Além de gênio da fotografia, o artista mineiro era contador de histórias de personagens do Brasil Real
Do ICL Notícias:
“O que dizer desse metal amarelo e opaco que leva homens a abandonar seus lares, vender seus pertences e cruzar um continente a fim de arriscar suas vidas, seus corpos e sua sanidade por causa de um sonho?”, perguntava, em momento de reflexão sobre suas aventuras no Brasil, o fotógrafo Sebastião Salgado, em 2019, ao inaugurar uma exposição, no Sesc Paulista, com fotografias inéditas sobre o garimpo de Serra Pelada.
Indignado com o festival de notícias sobre devastações de partes da Amazônia durante o governo Bolsonaro, o fotógrafo blasfemava contra o presidente da época. No seu mineirês imbatível — mesmo depois de tantos anos fora do Brasil —, Salgado dizia um rosário de adjetivos impublicáveis contra o então ocupante do Palácio do Planalto.
Para completar o escárnio, coisa na linha dos resmungos de Riobaldo (no livro “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa), o artista recitava os apelidos do demo, referindo-se ao mesmo todo-poderoso da extrema direita naquele período: “O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejo.”
Desabafos à parte contra Bolsonaro, voltemos a subir os barrancos de Serra Pelada. Esse era um dos seus assuntos prediletos em entrevistas e nas raras mesas de bares nas quais dei sorte de tê-lo como companheiro de prosa.
Foi uma foto do formigueiro do garimpo que o ajudou a consagrar no mundo. O New York Times colocou a imagem entre as 25 que definem a ideia de era moderna. Não é pouca glória. Salgado preferia, no entanto, relembrar das sagas fantásticas de personagens que saíram em busca do ouro na Amazônia.
Histórias como a do garimpeiro José Mariano dos Santos, conhecido como “Índio”, que extraiu 1.183 quilos de ouro dos barrancos de Serra Pelada, no Pará. Uma fortuna do tamanho de um prêmio da Mega-Sena especial da Virada.
Em uma das tantas aventuras vividas por Índio, a mais conhecida é essa, segundo lembrava o fotógrafo. Um dia ele sentiu discriminado pela aparência no balcão de uma empresa aérea em Marabá, enquanto tentava adquirir uma passagem. No momento de revolta, não teve dúvida: pegou três sacas de dinheiro e fretou um boeing da Transbrasil para viajar sozinho com a tripulação até o Rio de Janeiro, onde encontraria uma paixão amorosa, Terezinha — dançarina que havia se apresentado em um show no garimpo com o cantor Sidney Magal.
Poucos tiveram a sorte deste aventureiro que se tornou personagem de programas de TV e documentários de cinema, mas Serra Pelada ficou na memória do país com a sua imagem única de um formigueiro humano por onde passaram cerca de 100 mil brasileiros. Somente no primeiro ano de funcionamento, foram 30 mil homens em busca de riqueza.
Trinta mil homens e raríssimas mulheres. Elas eram proibidas de buscar o sonho dourado. Isso não impediu que Raimunda Conceição se fantasiasse de “cabra macho”, com bigode e tudo, na tentativa de encontrar a fortuna.
O eldorado brasileiro acabou juntando os destinos de Índio e de Raimunda. Depois de uma vida de extravagância, incluindo uma temporada no hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, ele casou com a ex-garimpeira infiltrada, e que viria a ser sua décima terceira mulher na vida.
Raimunda pegou um Índio sem um grama de ouro, mas sustentou o marido até a sua morte, em 2015, vítima de um derrame aos 61 anos de idade. Ela segue firme sobre a mesma terra onde arriscou a própria pele na corrida pela riqueza.
O maior garimpo a céu aberto do mundo começou com uma pepita de ouro encontrada, ao acaso do acaso, por um morador da fazenda Três Barras, no final de 1979. A notícia se espalhou de boca em boca e começou a atrair milhares de pessoas. Em pouco tempo, a vegetação havia sido destruída pelos aventureiros — daí se deu o nome de Serra Pelada ao lugar. O fenômeno da mineração durou de 1980 a 1992.
Diante da invasão de garimpeiros, o governo federal determinou que outro Sebastião, o major Curió, fosse o comandante do pedaço, responsável pela organização e disciplina. O cargo representava um prêmio pelos serviços prestados na Guerrilha no Araguaia (1967-1974) — ele ficara famoso pela perseguição, tortura e morte de militantes do PC do B.
A primeira ordem de Curió foi proibir a presença de mulheres e de bebida alcóolica na área. O motivo: evitar que o lugar virasse uma zona, segundo suas palavras. O trabalho do mandachuva lhe rendeu ouro e o mandato de deputado federal, em 1982. Com a aglomeração desordenada nos arredores do garimpo, fundou uma cidade em sua própria homenagem: Curionópolis, de onde seria, posteriormente, o primeiro prefeito.
Não é possível contar a história do garimpo, porém, sem lembrar do “Massacre da Ponte”, dizia Salgado. O episódio ocorreu em 29 de dezembro de 1987, no município de Marabá.
A Polícia Militar paraense, com auxílio do Exército, atacou, com fuzis e metralhadoras, um grupo de 300 pessoas que protestavam por melhores condições de trabalho e pela manutenção da extração manual de ouro. Os organizadores do protesto informaram que pelo menos 50 garimpeiros foram assassinados.
Serra Pelada sempre instigou o imaginário dos brasileiros com seus episódios de violência na selva ou de fantasia de enriquecimento. Nas suas lentes ou na sua prosa, ninguém escreveu essa crônica como Sebastião Salgado.
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