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sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Porque é preciso ter a “Lei Cancellier” contra os abusos de poder




É mais que um belíssimo e sensível o trabalho dos repórteres Monica Weinberg e Thiago Prado, da Veja. É um libelo acusatório contra as monstruosidades que estão sendo feitas, em nome da moral e da Justiça, humilhando pessoas, prendendo-as antes de serem ouvias, violando suas intimidades até físicas. A morte do reitor Luiz Cancellier não foi, até agora, tão bem descrita, nem a brutalidade que o levou ao suicídio tão bem narrada. O dia em que, finalmente, este país tiver uma lei que puna o abuso de autoridade, que ela seja conhecida como Lei Cancellier, como a Maria da Penha deu nome à da violência contra a mulher.

leicancellier

Crônica de um suicídio

 Monica Weinberg e  Thiago Prado, na Veja
Na noite do domingo 1º de outubro, um antigo cliente do Macarronada Italiana, de onde se avista a deslumbrante Baía Norte de Florianópolis, entrou no restaurante à procura de Zé. O garçom José de Andrade, de 63 anos, irrompeu no salão e aproximou-se para registrar em seu bloquinho o pedido de sempre do freguês de quase quatro décadas: talharim à bolonhesa.
— Não, Zé, hoje só vim te ver e tomar um café contigo.
O garçom percebeu um timbre diferente e retrucou:
— Te conheço, Cau. Você está bem?
Dali, Cau foi ao Shopping Beiramar, uma caixa de concreto de sete andares, subiu até o último piso e andou em torno das escadas rolantes mirando lá embaixo, como quem calcula o território. Caminhou duas, três, cinco vezes ao todo. E decidiu ir ao cinema. Assistiu a Feito na América, o mais recente filme de Tom Cruise, e voltou para casa. No dia seguinte, na última manhã de sua vida, Cau deixou seu apartamento, no bairro de Trindade, e pegou um táxi. No meio do caminho, talvez à espera de que o shopping abrisse as portas, às 10 horas, encerrou a corrida na Praça dos Namorados, onde costumava levar o filho quando pequeno. Sentou-se num banco. Uma conhecida o cumprimentou, ele perguntou as horas. Eram 9h20. Quando o shopping abriu, Cau não demorou a chegar. Cruzou com um estudante universitário, a quem saudou protocolarmente, e tomou o elevador até o 7º andar. As câmeras de segurança do shopping captaram o momento em que Cau, sem nenhuma hesitação, se postou na escada rolante, colocou as mãos no corrimão de borracha, em seguida subiu ali com os dois pés — e jogou-se no vão da escada, projetando-se no precipício. Despencou de uma altura de 37 metros, a uma velocidade de 97 quilômetros por hora. Seu corpo bateu no chão como se tivesse 458 quilos. Ele morreu na hora, às 10h38 de 2 de outubro de 2017.
O suicídio de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, aos 59 anos, o Cau, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi o desfecho trágico de dezoito dias dramáticos. Sua vida começou a desabar na manhã de 14 de setembro, quando agentes da Polícia Federal deflagraram a Operação Ouvidos Moucos, com o objetivo de apurar desvios de verbas para cursos de ensino a distância na UFSC. Às 6h30 daquela quinta-feira, o reitor ouviu tocar a campainha de seu apartamento e, enrolado em uma toalha de banho, abriu a porta para três agentes da PF, que subiram sem se fazer anunciar pelo porteiro do edifício. Os agentes traziam dois mandados — um de prisão temporária e o outro de busca e apreensão. Recolheram o tablet e o celular do reitor e conduziram-no à sede da Polícia Federal em Florianópolis, dentro de uma viatura.
Atônito, sem entender o que estava acontecendo, o reitor só se lembrou de chamar um advogado quando estava prestes a começar seu depoimento, às 8h30. Durante as cinco horas em que foi arguido, passou duas sem saber por que estava à beira da prisão. Ainda respondia a perguntas sobre os meandros operacionais do ensino a distância, com o estômago embrulhado pelo jejum matinal e pelo tormento das circunstâncias, quando a delegada Érika Mialik Marena, ex-coordenadora da força-tarefa da Lava-Jato, à frente agora da Ouvidos Moucos, adentrou o local. Apressada para iniciar a coletiva de imprensa que começaria logo mais, Érika finalmente esclareceu ao interrogado o motivo de tudo aquilo: “O senhor não está sendo investigado pelos desvios, mas por obstrução das apurações”. E correu para comandar o microfone na sala ao lado.
Desde cedo, já voava nas redes sociais a notícia de que a Polícia Federal deflagrara uma operação de combate a uma roubalheira milionária na UFSC. A página oficial da PF no Facebook, seguida por 2,6 milhões de pessoas, destacava a Ouvidos Moucos: “Combate de desvio de mais de 80 milhões de reais de recursos para a educação a distância”. Ainda acrescentava duas hashtags para celebrar a ação: “#euconfionapf” e “#issoaquiépf”. A euforia não encontrava eco nos fatos. Na coletiva, a delegada Érika explicou que, na realidade, não havia desvio de 80 milhões de reais. O valor referia-se ao total dos repasses do governo federal ao programa de ensino a distância da UFSC ao longo de uma década, de 2005 e 2015, mas não soube dizer de quanto era, afinal, o montante do desvio. Como a PF não se deu ao trabalho — até hoje — de corrigir a cifra na sua página do Facebook, os 80 milhões colaram na biografia do reitor. Em seu velório, uma aluna socou o caixão e bradou: “Cadê os 80 milhões?”.
Encerrado seu depoimento, o reitor deveria ficar retido na sede da PF, mas, como a carceragem havia sido desativada, foi para a Penitenciária de Florianópolis, um complexo de quatro pavilhões construído em 1930. Acorrentaram seus pés, algemaram suas mãos e, posto nu, ele foi submetido a revista íntima. Um dos agentes ironizou: “Viu, gente, também prendemos professores!”. Cancellier vestiu o uniforme laranja, foi fichado e passou a noite em claro. Seus dois colegas de cela, presos na mesma operação, choravam copiosamente. Cancellier estava mudo, como que em transe, e cada vez mais sobressaltado com os rigores do cárcere. Ficou trinta horas na cela na ala de segurança máxima. Teve sintomas de taquicardia: suava muito e a pressão disparou para 17 por 8. Seu cardiologista foi autorizado a examiná-lo, trazendo os remédios que ele havia deixado em casa (desde dezembro, quando implantou dois stents, Cau tomava oito medicamentos).
Quando deixou a cela, Cancellier era um homem marcado a ferro pela humilhação da prisão. Sua família o recebeu em clima de festa e alívio. Os irmãos, Julio e Acioli, tinham comprado de tudo um pouco no Macarronada Italiana para um jantar regado a vinho branco Canciller, rótulo argentino escolhido pela similaridade com o nome de origem italiana da família. Também ali estava o filho do reitor, Mikhail, de 30 anos, doutor em direito como o pai, com quem ele mantinha um laço inquebrantável. Mas, entre piadas e risos, Cancellier exibia um semblante sem expressão. “Ele estava chocado. Revivia aquelas cenas o tempo todo”, lembra o irmão Julio, jornalista de 51 anos. Mais que tudo, o reitor estava sendo esmagado pelo peso da proibição de pisar na universidade até o final das investigações. A decisão fora tomada junto com o mandado de prisão e, para o reitor, soou como uma punição cruel.
Depois de ter visto seu nome nas manchetes do noticiário na internet e na TV, Cancellier deu boa-noite a todos e recolheu-se. Não era um homem aliviado pelo fim do martírio da prisão nem reconfortado pelo reencontro com a liberdade. Deixou o jantar como um derrotado. Um dos convivas, o desembargador Lédio Rosa de Andrade, de 58 anos, amigo da infância pobre passada em Tubarão, a 130 quilômetros de Florianópolis, percebeu o peso que o reitor carregava. “Ele entendeu que o episódio deixaria uma marca incontornável em sua biografia”, diz Andrade, colega de colégio de Cancellier.
A UFSC era uma extensão da casa do reitor. Seu apartamento, de três cômodos, onde viveu dezenove anos, dois deles casado e o restante na companhia do filho, fica a 230 passos do câmpus. Nos fins de semana, o reitor fazia uma ronda informal, bem à vontade em seu moletom. Na UFSC, ele teve, para os padrões acadêmicos, uma carreira meteórica. Em apenas dezoito anos, concluiu o curso de direito, fez mestrado, fez doutorado em direito administrativo, virou diretor do Centro de Ciências Jurídicas e, numa eleição acirrada, elegeu-se reitor — cargo que ocuparia por dezesseis meses. Na eleição, a paciência para tecer alianças foi arma decisiva em um jogo embaralhado. “Ele não era um orador brilhante, mas era um articulador que conseguia trazer para o mesmo lado gente de todos os espectros ideológicos”, define o amigo Nelson Wedekin, de 73 anos, ex-senador pelo PMDB local.
Desde a juventude, a rotina universitária era a bússola da vida de Cancellier. Em 1977, aos 19 anos, época em que fazia política estudantil com o cabelo desgrenhado e bolsa de couro a tiracolo, ele se encantou com a universidade. “Não quero nunca sair daqui”, confessou ao amigo Osvaldir Ramos, hoje presidente do Conselho Estadual de Educação em Santa Catarina. Acabou forçado a sair, no regime militar, em decorrência de sua militância no Partido Comunista Brasileiro, o antigo Partidão, e da chamada novembrada: em 30 de novembro de 1979, o presidente João Figueiredo, o último ditador do ciclo militar, baixou em Florianópolis, bateu boca com estudantes na rua e o episódio terminou em pancadaria e prisões. Cancellier teve de desaparecer da faculdade de direito. Ressurgiu cinco meses depois trabalhando em um jornal e acabou tornando-se assessor de políticos, inclusive de Wedekin, função que o levou a se mudar para Brasília. Só voltou à UFSC em 2000, aos 42 anos, para cumprir uma fulminante trajetória acadêmica — e ser de novo expelido da universidade, agora em plena democracia e na condição de reitor, num banimento que lhe pesou como uma suprema humilhação. No muro da universidade, um anônimo grafitou: “Fora Cancellier”.
“A humilhação é a bomba nuclear das emoções”, afirma a psicóloga alemã Evelin Lindner, uma autoridade mundial num ramo da psicologia que estuda o peso da vexação em sociedade e sua relação com atos de violência — como o terrorismo e o suicídio, que, não por acaso, andam juntos. Se a culpa é uma dor que vem de dentro, a humilhação é como uma dor que vem de fora, imposta pelo olhar alheio. É sentida como uma falência em público. Sai cortando fundo no orgulho, na honra, na dignidade, e tende a ficar marcada como uma cicatriz. Escreve o psiquiatra Neel Burton, professor em Oxford e autor do livro Heaven and Hell: The Psychology of the Emotions (Céu e Inferno: a Psicologia das Emoções): “As pessoas que foram humilhadas carregam a marca da humilhação, são lembradas pela humilhação. Em um sentido muito real, elas se tornam a própria humilhação que sofreram”.
Os estudos científicos sugerem que, quando estão em jogo elementos que constituem a razão de ser de uma pessoa, como princípios, posição ou status, o peso da vergonha pode até desfigurar a identidade pessoal e tornar-se insuportável. “Em alguns casos, ser submetido a uma situação vexaminosa gera condutas irracionais e pode desencadear uma resposta violenta, como o suicídio”, diz o professor Helio Deliberador, do departamento de psicologia social da PUC de São Paulo. O filho mais velho de Bernard Madoff, um dos nomes mais cintilantes de Wall Street, suicidou-se depois da descoberta de que seu pai era, na verdade, um farsante que aplicara golpes bilionários. Jacintha Saldanha, enfermeira em um hospital onde a duquesa Kate esteve internada em 2012, caiu no trote de radialistas australianos que se fizeram passar pela rainha da Inglaterra, facilitou o acesso a dados sobre o estado de saúde da duquesa e foi publicamente achincalhada. Matou-se aos 46 anos. Como escreveu Albert Camus em Mito de Sísifo: Ensaio sobre o Absurdo: “Matar-se, em certo sentido, é confessar que se é ultrapassado pela vida e que não a compreendemos”.
Nos dias que se seguiram à sua soltura, Cancellier começou a ser ultrapassado pela vida. “Passou a alternar momentos em que achava que ficaria tudo bem com outros em que mergulhava no desânimo”, diz o ex-senador Wedekin. Em 16 de setembro, dois dias depois da prisão, seu irmão Acioli levou-o para falar com advogados. Ao entrar e sair do táxi, Cancellier tremia, com medo de ser reconhecido na rua e hostilizado. Com o celular confiscado pela PF, quase não atendia o telefone fixo de casa. Não ligava a TV e, ao irmão Julio, disse que cometera “suicídio digital”, pois retirara fotos do Facebook e parara de navegar nas redes sociais. Ensimesmou-se a tal ponto que os irmãos decidiram levá-lo a uma psiquiatra, a primeira vez na vida que buscava ajuda dessa natureza.
A consulta com a médica Amanda Rufino ocorreu em 19 de setembro, cinco dias depois da prisão. Ele saiu de lá com o diagnóstico de “sintomas de stress pós-traumático desencadeados por impactante fator estressor no âmbito profissional” e um quadro de “intensa sensação de angústia, de opressão no peito e taquicardia”. A psiquiatra prescreveu um ansiolítico e um antidepressivo, ambos em doses moderadas. Cancellier tomou obedientemente os remédios e voltou à médica em 29 de setembro, a três dias do suicídio. Ao final da segunda consulta, a psiquiatra comentou com um dos irmãos do reitor que a situação parecia sob controle. “O quadro está evoluindo bem”, disse. A João dos Passos, procurador-geral do estado, o reitor deu uma pista do que sentia: “Vou te confidenciar, João. Meu estado é de pós-catástrofe, como se eu fosse o sobrevivente de uma queda de avião. Não consigo me situar, raciocinar direito”. O amigo Lédio Andrade, com quem o reitor jogava xadrez, descreve um Cancellier irreconhecível: “Seu raciocínio ficou lento e os olhos fixavam o infinito. Não parecia o Cau”.
Em situações normais, o reitor tinha entusiasmadas conversas sobre Shakespeare, Freud e o cristianismo, temas que despertavam sua curiosidade intelectual. Agora, nada parecia atrair seu interesse. O irmão Acioli, engenheiro que mora em São José dos Campos, tentando tirá-lo da clausura de si mesmo, alugou um Fiat Uno e provocou: “Agora você vai me mostrar essa ilha”. Era sempre o irmão ao volante, pois Cancellier, apesar de ter carteira de motorista, só dirigia moto. Nesses passeios, o reitor até relaxava, mas logo voltava a cerrar-se em casa.
Em Foz do Iguaçu, sua ex-mulher, Cristiana Jacquenin, de 48 anos, externou seu temor aos mais chegados: “Tenho medo do que ele possa fazer. Ele não vai aguentar ficar longe da universidade, é a vida dele”. Crica, como Cancelllier a chamava, foi uma paixão fulminante — em dois meses, eles subiram ao altar, ele com 28 anos, ela com 18. Conheceram-se no jornal O Estado (que já não existe) e, apesar da separação, mantiveram um elo até o fim. Ela afirma: “Aquela humilhação toda atingiu o Cau. Era como se alguém acertasse com uma bazuca uma escultura de pecinhas bem encaixadas que nunca mais se rearranjariam”.
A Polícia Federal pediu a prisão de Cancellier e outras seis pessoas da UFSC com base em um relatório de 126 páginas. Nele, o reitor é acusado de tentar obstruir as investigações da universidade sobre os desvios de dinheiro com base em apenas dois depoimentos. Em um deles, Taisa Dias, coordenadora do curso de administração, contou à polícia que, certo dia, levou ao reitor suspeitas de uso indevido de verbas no curso que coordena. Cancellier, segundo ela, perguntou se aquilo não seria um “problema de gestão” e, em seguida, lhe disse o seguinte: “Guarda essa pastinha”. Taisa entendeu que, com essa frase, o reitor estava querendo enterrar as investigações. A Polícia Federal, por sua vez, considerou a interpretação de Taisa como uma suspeita suficientemente clara de que Cancellier queria embolar a apuração. A defesa do reitor admite a conversa com Taisa, mas afirma que, ao dizer “guarda essa pastinha”, ele queria lhe pedir apenas cautela nas apurações e nas acusações. Ao reitor, nada foi perguntado sobre suas intenções, antes de ele ser preso.
O outro depoimento foi prestado pelo corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, um senhor calvo de olhos claros que nunca altera o tom de voz e fez fama de investigador obsessivo no câmpus da universidade. Em novembro do ano passado, o centro acadêmico da faculdade de engenharia postou no Facebook um texto que dizia que a universidade mantinha uma lógica desigual, punitiva para alunos e benevolente para professores. Hickel do Prado debruçou-se sobre a questão. Queria entender o que era aquela lógica desigual. Convocou nada menos do que uma centena de estudantes para depor. A apuração se encerrou sem nada concluir, mas ajudou a sublinhar sua fúria investigativa. Aos que lhe censuram o ímpeto de xerife, Hickel do Prado rebate com segurança pétrea: “Quem faz tudo certo não tem por que ter medo de nada”. (Na terça-feira 7, o corregedor pediu licença médica de dois meses da universidade.)
Em seu depoimento, Hickel do Prado fez cinco acusações ao reitor. Disse que ele lhe recomendou que instalasse uma sindicância, em vez de abrir um processo administrativo, e tentou subordiná-lo a uma secretaria ligada à reitoria. (A defesa do reitor confirma as duas providências, mas diz que eram uma tentativa de evitar os conhecidos excessos do corregedor, e não de sabotar a investigação.) Também afirmou que ele cortou sua remuneração numa “tentativa de constrangê-lo”. (A defesa do reitor afirma que houve uma ampla reforma na UFSC com cortes na remuneração de vários cargos comissionados, e não uma medida exclusiva contra o corregedor.) Ainda acusou o reitor de tê-lo chamado para uma conversa reservada na qual lhe pediu que não apurasse as suspeitas. (A defesa do reitor nega que a conversa tenha existido.) E, por fim, disse que ele lhe pediu para ter acesso formal às investigações depois de ter visitado a Capes, órgão federal que financia o sistema de pós-­graduação no Brasil, que havia acabado de cortar as verbas para o programa de educação a distância da UFSC. (A defesa do reitor confirma que ele pediu acesso às investigações exatamente para saber as razões que levaram a Capes a cortar as verbas.)
A polícia não ouviu as explicações do reitor, antes de pedir sua prisão. Ainda que os dois depoimentos se limitassem a acusá-lo de tentar obstruir as investigações, a polícia incluiu o nome do reitor em uma lista de doze pessoas suspeitas de terem tido “efetiva participação na implementação, controle e benefício do esquema criminoso”. Não há no inquérito nenhum indício ou acusação de que o reitor fosse membro do “esquema criminoso”, nem mesmo a descrição do que poderia vir a ser esse “esquema criminoso”. VEJA perguntou à Polícia Federal por que Cancellier foi apontado como integrante da quadrilha, mas a PF preferiu não responder.
No final do relatório, na página 123, estão as cinco razões para prender o reitor. O texto afirma que ele:
“Criou a Secretaria de Educação a Distância para estar acima do já existente Núcleo Universidade Aberta, vinculando-a diretamente à reitoria.” (O inquérito não traz nenhuma prova de que a criação da secretaria tenha relação com desvios de verba.)
“Nomeou no âmbito do EaD (educação a distância) os professores do grupo que mantiveram a política de desvios e direcionamento nos pagamentos das bolsas do EaD.” (O reitor, ao assumir o cargo, fez mais de cinquenta nomeações. No âmbito do EaD, fez apenas três, e outros três professores que já integravam o grupo antes mesmo de sua gestão foram mantidos.)
“Procurou obstaculizar as tentativas internas sobre as irregularidades na gestão de recursos do EaD.” (O inquérito, neste caso, baseia-se no depoimento da coordenadora Taisa Dias e do corregedor Hickel do Prado.)
“Pressionou para a saída da professora Taisa Dias do cargo de coordenadora do EaD do curso de administração.” (É uma afirmação gratuita. O inquérito não informa de onde saiu essa suspeita nem aponta nenhum elemento que lhe dê consistência.)
“Recebeu bolsa do EaD via Capes e via Fapeu.” (O inquérito também não informa de onde saiu essa suspeita, nem mesmo se existiu alguma irregularidade na concessão das bolsas.)

A juíza Janaína Cassol, da 1ª Vara Federal de Florianópolis, analisou o pedido da PF em 25 de agosto e concedeu as prisões. Sobre o reitor e os outros seis acusados, ela escreveu: “Essas pessoas podem efetivamente interferir na coleta das provas, combinar versões e, mais do que já fizeram, intimidar os docentes vitimados pelo grupo criminoso”. Em 12 de setembro, a juíza pediu licença por problemas de saúde e foi substituída por Marjorie Freiberger. Dois dias depois, em 14 de setembro, a polícia lançou a Operação Ouvidos Moucos e prendeu o reitor e os outros seis. No dia seguinte às prisões, a juíza Marjorie Freiberger, sem que houvesse recurso da defesa do reitor e dos outros seis, resolveu revogar a decisão de sua colega e suspendeu as prisões. Ao contrário da antecessora, a juíza Marjorie não conseguiu ver motivo para tê-los levado para a penitenciária. Escreveu ela: “No presente caso, a delegada da Polícia Federal (refere-se a Érika Marena) não apresentou fatos específicos dos quais se possa defluir a existência de ameaça à investigação e futuras inquirições”. Mandou libertar todo mundo. Até hoje, a advogada do reitor, Nívea Cademartori, não entende por que seu cliente foi preso sem que tivesse a chance de se explicar. “Bastaria que a PF intimasse o reitor para depor, o que seria imediatamente atendido. Há uma banalização das prisões temporárias no país.”
Em seus últimos dias, Cancellier chegou a dar sinais de que não abandonaria o ringue. Em artigo publicado no jornal O Globo em 28 de setembro, quatro dias antes do suicídio, saiu em defesa própria e dos demais professores presos: “A humilhação e o vexame a que fomos submetidos há uma semana não têm precedentes na história da instituição”. O reitor também tentou recorrer da proibição de pisar no câmpus. Alegou que, como orientava teses de mestrado e doutorado, não podia deixar os alunos à deriva. A resposta da Justiça veio no sábado 30 de setembro, dois dias antes do suicídio: Cancellier estava autorizado a entrar na UFSC por três horas em um único dia. A decisão o devastou. “Como pode?”, perguntava. “Se demorar um minuto a mais, serei preso?”
A humilhação a conta-gotas ajudou a reforçar o quadro de stress pós-traumático do reitor, como a psiquiatria define a reação descontrolada do cérebro diante de um evento que está além de sua capacidade de absorção. “É como se o sistema de defesa do organismo entrasse em pane”, compara o psiquiatra Marcelo Fleck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Maria Oquendo, uma porto-riquenha baixinha que se tornou um gigante da psiquiatria americana e autoridade mundial em suicídio, diz que é dificílimo evitar a morte de vítimas desse tipo de stress. Elas nunca falam em suicídio, embora pensem no assunto constantemente. Um trauma como o que consumiu o reitor vira motivo de obsessão — mas, de acordo com as estatísticas, raramente conduz ao atentado à própria vida.
O reitor foi um dos raros casos. Na véspera de seu suicídio, sabe-se hoje, já estava tudo calculado. Ele recusou o convite dos irmãos para assistir a uma partida de futebol em que o clube de coração da família, o Hercílio Luz, tinha chance de voltar à elite catarinense. Preferiu sair com o filho Mikhail. Almoçaram, ele quis ver se estava tudo em ordem em sua casa, mas recusou-se a ficar para uma sessão de filmes na TV. “Preciso descansar”, despistou. Em vez de descansar, foi ao shopping em que morreria, assistiu a um filme e levou consigo a chave do apartamento, de modo a forçar seu irmão Acioli a dormir em outro lugar. Queria ficar sozinho na última noite. As cinzas de cigarro espalhadas pelo apartamento mostram que fumou ferozmente, quebrando a abstinência imposta pelo cardiologista. Escreveu quatro bilhetes. Um para o filho, outro para os irmãos, um terceiro para um amigo e o quarto carregou no próprio bolso. É o único cujo conteúdo é conhecido. “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”, diz o bilhete, com a ênfase dos três pontos de exclamação. No dos irmãos, referiu-se à imensidão do amor pelos dois, mas disse que a dor que o dilacerava era maior que tudo. Deixou bilhetes e documentos separados em uma pequena caixa no escritório de casa, encontrada por Mikhail. O filho disse: “O pai cumpriu a missão aqui”.
Até hoje, sabe-se apenas que o “esquema criminoso” durou principalmente de 2005 a 2015, quando Cancellier nem estava na reitoria. A Capes, que investigou o assunto, diz que o “esquema criminoso” era uma coleção de pequenas falcatruas de servidores escroques, sem a dimensão que se divulgou. O coordenador do programa do ensino a distância da Capes, Carlos Lenuzza, não revela detalhes da investigação, mas adianta: “Os valores dos desvios são muito distantes daquilo que se falou”. Até agora, um mês depois do suicídio do reitor, ninguém foi acusado formalmente de nada, e a polícia não chegou ao valor real que foi desviado. Ao ver a notícia do suicídio na TV, Zé, o garçom, desabou. Nem sabia que o amigo de toda a vida era reitor.

sábado, 18 de março de 2017

Para entender o (mal do) fascismo. Texto de Rosane Pavam



       "O fascismo tem características essenciais. É um movimento, não uma ideologia, esta que prontamente se pode alterar conforme o gosto do ditador no poder. O líder fascista não se obriga a obedecer o próprio programa de governo, aliás nem mesmo tem um: seus eventuais princípios e promessas de campanha (quando a eleição existe) podem ser alterados sem necessidade de mais explicações. O que importa é a submissão do indivíduo aos interesses do Estado (no caso de Hitler, do partido) e à figura de seu condutor máximo. Quem adere ao fascismo não necessariamente pertence a um grupo dominante. O fascismo é um fenômeno horizontal, ao contrário do socialismo, que implica o fortalecimento de uma classe, a trabalhadora. Pobres e ricos são fascistas unidos desde sempre. A potencialidade do movimento depende da ação de uma imprensa manipuladora, rendida aos interesses de grupos conservadores, os verdadeiros beneficiados pela adesão a esse sistema. Os conservadores utilizam os fascistas quando lhes convém e se desapegam deles quando não mais lhes servem. O desejo generalizado que o fascismo manipula é o de “mudança” e engrandecimento nacional, percebido por seus seguidores em todas as classes."

hitler
Hitler fala baixo com o comandante Mannerheim (dir.) em vagão de trem na Finlândia. A conversa foi gravada sem seu consentimento em 1942. Sua voz, longe dos discursos, é grave e pausada. 

Um livro clássico procura distingui-lo de outros totalitarismos. Ele precisa de violência, de poucas palavras, de anti-intelectualidade, da degradação cultural. Quão fascista será o governo brasileiro atual?

Por Rosane Pavam, em seu blog (também no Outras Palavras)
Nesta semana, circulou por meu facebook um link em que é possível ouvir a voz de Adolf Hitler proferida numa situação particular. Feita a sua revelia no vagão de um trem, em 1942, por um técnico de emissora de rádio da Finlândia, país onde o ditador se encontrava secretamente, a gravação foi interrompida tão logo a SS se deu conta de que era realizada. Possivelmente de modo a evitar hostilidade em relação ao país que desejava aliado, Hitler não exigiu sua destruição, apenas que fosse recolhida. Isto porque o ditador jamais deixava sua voz ser transmitida em situações caseiras, especialmente sem que, para isso, houvesse um ensaio anterior. A gravação, de onze minutos, voltou para a emissora finlandesa apenas em 1957.
Trata-se do único registro conhecido em que Hitler fala baixo, desinteressado de atiçar a multidão. Durante esta conversa com o então comandante militar Carl Gustaf Emil Mannerheim, posteriormente presidente finlandês, Hitler mais falou do que ouviu. Ele precisava convencer seu interlocutor de que estava certo. E aparentemente desejava demonstrar que a Finlândia tinha toda a razão ao se voltar contra a União Soviética mais uma vez, depois de tê-la enfrentado em um avanço sobre seu território entre 1939 e 1940. Hitler admitia a Mannerheim ter errado o cálculo sobre o poderio militar de Stalin. Sentia-se inconformado com o fato de a URSS fabricar tanques em quantidade e velocidade inimagináveis, enquanto os habitantes soviéticos, fazia questão de ressaltar, viviam um cotidiano precário.
Hitler não somente fala baixo e pausadamente durante a gravação (sua voz, ao contrário do que se poderia imaginar, não era aguda). Parecia ponderar com equilíbrio a situação negativa. E aparentava um conhecimento de causa, a enumerar estratégias militares e a explicitar motivos para suas decisões que, ao fim, resultaram em fracasso. A gravação não deixa de ser insidiosa, contudo, a desejar a adesão de seu interlocutor, que na fita, aliás, surge mais exaltado que o próprio Hitler. Admitir um erro de cálculo colocava o nazista em frágil situação confessional, mas também apontava para a cooperação entre os países (não explicitada, contudo, durante a gravação). Hitler se vitimizava, desejoso de vilanizar o inimigo. Entre 1941 e 1944, Mannerheim comandou o exército durante a Segunda Guerra Russo-Finlandesa, contra as pretensões soviéticas em seu território. Embora o país tenha aderido à Alemanha em situações pontuais, não pertenceu ao Eixo durante a Segunda Guerra. Suas Forças Armadas, por exemplo, receberam milhares de judeus de países ocupados.

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Um clássico escrito após estudo revolucionário sobre o colaboracionismo de Vichy
A gravação me levou de volta a um grande livro lançado em 2004, A Anatomia do Fascismo, que recebeu tradução brasileira (de Patricia Zimbres e Paula Zimbres) pela editora Paz e Terra três anos depois. Um livro que, a considerar o estado da política mundial, continua urgente. Seu autor, o cientista político e historiador Robert Paxton, nasceu em 1932 e foi professor da Columbia University de 1969 até sua aposentadoria, em 1997. Hoje professor emérito da universidade, tornou-se célebre ao estudar o colaboracionismo francês em Vichy France: Old Guard and New Order, 1940-1944. Este livro de 1972 desmistificou o entendimento de que os franceses cederam ao nazismo apenas para evitar o conflito, por passividade.
A Anatomia do Fascismo nasceu, diz Paxton, depois de ele constatar que seus alunos desconheciam as origens e as reais características desse movimento, intitulando “fascista” todo governo orientado pelo totalitarismo. Embora o ditador italiano Benito Mussolini se declarasse totalitarista, por exemplo, ele o fazia em um sentido catalisador, explica Paxton. Dizia-se “totalitário” para que pudesse condensar sobre sua pessoa política as aspirações de uma grande parcela social. Mussolini deveria ser tudo, significar tudo. Mas os totalitarismos não redundam necessariamente em fascismo, ele precisa explicar. Se comparados, não necessariamente se equivalem. O exercício de poder por Mussolini difere daquele de Francisco Franco, na Espanha, ou de Juan Domingo Perón, na Argentina. Quando a imprensa americana, por exemplo, intitulou Perón de fascista, em verdade desejou derrubar no americano médio o fascínio que lhe causavam as leis argentinas a favorecer o trabalhador.
O fascismo tem características essenciais. É um movimento, não uma ideologia, esta que prontamente se pode alterar conforme o gosto do ditador no poder. O líder fascista não se obriga a obedecer o próprio programa de governo, aliás nem mesmo tem um: seus eventuais princípios e promessas de campanha (quando a eleição existe) podem ser alterados sem necessidade de mais explicações. O que importa é a submissão do indivíduo aos interesses do Estado (no caso de Hitler, do partido) e à figura de seu condutor máximo. Quem adere ao fascismo não necessariamente pertence a um grupo dominante. O fascismo é um fenômeno horizontal, ao contrário do socialismo, que implica o fortalecimento de uma classe, a trabalhadora. Pobres e ricos são fascistas unidos desde sempre. A potencialidade do movimento depende da ação de uma imprensa manipuladora, rendida aos interesses de grupos conservadores, os verdadeiros beneficiados pela adesão a esse sistema. Os conservadores utilizam os fascistas quando lhes convém e se desapegam deles quando não mais lhes servem. O desejo generalizado que o fascismo manipula é o de “mudança” e engrandecimento nacional, percebido por seus seguidores em todas as classes.

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O historiador americano Robert Paxton
O fascismo existe para atiçar a multidão, motivá-la a uma ação constante e dirigida. É basicamente uma manipulação da consciência de massas em uma sociedade que acolhe o show. Precisa de violência, de poucas palavras, de anti-intelectualidade, da degradação cultural, do não-pensamento para florescer. No início do século XX, a centralidade de poder e o culto pessoal ao governante foram exercidos inovadoramente pelos fascistas, com som e fúria, diante das câmeras do cinema e dos microfones do rádio. Não se tratava mais de expor argumentos à população, mas simplesmente instigá-la à força, em eventos festivos e militares, com ampla cobertura midiática. Os embates parlamentares das ideias burguesas foram substituídos por discursos em praça pública assegurados pelo quebra-quebra das milícias nas ruas. Antes de fortalecer a igualdade, buscou-se a desconfiança em relação ao voto. O sacrifício individual foi exigido para que se construísse uma ideia de grandeza nacional. O fascismo, em suas manifestações iniciais, genuínas, detestava o burguês, o rico acumulador, uma situação transformada conforme o poder se consolidava em torno de um homem só. Mas uma de suas características nunca mudou. O inimigo número um do fascista é genericamente o socialista. E, particularmente, o homossexual, a mulher e as etnias responsabilizadas por uma instabilidade econômica do país.
A manipulação precisa ser corroborada pela justiça e pela polícia, explica Paxton, esta que passa a constituir autoridade inquestionável e duradoura, celebrada por promoções salariais. O fascismo deve ser anticomunista, mas não necessariamente anticlerical, embora o fosse, por exemplo, o programa inicial de Mussolini, que depois exaltou o fervor religioso dos italianos. A Igreja passa a interessar como aliada por conta de seu poderio econômico. Os fascistas, sempre e necessariamente, precisam extrapolar seus limites territoriais. As guerras de conquista são combustíveis para a crença no governo “engrandecido”. O ódio a determinada etnia, como aquele ao judeu, varia a depender do país. Na Itália, explica Paxton, os judeus ricos acreditaram nas promessas de recuperação econômica de Mussolini e o financiaram até o início da guerra, no final dos anos 1930, quando leis raciais passaram a restringi-los.

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Tela do futurista Giacomo Balla falseia a participação de Benito Mussolini na Marcha Sobre Roma, que alçou o movimento ao poder na Itália em 1922

Tudo o que um fascista escreve não deve ser lido, como tão bem explica um filme que Robert Paxton não cita, mas parece fundamental a este entendimento, especialmente na Itália. A Marcha sobre Roma, realizado por Dino Risi em 1962, mostra, por meio da figura de dois desprovidos enganados, interpretados por Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman, como o fascismo nasceu anticlerical e antiburguês, a pregar terra para todos e direitos iguais, e como, aos poucos, abandonou suas antigas promessas. É um filme a explicitar o engodo da marcha até Roma pelos fascistas “liderados” por Mussolini (ele não participou da marcha, mas uma iconografia posterior, como a tela concebida pelo futurista Giacomo Balla, coloca-o à frente da manifestação). Em verdade, os camisas-negras que participaram da marcha foram barrados na entrada da cidade. Seu acesso se tornou permitido posteriormente porque o rei decidiu, convencido por seu governo, ceder a quem prometia extinguir à força a ameaça comunista e, de quebra, arrumar a economia.

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Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman em A Marcha sobre Roma, de Dino Risi
O nacionalismo fascista nega o socialismo justamente, entre outros, por seu aspecto internacionalista. Conforme a economia declina em países como a Alemanha e a Itália, as ofertas de trabalho diminuem internamente e os camponeses se veem desprotegidos, o fascismo cresce, atribuindo a pequenos grupos migrantes, antes bem-vindos, a responsabilidade pela crise. A promessa do fascismo é ser nacionalista ao extremo, expulsando a “ameaça” externa dentro do país. Um corpo ideológico, uma farsa sobre as origens da nação ditará o que é nacional ou não – o mito da nacionalidade estabelecerá o que é autóctone, portanto legal, e o que é estrangeiro e não se deve tolerar. Na Alemanha fascista, a legalidade era ambígua. O governo desrespeitava as próprias instituições, incentivando o poder paralelo do partido e das milícias, que se tornavam autoridades. Segundo Paxton, existia no país um “Estado dual”, normativo enquanto prerrogativo. O Estado normativo, constituído pelas autoridades legalmente constituídas e pelo serviço público tradicional, disputava o poder com o Estado prerrogativo, formado pelas organizações paralelas ligadas ao partido único. Hitler se serviu dos dois.
O livro de Paxton compreende o fascismo com particularidade. Em seu texto escrito com muita clareza, o Brasil vem citado nas ocasiões ditatoriais até então mais recentes, o Estado Novo e a ditadura. Não há, nos dois casos, situações de guerras de conquistas territoriais que possam estabelecer a chancela fascista, ele conclui. Getúlio Vargas não aderiu ao nazismo como prometia, especialmente durante a Segunda Guerra, embora atacar o comunismo estivesse em seu ideário. E a ditadura brasileira dos anos 1960 tampouco elegeu a mística em torno de um único ditador, genericamente financiada, que era, pelo governo americano. Nos Estados Unidos e na França, houve sempre grupos a favorecer e incentivar o racismo e as milícias de exclusão. Mas, novamente, não se constituíram países onde o fascismo vingou com as tintas a ele aplicadas por Hitler ou Mussolini.
O historiador busca esclarecer as origens e as características do movimento de modo a discriminá-lo de outros autoritarismos. É possível supor que Paxton não ligasse o atual governo golpista inteiramente ao fascismo. Michel Temer tem apoio da oligarquia política, dos setores conservadores, da imprensa, mas carisma não é seu forte. As falas de Temer mais constrangem do que instigam o brasileiro à defesa de suas ações. A justiça e a polícia são suas aliadas e ele enaltece a submissão da própria mulher, como manda o fascismo, mas ainda não empreendeu uma luta por conquistas territoriais. Tampouco soube ser populista na medida exigida, à moda de Mussolini ou Hitler. Extirpa direitos sociais em lugar de os acrescentar seletivamente ou de os maquiar (inicialmente, o nazismo soube arrumar internamente a casa alemã; cuidou muito bem, por exemplo, da saúde de quem considerava cidadão). Talvez, então, segundo o entendimento de Paxton, o homem que ocupa o máximo cargo executivo no Brasil atual fosse visto apenas como um autoritário apoiado em grupos de interesse conservador, com privilégios assegurados pela corrupção, pela justiça e pela polícia violenta. Nem mesmo fascista Temer conseguiria ser?
Volto à gravação da voz de Hitler, feita na Finlândia, porque ela me parece esclarecedora de um ponto ressaltado pelo instigante livro do professor da Columbia University. Hitler não agia conforme o esperado. Sua performance publicamente eletrizante não correspondia a uma grande energia pessoal para conduzir suas políticas. Tudo o que fez, ele o fez gastando pouco. Nem mesmo exercia um pragmatismo motivador à frente da administração de seu país, embora fosse assertivo na propaganda. Paxton descreve um momento durante a guerra em que todo governante, em lugar de usar as verbas recebidas pelo Estado para vitalizar a força produtiva de sua comunidade, sentia que seu dever era aplicá-la em políticas de extermínio, incentivadas largamente pelo ditador. Hitler não quebrava a cabeça para resolver os problemas da economia, embora ela parecesse ajeitada por algum tempo. Enquanto Mussolini mourejava por longas horas em sua mesa de trabalho, Hitler continuava a se permitir o diletantismo indolente e boêmio de seus tempos de estudante de arte.
Narra Paxton: “Quando os auxiliares tentavam atrair sua atenção para assuntos urgentes, Hitler frequentemente mostrava-se inacessível. Passava muito tempo em seu refúgio na Bavária e, mesmo quando em Berlim, negligenciava questões de maior urgência. Submetia seus convidados com monólogos que iam até a meia-noite, acordava ao meio-dia e dedicava suas tardes a paixões pessoais, como fazer, com seu jovem protegido Albert Speer, planos para a reconstrução de sua cidade natal de Linz e do centro de Berlim num estilo monumental compatível com o Reich de Mil Anos. Após fevereiro de 1938, o gabinete deixou de se reunir. Alguns ministros jamais conseguiam ver o Führer. Hans Mommsen chegou ao ponto de escrever que Hitler era um ‘ditador fraco’. Mommsen nunca teve a intenção de negar a natureza ilimitada do mal definido e aleatório exercício pelo poder de Hitler, mas observou que o regime nazista não era organizado segundo princípios racionais de eficiência burocrática, e que sua surpreendente explosão de energia assassina não foi produzida pela diligência de Hitler.”
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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Bob Fernandes sobre a agenda verão do Golpe-farsa-jurídico-parlamentar-midiático:condenação para Lula e articulações para o Poder futuro




Lula em alta...Nesta segunda-feira, 19, o juíz Moro tornou Lula réu pela 5ª vez...E Lula segue na frente, crescendo nas pesquisas para a eleição presidencial de 2018.
Lula é a crônica de uma condenação anunciadíssima. Anunciam para o verão...
Uns anúncios se cumprem, outros não...
...Delatado pela Odebrechet, Caixa 2 para chapa Dilma/ Temer.
Se o TSE julgasse a tempo, até 31 de dezembro, se teria eleições diretas ano que vem. Trabalharam para que assim não seja.
Optaram por aquilo que Joaquim Barbosa definiu como "Impeachment Tabajara". Porque objetivos principais eram dois.
Neste ano, no auge do sufoco, salvar o Dinheiro Grande quando a inadimplência o ameaçava...Seguem os riscos, mas esse um capítulo para mercados futuros.
O outro objetivo já é de anos: pavimentar, seja como for, o caminho para retomar o Poder seja como for.
Nas delações, os fatos. Todos os grandes candidatos a 2018 delatados: Alckmin, Aécio, Serra, e mesmo Marina, citados por, no mínimo, Caixa 2...
Lula, sem cargo ou poder algum, cairá antes.
Mas nem tudo saiu como esperavam. Era óbvio que em algum momento se tornaria público o que sempre se soube...
...Que os dados da empreiteiragem em posse da Lava Jato eram caminho inevitável; entregariam a corrupção em todos os grandes partidos, campanhas e candidatos.
Foram feitas escolhas na Lava Jato. Escolhas atiçaram a euforia, e também ódios e resultados eleitorais. E agora, exposta toda a real, o desencanto...
É tempo de improvisar.
Cercado por denúncias contra si mesmo, contra seus ministros e hoje contra sua campanha, Temer segue presidente provisório.
Basta um piparote mais forte de um Odebrecht. Ou de um Eduardo Cunha. Por isso a urgência política para aprovação da agenda dos que fizeram Temer presidente.
É, e será, corrida contra o tempo. E contra a realidade. Manchetes são úteis nesse jogo, mas não podem tudo.
Banzé no Supremo, procuradores em surto. Arranca-rabo no Congresso, e entre poderes...Disputas pelo Poder. Ou para salvar pescoços...
E as articulações e conversas caminham...
...Conversam e articulam Fernando Henrique, Jobim... Gilmar Mendes, Serra, banqueiros, empresários, em especial da comunicação...
É o colóquio pelo Poder futuro.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Majestades imperiais: o super salário de promotores e juízes e o abuso de autoridade. Por Joaquim de Carvalho


Do Diário do Centro do Mundo (DCM):

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Em maio deste ano, depois de abrir um inquérito civil para investigar supersalários na Prefeitura de Sorocaba, interior do Estado de São Paulo, o promotor de justiça Orlando Bastos Filho mandou um ofício duro ao prefeito da cidade: “Que fique claro, desde logo, que não será aceita eventual alegação de sigilo: uma, porque detém o MP constitucionalmente poder de requisição; duas, porque os vencimentos de servidores públicos é informação pública; por fim, porque são até publicados, considerando a lei de acesso à informação.”
Conhecido na cidade pelo rigor com que fiscaliza o poder público, Orlando Bastos Filho acaba de ter seu nome divulgado na lista de supersalários do Ministério Público do Estado de São Paulo: em outubro, seus vencimentos foram de R$ 107 mil brutos, incluídos nesse pagamento vantagens como indenização, vale-alimentação, auxílio-moradia, auxílio-livro, auxílio-funeral, pagamento de diárias, remunerações retroativas, duas férias anuais.
O promotor Bastos, que conduz também uma investigação sobre gastos dos vereadores da cidade com carros oficiais, telefones e verbas de indenização, está longe de ser uma exceção no Ministério Público de São Paulo (e muito provavelmente nos Ministérios Públicos de outros Estados e no Ministério Público Federal).
Em outubro, dois outros promotores ganharam mais do que ele – os maiores vencimentos foram de R$ 130 mil. Oitenta por cento dos promotores e procuradores do Estado de São Paulo teriam vencimentos acima do teto constitucional.

A revelação dos supersalários dos promotores e procuradores, feita pelo site da Agência Pública, é uma oportunidade para debater a questão das prioridades dos gastos públicos.
No orçamento do Estado para 2017, estão previstos os gastos de R$ 2,3 bilhões com o Ministério Público de São Paulo – o dobro do que será destinado para pastas como Agricultura, Meio Ambiente ou Habitação ou três vezes mais que o Estado pretende gastar com a Secretaria de Cultura.
É óbvio que o Ministério Público é absolutamente indispensável na sociedade democrática. Mas ganhar muito acima da média salarial do país, cerca de 2.300 reais, está correto?
Até que ponto um servidor público com salário até 50 vezes maior que a média do País está em condições éticas de exigir austeridade dos demais agentes públicos?
Este é o debate que também precisa ser feito.
Ou, então, precisamos resgatar os artigos 98, 99 e 100 da primeira Constituição do Brasil, a Imperial de 1824. É só trocar a palavra imperador por promotor, procurador ou juiz que fica perfeito para os dias atuais:
– O Poder Moderador (promotor, procurador e juiz) é a chave de toda organização política e é delegado privativamente ao imperador (promotor, procurador e juiz), como chefe supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos demais Poderes Políticos.
– A Pessoa do Imperador (promotor, procurador e juiz) é inviolável, e sagrada: Ele não está sujeito à responsabilidade alguma.
– Os seus títulos são Imperador Constitucional, e defensor Perpétuo do Brasil e tem o tratamento de Majestade Imperial.
Depois de rejeitar a discussão da hipótese de enquadramento por crime de abuso de autoridade e passarem batido na questão do teto salarial intra corporis, promotores, procuradores e juízes se investiram, na prática, da Majestade Imperial.
Até quando?

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Joaquim de Carvalho
Sobre o Autor
Jornalista, com passagem pela Veja, Jornal Nacional, entre outros. joaquimgilfilho@gmail.com