quinta-feira, 22 de junho de 2017

A ofensiva fundamentalista Bolsonárica-Feliciana na Educação



De Brasília a Curitiba, afirma-se ofensiva fundamentalista na educação


Por Alceu Castilho, em seu Blog no Outras Palavras

"Pele de Asno". (Jacques Demy, 1970)
“Pele de Asno”. (Jacques Demy, 1970)
Jornal Gazeta do Povo ataca teses de ciências humanas ligadas à sexualidade; MEC recolhe livro por considerar conto tradicional “apologia ao incesto”; teremos um índex?
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Duas notícias aparentemente díspares, na semana passada, tomaram as redes sociais. E apontam para uma mesma tendência: fundamentalismo. Ambas tratam de educação. Uma delas foi uma peça publicitária contra as ciências humanas – disfarçada de jornalismo – no principal jornal paranaense, a Gazeta do Povo. A outra, a decisão do Ministério da Educação de recolher 98 mil exemplares de um livro por considerá-lo “impróprio”.
Essa aliança específica entre imprensa tradicional e o governo de Michel Temer não é casual. Está ligada à ideologia da Escola Sem Partido, por um lado, ao esvaziamento da diversidade e da perspectiva crítica no ensino. Por outro, aponta para uma migração de determinada posição moralista, não somente religiosa, refratária a temas que os jornalistas paranaenses e a equipe do ministro da Educação, Mendonça Filho, julgam incômodos.
É como se as políticas públicas tivessem, neste momento sombrio que atravessa o Brasil, de se submeter ao pudor desses senhores.
TEMAS ERÓTICOS DEMAIS?
Tomemos inicialmente o panfleto da Gazeta do Povo, com o seguinte título: “Dez monografias incomuns bancadas com dinheiro público“. Uma entre os dez pesquisadores atacados enviou ao jornal uma resposta, editada com certo grau de ironia: “Autora de tese de doutorado sobre Mr. Catra critica pensamento ‘elitista e preconceituoso’“.
Basta uma olhada na lista de dez dissertações e teses feita pelo editor de educação da Gazeta para perceber que ele considera “incomuns” temas ligados ao erotismo e à sexualidade. Nada menos do que seis itens (1, 3, 4, 5, 6 e 10) entram diretamente nesse rol. Logo no título ou na apresentação contêm palavras como “banheirão”, “piriguete”, “zuadinha”, “pegação”. É possível enxergar o jornalista h-o-r-r-o-r-i-z-a-d-o com os temas.
Todas as teses são academicamente relevantes – para além do tribunal erigido pelo escriba. Em outros dois casos ele ataca o funk e o sertanejo universitário, talvez imaginando requebradas que julga não fazerem parte da preocupação de pesquisadores sérios.
Mas o mais grave fica para o último item desse índex: uma tese de doutorado na Universidade de São Paulo que trata de pedofilia. Como ninguém em sã consciência pode questionar a importância de se compreender melhor o tema, pergunta-se: por que ele foi inserido ali, estrategicamente encerrando a relação de estudos “incomuns”?
Resposta: o jornal apela para o senso comum, ao resumir o estudo de uma forma que indignará os leitores que percebem pedofilia e crimes sexuais contra crianças como a mesma coisa. Não são. É possível ver uma abordagem séria do tema em entrevista do próprio autor à Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp TV), neste vídeo:
Mas a Gazeta do Povo prefere jogar a favor do obscurantismo. Como se alguém estivesse defendendo a pedofilia – e não tentando entendê-la melhor. A favor de quais interesses?
A OFENSIVA ESPECÍFICA DO MEC
No Ministério da Educação, não menos ignorância – aliada a uma determinada visão excludente. Motivo da celeuma: um conto da tradição popular, das fábulas, presente em uma coletânea organizada pelo escritor José Mauro Brant: “Governo recolhe 98 mil exemplares de livro infantil por considerá-lo ‘impróprio’“. A narrativa foi apresentada – em redes sociais e em debates legislativos pelo país – como uma apologia do incesto.
Nada mais injusto. E mentiroso. A ponto de a insuspeita (por conservadora que é) revista Veja ter publicado artigo de um pesquisador contestando com veemência essa tese: “Livro recolhido pelo MEC não é apologia do incesto. É seu oposto“.
O El País Brasil resumiu desta forma o enredo: “A fábula conta a história de um rei que deseja se casar com uma das suas três filhas, a qual, por se negar, é castigada e morre de sede”.
O conto em questão, “A Triste História da Eredegalda”, não é uma ideia original de Brant. E sim uma adaptação de uma narrativa que atravessa séculos. Como a do Pequeno Polegar, não exatamente uma história em defesa de ogros que comem criancinhas. Ou a da Chapeuzinho Vermelho – igualmente não uma narrativa em defesa do Lobo Mau.
(Eu imagino Mendonça Filho aflito ao ouvir a história do Pequeno Polegar. O abandono das sete crianças no bosque pelos pais, por causa da fome. A chegada ao castelo do ogro, quando são avisados pela mulher dele que ali mora um comedor de criancinhas. O desfecho do conto, reunido da tradição popular por Charles Perrault, quando o ogro sente cheiro de criancinhas e as engole – só que, por um artifício de Polegar, não são os sete irmãos, mas suas sete filhas.)
Em “Literatura Oral no Brasil” (1978), Luís da Câmara Cascudo mostra a tradição narrativa que desemboca em Eredegalda. Ela vem de Delgadinha, Silvana, ou Silvaninha, também Aldevina, Aldininha, Gualdina. A história “caracteriza o sacrifício”, define o autor. Em contraposição a outras duas tradições ligadas ao tema, a de “Pele de Asno”, onde o disfarce e a fuga são elementos centrais contra o incesto (sim, rejeitado), e de “A Moça sem Mãos”, onde a mutilação é o recurso utilizado para rejeitar a investida do pai.
Trata-se de um motivo folclórico universal, como observa Câmara Cascudo. Uma consulta à obra do potiguar mostra que essas histórias já eram contadas no século XIII – afastando-nos, portanto, de qualquer definição da política do MEC como apenas “medieval”. E desembocam no século XX, como na versão cinematográfica de “Pele de Asno”, dirigida por Jacques Demy em 1970, a partir da obra de Perrault. Com Catherine Deneuve, Jean Marais e Jacques Perrin:
Apesar de tudo isso, a obra foi retirada de circulação, para a alegria de políticos como o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), aquele que se projetou para a política como fundador da União Democrática Ruralista, a UDR, nos anos 80. Ele disse que o livro “incentiva o incesto” e que “não foi à toa que o PT incluiu esse livro criminoso em nossas escolas”.
Observem a palavra utilizada: “Criminoso”.
OS OVOS DOS CUPINS
Essas campanhas estão muito longe de constituírem apenas uma trapalhada. Elas têm determinados alvos. E muitos efeitos colaterais. Por conta delas, José Mauro Brant tem sido vítima de ódio virtual. Esse ódio não vem do nada. É construído diariamente por homens públicos – ou jornalistas com a mesma mentalidade – a serviço de determinada visão de mundo. Excludente e empobrecedora.
Essa gente, no limite, caso não seja denunciada a tempo, um dia trancafiará pesquisadores e queimará bibliotecas.

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