de Castro Rocha:

COLUNISTAS ICL

A era de Ricardo III: Trump, Bolsonaro, Musk e tutti quanti

O ômega como alfa

A peça só principia quando a guerra acaba. Amanhã ou depois de amanhã. Na primeira cena de Ricardo III o duque de Gloster ainda não é rei, muito embora ambicione o título como se não houvesse amanhã, pouco importando os obstáculos que terá de enfrentar.

(No seu caso, tratava-se apenas de levar à morte seus irmãos e sobrinhos, entre outras tantas vilanias. Sem remorso algum – sobretudo.)

A longa e desgastante Guerra das Duas Rosas finalmente conheceu um vencedor. A família York – representada pela rosa branca – derrotou a família Lancaster – simbolizada pela rosa vermelha – depois de 30 anos de conflito intermitente. Tempo de celebração para os vitoriosos, especialmente para o primogênito dos York, que se tornou o rei Eduardo IV. Numa palavra, após os rigores de batalhas sem-fim, a corte se preparava feliz para os excessos das festas.

Isto é, quase todos… E como nem sempre a exceção somente serve para confirmar a regra, o duque de Gloster, irmão do rei, encontrou motivos em tese incontestáveis para não se unir à euforia generalizada.

Escutemos sua confissão, aliás, nada augustiniana:

 

“(…)                            Eu, no entretanto,

que não nasci para essas travessuras

desportivas, nem para declarar-me

a um espelho amoroso, eu (…)

deformado, incompleto, antes do tempo

lançado ao mundo vivo, apenas feito

pela metade, tão monstruoso e feio

que os cães me ladram, se por eles passo…”[1]

 

De fato, considerando-se a impiedosa autodescrição, o futuro rei Ricardo III não tinha razões para se entusiasmar com os tempos de paz que se anunciavam. Sinuca de bico, beco sem saída: emparedado, o duque de Gloster anunciou uma decisão que mudou a história da Inglaterra, propiciando o advento da Dinastia Tudor. A sentença é tão cortante quanto surpreendente:

 

“I am determined to prove a villain

And hate the idle pleasures of these days.”[2]

 

A tradução de Carlos Alberto Nunes deixou escapar uma importante novidade do texto no cenário elisabetano ao optar por um vocabulário que se afasta da força do original:

 

“(…)                            determino

conduzir-me qual biltre rematado

e odiar os vãos prazeres de nossa época.”[3]

 

Imagine-se o impacto dessa fala, especialmente no momento em que o futuro rei assume sem constrangimento algum seu intento “to prove a villain”. Estamos na abertura da peça: primeira cena do primeiro ato. O duque de Gloster entra no palco e antes mesmo de abrir a boca já causa uma impressão indelével na audiência pelas suas deformidades físicas: um braço menor do que o outro, corcunda, coxo; por fim, a expressão, para dizê-lo com alguma elegância, pouco atraente. Machadiana, a pergunta se insinua: por que de família real se assim; por que assim se de família real? As palavras completam o retrato de sua triste figura, trazendo ao centro do palco um novo tipo, ou seja, o vilão que não busca dissimular seus propósitos; pelo contrário, parece orgulhar-se com sua vilania explícita, obscena até, como se a desfaçatez fosse prova de superioridade moral.

O modelo mais comum de velhaco na tradição literária pode ser visto nas artimanhas silenciosas de um Iago, tão ágil na urdidura de intrigas quanto hábil na dissimulação de seu verdadeiro caráter. A cautela inspirava-se num motivo igualmente irrefutável, pelo menos segundo o cálculo do alferes:

 

“Pois se as minhas ações exteriores mostrarem

Meus atos inatos, meu vero coração

Exposto à clara luz, vai ser rápido até

Que eu entregue às gralhas meu coração desnudo,

Pra que o espicacem. Eu não sou o que sou.”[4]

 

O vilão precisa não ser o que é, assumindo inúmeros papéis e vestindo peles as mais diversas, a fim de camaleonicamente manipular suas vítimas, ajustando-se às expectativas alheias. Ademais, ganhar tempo costuma ser fundamental para arquitetar planos bem-sucedidos. Por isso, a prudência de Iago também é instinto de sobrevivência. Revelar à luz do dia o móvel de suas ações ameaçaria tornar a trama muito pouco efetiva, já que facilmente previsível. O segredo é alma do negócio de Iago. Na peça, a estratégia do alferes é coroada de êxito: ele só é desmascarado quando já é tarde demais; até o último momento todos creem que ele é um fiel e bom amigo.

O duque de Gloster certamente desprezaria a cautela de Iago. Guerreiro temido no campo de batalha, apesar de suas limitações físicas, homem de coragem lendária, logo após proclamar-se “a villain”, ele enumerou as ações que planejou para tomar o poder. Escutar o duque de Gloster com atenção é indispensável para redimensionar o mundo contemporâneo.

(Trump, Orban, Bolsonaro, Milei, Bannon, Musk e tutti quanti.)

Você me dirá se exagero:

“Por meio de conjuras, arriscadas

insinuações, insanas profecias,

pasquins e invencionices, mortal ódio

mantenho entre o monarca e o irmão Clarence.”[5]

 

Vale a pena ter contato com o texto no original:

 

“Plots have I laid, inductions dangerous,

By drunken prophecies, libels, and dreams

To set my brother Clarence and the king

In deadly hate the one against the other.”[6]

A data geralmente aceita para a conclusão da escrita de Ricardo III remonta a 1592. Pois bem: o dono do X, Elon Musk, que provavelmente não leu a peça, lançou mão de idêntico método para ajudar a eleger Donald J. Trump em seu retorno à presidência dos Estados Unidos.

Explico:

(Mal escrevo e já me sinto constrangido.)

Mais modesto: proponho um paralelo.

Como se descobriu posteriormente, o plebiscito do Brexit, a eleição de Trump, em 2016, e, entre tantos exemplos possíveis, o triunfo de Jair Messias Bolsonaro, em 2018, foram influenciados decisivamente pelas novidades inventadas no caldeirão político dos porões da Cambridge Analytica, empresa de consultoria co-criada por Steve Bannon que atuou para modificar drasticamente o cenário das disputas majoritárias em todo o mundo. Processada num tribunal londrino, a empresa, contratada em 2016 pela campanha de Trump, reconheceu-se culpada e admitiu ter coletado informações de aproximadamente 87 milhões de usuários sem o seu consentimento.[7] A massa até então inédita de dados num pleito presidencial foi processada para fornecer relatórios detalhados a fim de orientar as estratégias de Trump em sua jornada rumo à Casa Branca.

Contudo, e eis ponto mais importante, o modelo da Cambridge Analytica era o ardiloso Iago: trabalho sujo feito na surdina, de forma quase clandestina – guerrilha na veia; eis o lema paradoxal da extrema direita contemporânea.

Elon Musk seguiu à risca as lições de Donald Trump, Jair Messias Bolsonaro e Javier Milei: o arquétipo do duque de Gloster; todos estão muito “determined to prove a villain”. Em seus discursos de campanha e no exercício do cargo em nada disfarçam suas intenções autoritárias e extremistas. Pelo contrário, converteram a retórica do ódio em linguagem cotidiana; transformaram a recusa decidida da alteridade em políticas públicas de exclusão na cara dura; revogaram direitos históricos com um despudor que surpreenderia inclusive o Ricardo III shakespeariano.

E ainda assim foram eleitos.

(Em eleições livres e democráticas.)

Acabamos de ver que as tramoias e picaretagens da Cambridge Analytica obedeceram ao receituário de Iago: para produzir um inimigo rumor sempre mais intenso, deve-se trabalhar em silêncio, à sombra. Assim foi no remoto, remotíssimo, ano de 2016.

(Nos tempos céleres que correm, uma vaga memória – se tanto.)

Em 2024 o padrão conheceu uma alteração tão radical que, presos no meio do redemoinho, ainda não tivemos tempo para nos espantar. Os números são tão hiperbólicos que soam irreais.

(Mais ou menos como investir fortunas no banco imobiliário.)

Em seu parque de diversões favorito, o Twitter, rebatizado X, Elon Musk criou a maior usina da história da humanidade de produção ininterrupta de “plots, inductions dangerous, drunken prophecies, libels, and dreams” e com idêntico alvo, qual seja, “to set in deadly hate” – e não importa entre ou contra quem, pois a plataforma X lucra, e muito, exponencialmente, com o ódio que lubrifica suas engrenagens.

(Suas entranhas – if you may.)

Aos números.

Estudo divulgado pelo Center for Countering Digital Hate sugere que Musk tornou o X uma fantástica fábrica de desinformação e, para ficar num só exemplo, em sua conta pessoal, chegou a difundir um vídeo sabidamente falso, um deep fake produzido com a mais avançada inteligência artificial, com declarações comprometedoras (e absurdas) da candidata Kamala Harris.[8]

Sem disfarce algum, pudor nenhum, Musk divulgou fake news e teorias conspiratórias sem cessar para favorecer a eleição de Donald Trump. Sortear 1 milhão de dólares todos os dias, numa óbvia gamificação da política, cujo efeito perverso é a hiperpolitização do cotidiano para despolitizar a pólis, não é nada diante da máquina de dissonância cognitiva coletiva urdida por sua plataforma.

Prepare-se para um choque de realidade:

“O estudo [do Center for Countering Digital Hate] identificou 746 postagens do bilionário entre julho e outubro com referência à eleição ou à política. No total, essas mensagens somaram 17,1 bilhões de visualizações, o dobro da audiência de todas as campanhas de comerciais pagas pelos republicanos na plataforma X.

Se fossem cobradas, essas postagens teriam custado à campanha US$ 24 milhões.

De acordo com o informe, pelo menos 87 das publicações de Musk neste ano promoveram afirmações falsas sobre a eleição dos EUA. No total, essas postagens acumular 2 bilhões de visualizações. Apenas as afirmações de Musk de que os democratas estavam importando eleitores e permitindo que estrangeiros pudessem votar somaram 1,3 bilhão de visualizações.”[9]

Utopia em pleno século XXI distópico: Elon Musk, leitor agudo de Machado de Assis, definiu sua personalidade ao ler o conto: “Suje-se gordo!” Manteve-se fiel à lição machadiana: a eleição de Donald Trump é prova inconteste. E sujo, muito, engordou bastante sua fortuna.

Viver na era de Ricardo III é o desafio que temos pela frente. Aqui, contudo, não podemos nos dar ao luxo de repisar o poema do Bruxo do Cosme Velho, “Perguntas sem resposta”.

(Sei que nada será como antes amanhã. Amanhã ou depois de amanhã. Resistindo na boca da noite um gosto de sol.)

 

[1] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Ato I, cena I. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 485.
[2] William Shakespeare. King Richard III. Act I, scene I. Cambridge: The New Cambridge Shakespeare, 2009, p. 63.
[3] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Op. cit., p. 485.
[4] William Shakespeare. A tragédia de Otelo, o mouro de Veneza. Ato I, cena I. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2017, p. 137.
[5] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Op. cit., p. 485.
[6] William Shakespeare. King Richard III. Op. cit., p. 63.
[7] “Cambridge Analytica se declara culpada em caso de uso de dados do Facebook”. G1, 09/01/2019: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/01/09/cambridge-analytica-se-declara-culpada-por-uso-de-dados-do-facebook.ghtml.
[8] Ver um estudo feito pelo Centro, https://counterhate.com/research/musk-misleading-election-claims-viewed-1-2bn-times-on-x-with-no-fact-checks/.
[9] Jamil Chade. “Mentiras de Musk sobre eleição e Kamala somaram 2 bi de visualizações”. UOL, 05/11/2024: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/11/05/mentiras-de-musk-sobre-eleicao-e-kamala-somaram-2-bi-de-visualizacoes.htm.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Marçal, Moraes e Bolsonaro: os atores centrais do conflito bolsonarista na política e nos jogos de poder da extrema-direita em artigo de Pedro Barciela

 

Conflito interno ao bolsonarismo acompanha arrefecimento nos ataques ao STF, ainda que Moraes seja figura "central" no conflito


Marçal, Moraes e Bolsonaro: os atores centrais do conflito bolsonarista



Por Pedro Barciela, no Instituto Conhecimento Liberta


A última semana marcou um novo capítulo no conflito envolvendo a família Bolsonaro, o ex-coach Pablo Marçal e – como não podia deixar de ser no bolsonarismo – o ministro Alexandre de Moraes. Na crise envolvendo Alexandre de Moraes e o bolsonarismo, o fim do escritório do X (Twitter) foi o novo capítulo de destaque.

A retirada da representação comercial e jurídica da empresa foi interpretada por atores ligados ao bolsonarismo como mais uma prova explícita da “censura perpetrada por Moraes”. Diferentemente do episódio envolvendo reportagem da Folha de São Paulo, a retirada do escritório no X no Brasil atraiu a atenção de atores não-polarizados, e apresenta potencial de expandir o campo de alcance deste tema.

No entanto, entre convocações para atos na Av. Paulista e ataques dos mais variados atores ligados ao bolsonarismo e ao lavajatismo, outro tema viria se destacar nesse agrupamento: o conflito entre Pablo Marçal e a família Bolsonaro.

Como exemplo, no dia 21 (quarta-feira) o conflito com bolsonaristas, a investigação de aliados de Marçal por envolvimento com tráfico, vídeo homofóbico, desistência de entrevista em canal bolsonarista e áudios de suposto golpe ofuscaram a pesquisa Atlas/Intel que colocou Marçal em 3º lugar na corrida eleitoral de SP.

Não apenas Carlos Bolsonaro, mas também atores como Eduardo Bolsonaro, Paulo Figueiredo e perfis influenciadores do bolsonarismo passaram a atacar diretamente o candidato. Em destaque novamente o antagonista do bolsonarismo: a ausência de um confronto explícito do ex-coach com Alexandre de Moraes é usada como (um dos) pretexto bolsonarista para desferir os ataques contra ele.

Volume de menções ao ministro Alexandre de Moraes, apesar das novas matérias da Folha de São Paulo, arrefece ao mesmo tempo em que as menções ao ex-coach Pablo Marçal crescem no X (Twitter)

Assim como a saída do escritório do X (Twitter) do Brasil, o atrito público entre Pablo Marçal e Jair Bolsonaro gerou atenção e engajamento de atores não-polarizados e perfis de fofocas. Isso gerou uma série de fissuras internas ao cluster bolsonarista que limitam, em última instância, a ampliação do volume de menções ao tema que parecia central ao grupo nesse período: Alexandre de Moraes e STF.

Assim como qualquer fissura dentro de um agrupamento, vale ressaltar que existem usuários que criticam publicamente o posicionamento da família Bolsonaro. Apesar de não serem atores centrais, diversos usuários manifestam algum tipo de incômodo com a escolha de Nunes como candidato bolsonarista e o que entendem ser um excesso de ataques contra Marçal.

Sem dúvida, é cedo para fazermos uma análise do impacto de tal fissura no bolsonarismo. No entanto, é provável que tal conflito já esteja limitando um dos principais trunfos deste agrupamento: a sua coesão. Divididos entre a tal “Vaza Toga”, a defesa da família Bolsonaro e os ataques contra Pablo Marçal, o agrupamento não apenas vê minguar sua atuação como oposição ao governo federal, mas também vê em xeque a sua tão imprescindível capacidade de sintonia.

 

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Globonews, entre as fakenews e o jornalismo, por Luís Nassif

 

Por que uma empresa com a dimensão da Globo não tem seu ouvidor, seu ombudsman? Por que se permite manipulações que comprometem o canal



Jonal GGN. - São Tomás de Aquino dizia que uma das formas de mentira é contar apenas parte da verdade. De fato, há duas formas de notícias falsas, a mentira propriamente dita e a narrativa manipuladora, na qual uma parte da verdade serve de álibi para uma interpretação mentirosa.

As redes sociais alimentam-se de mentiras e de narrativas mentirosas. Por isso mesmo, o único diferencial das veículos de mídia é o filtro, a checagem. E isso em um país em que 46% dos brasileiros não sabem identificar as fake news, conforme reportagem da GloboNews.

Por outro lado, nos últimos tempos, o canal tentou dar um pouco de diversidade aos seus comentaristas. Contratou bons nomes, abriu espaço para bons jornalistas que andavam escondidos e que passaram a trazer luzes sobre o discurso da ultradireita. Ao mesmo tempo, reforçou o time da ultradireita, com Demétrio Magnolli e, agora, o inacreditável Joel Pinheiro da Fonseca, um  bravo defensor do comércio de órgãos humanos. E tem também o pensamento conservador consistente de Fernando Gabeira.

Agora, vamos a uma lição em poucos capítulos sobre como criar uma fake news.

Começa com a meia verdade de Magnolli:

O tal Acordo de Barbados foi liderado pela Noruega, com o apoio de muitos países, inclusive o Brasil e os Estados Unidos. Visava pacificar a Venezuela depois da tentativa de golpe de estado que mandou inúmeros conspiradores para a cadeia.

O acordo previa a libertação dos prisioneiros e a convocação de novas eleições, simples assim.

Qual é o truque de Magnolli:

  1. O acordo – apoiado pelo Brasil – propôs novas eleições.
  2. As eleições foram manipuladas, segundo os dados da oposição. Logo, o Brasil (e os Estados Unidos) apoiaram o acordo de uma eleição que, quando realizada, foi apontada (pela oposição) como manipulada.

Ou seja, utilizou uma informação verdadeira – a de que o Brasil apoiou o acordo – para uma conclusão falsa – a de que o acordo foi responsável pela eleição falsa. Sem o acordo, não haveria sequer eleições e Demétrio ficaria sem álibi para espalhar suas narrativas.

Dado o tiro de partida, entram em cena os disseminadores de fake news – perfis, verdadeiros, falsos ou irrelevantes – que tratam de multiplicar a mentira.

Ou um jornalista venezuelano.

Ou um ex-político de terma único.

E os anônimos em geral.

Aí pergunto: empresas modernas têm departamento de compliance, ouvidoria e outras formas para garantir a qualidade dos produtos e impedir o uso espúrio da estrutura.

Por que uma empresa com a dimensão da Globo não tem seu ouvidor, seu ombudsman? Por que se permite manipulações dessa natureza, que comprometem o canal como um todo, apesar da qualidade de parte de seus comentaristas.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

A banalização das análises de uma mídia parcial e rasa sobre a posição de Lula nas eleições da Venezuela, por Luís Nassif

 

Lula agiu como deve agir um mediador. Não condenou antecipadamente a eleição, não validou a eleição, e pediu as atas de votação

Do Jornal GGN:



É impressionante como a guerra cultural da ultradireita avacalhou todo o processo de análise da mídia. Consistiu em banalizar todos os rituais jurídicos, diplomáticos, sociais. Quando Milei sapateia nas instituições, ou Bolsonaro tentava dar dimensão de briga de bar nos confrontos com outros poderes, o que se queria era a desmoralização de todos os rituais que caracterizam a democracia. 

O efeito se vê agora, nesse oceano de pataquadas – à esquerda, à direita e, especialmente, na mídia – sobre a posição de Lula em relação a Venezuela. O que tem de colunista, militante, editorial, condenando Lula, simplesmente por ter se recusado a botar lenha na fogueira. Tratam uma questão diplomática sensível com o mesmo senso de quem aprecia uma briga de bar. É impressionante a banalização da análise, especialmente em temas de geopolítica. Não fica nada a dever a uma discussão entre torcidas de futebol.

Lula agiu como deve agir um mediador. Não condenou antecipadamente a eleição, não validou a eleição, e pediu as atas de votação, como prova de que houve ou não manipulação. 

Simples assim, quando se trata das relações com outro país, e se sabe da relevância do Brasil para manter o equilíbrio no continente. 

De quem efetivamente importa, Lula conseguiu os seguintes resultados: 

“Biden ligou para Lula nesta tarde. Segundo o Itamaraty, o presidente teria falado ao norte-americano sobre a importância de publicar os comprovantes da eleição 

Fontes no governo contam que Biden queria um panorama do que está acontecendo na Venezuela. Sob os governos de Hugo Chávez e Maduro, a Venezuela tem sido um dos principais opositores dos EUA no mundo, e Lula poderia ajudar a refazer a ponte entre as duas nações” 

A Casa Branca disse que os dois países vão continuar monitorando os resultados. “Os dois líderes dividiram a perspectiva de que o resultado da eleição venezuelana representa um momento crítico para a democracia no hemisfério”, afirmou o governo norte-americano, por meio de nota”. 

“O candidato presidencial da oposição na Venezuela, Edmundo González Urrutia, agradeceu na noite de segunda-feira 22 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo seu apoio a um “processo eleitoral pacífico”, referindo-se às eleições que ocorrerão no país no domingo, 28. 

“Agradecemos as palavras do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em apoio a um processo eleitoral pacífico e amplamente respeitado na Venezuela”, disse o ex-embaixador no X, antigo Twitter”. 

Comprovada a acusação de fraude, então que os países se posicionem.

No final do dia, Argentina e outros países da América Latina – cujos diplomatas foram expulsos por Maduro – pediram para o Brasil representá-los. Conforme um comentário no X, nada mais indicativo de que o Brasil é o adulto da sala.