domingo, 16 de agosto de 2020

Luis Nassif sobre o xadrez do pacto ultraliberal pela espoliação do Brasil com um Bolsonaro domesticado



Julgar que Bolsonaro pode ser eternamente domesticado é a mesma coisa que dar uma dieta vegetariana para uma hiena, e apostar que nunca mais ela voltará a gostar de carniça.

Do GGN:

Premissas – Bolsonaro como um Forrest Gump raivoso

Alguns sinais sobre o novo pacto que se desenha.
Em função da melhoria da popularidade de Jair Bolsonaro, analistas mais apressados apressam-se a reconhecer seu gênio político, sua intuição fenomenal, seu tirocínio. Enfim, um gênio que passou oculto por quatro décadas de política.
Para deixar o Xadrez mais claro, o primeiro passo é repor os fatos: Bolsonaro é uma zebra política, que seguia um roteiro previamente desenhado e quase estragou tudo com sua falta de noção.
Esse roteiro tinha duas pernas. A primeira, a violência radical da ultradireita mundial, desenhada por Steve Bannon. A segunda, o aprofundamento interno das reformas liberais, desenhada pelo arco político montado para o impeachment de Dilma Rousseff.
Agora tenta-se retomar a segunda perna do roteiro, com as instituições monitorando Bolsonaro com choques elétricos, condicionando-o como se fosse um ratinho de Pavlov. E, aí, percebe-se um pacto tácito entre Supremo Tribunal Federal, Forças Armadas, Congresso/Rodrigo Maia e mídia em torno de um novo pacto ultraliberal, fornecendo um tubo de oxigênio para um governo moribundo.
Dadas as premissas, vamos às peças do jogo.

Peça 1 – o roteiro Steve Bannon

A ultradireita mundial criou um roteiro para os candidatos a novos ditadores.
O tema foi abundantemente explorado aqui no GGN.
As redes sociais trazem uma nova realidade política e social. Elimina os fatores de contenção social, construídos pela canalização dos anseios individuais para mídia, partidos políticos, sindicatos. Cria-se uma nova instititucionalidade caótica, em que as demandas passam a ser condicionadas por estratégias articuladas junto às redes sociais, visando explorar os caminhos da democracia, de  tomada de poder pelo voto, para posterior destruição do regime democrático,
Steve Bannon é dos primeiros profetas da nova era a perceber o potencial agregador/desagregador das redes e a capacidade de tirar do armário os sentimentos de ódio, preconceito, que habitam o coração de parte da classe média, e que eram contidos por regulações e princípios de convivência social, canalizando-os para o novo jogo político.
Não é à toa que os primeiros profetas do ódio, no Brasil, começaram sua pregação atacando o “politicamente correto”.
A estratégia Bannon teve três pernas.
A primeira, a montagem do discurso de ódio, em torno dos princípios religiosos-nacionalistas dos movimentos da América branca, do novo pentecostalismo, das reações contra os métodos de contenção dos abusos.
A segunda, os financiadores, entre grupos empresariais que atuam nos limites da legalidade, que operam como pontes entre a economia formal e a economia do crime: indústria de armas, cassinos, indústria do lixo, mineração, e outros grupos cuja expansão é contida por dispositivos sanitários, regulações, leis.
Tendo o know how da desestabilização da democracia, e os financiadores, Bannon passa a apostar em vários candidatos a ditadores e consegue avançar em dois políticos estratégicos: Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil, este já sendo parte integrante do submundo político-econômico, com suas ligações com as milícias.
Trump habita um universo de empresários interessados em explorar mineração em terra indígenas de países atrasados, como o Brasil; de empreiteiras fomentadoras de guerra, do jogo em resorts, de atividades que são contidas pelos avanços da regulação.
A terceira, a aliança com o ultraliberalismo, interessado em desconstruir as regulações criadas ao longo das últimas décadas, mas empenhado em manter o regime democrático, aquele em que mais facilmente controla, com sua influência sobre partidos políticos, Judiciário e mídia.
É nessa dicotomia ditadura x democracia tradicional que se instala pontos futuros de conflito entre liberalismo e ultradireita, como se tentará explicar ao longo deste Xadrez.
A lógica de Bannon não consiste em consolidar a ultradireita como um partido do jogo democrático, mas claramente empenhada em derrubar o regime e consolidar a ditadura.
Graças ao primarismo dos Bolsonaro, essa estratégia foi explicitada desde o primeiro momento, com os filhos divulgando mensagens claras de defesa da população armada, e não das Forças Armadas, como garantidoras do projeto político da família.
Esse movimento golpista foi em um crescendo até ser contido por três poderes: a Justiça,  através dos inquéritos abertos por Alexandre de Morais, do Supremo Tribunal Federal, e as investigações sobre a rachadinha pelo Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro; as Forças Armadas, não endossando a tentativa frustrada de golpe de Bolsonaro, semanas atrás; a Câmara, de Rodrigo Maia, derrubando seguidamente vetos de Bolsonaro; e as Organizações Globo, denunciando as mazelas do governo. Note-se: quatro instituições com papel central no movimento que levou ao impeachment de Dilma Rousseff.
Estes são os personagens do próximo tempo do jogo: Supremo, Forças Armadas, Rodrigo Maia e Globo. E, para seus projetos, interessa manter no poder um Bolsonaro domesticado.

Peça 2 – o papel do sistema de justiça

Na última década, a bancada política do Supremo – Gilmar Mendes, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli – divergiam nos meios e concordavam nos fins.
Por “fins” entenda-se uma visão ultraliberal da economia, com redução dos gastos sociais, desmontagem do sistema sindical, destruição da Consolidação das Leis do Trabalho. Por “meios” compreenda-se o punitivismo virulento da Lava Jato.
O conflito entre os dois grupos – os “ garantistas” e os “punitivistas” – ficou nítido depois que a Lava Jato completou o trabalho sujo de inviabilizar um governo e um partido político e pretendeu preservar o poder avançando sobre outros partidos. Ali se deu o racha em torno da Lava Jato, mas não em torno do ultraliberalismo.
No último ano, o Supremo teve papel chave no desmonte das estatais, ao  contornar a proibição constitucional de venda das estatais sem aprovação do Congresso, liberando a venda de empresas controladas, em um processo irresponsável de destruição de valores da empresa-mãe. Nesses períodos de ideia fixa no lavajatismo, pelo Supremo passaram várias boiadas de desmonte do modelo de Estado.
Com o avanço das pretensões ditatoriais de Bolsonaro, e a saída de Sérgio Moro, abriu-se espaço para uma reorganização dos Ministros em torno do ultraliberalismo. Gilmar Mendes e Luis Roberto Barroso se aproximaram, aliança celebrada em uma palestra de Barroso em uma live do IDP, universidade de Gilmar.
Ao mesmo tempo, houve sintonia total de medidas tomadas por vários Ministros contra as pretensões de Bolsonaro, assim como uma aproximação cada vez maior com Rodrigo Maia, presidente da Câmara, também do front ultraliberal.
Ontem, a decisão de Gilmar Mendes de conceder uma liminar para devolver à prisão domiciliar não apenas Fabricio Queiroz, mas a esposa – que foi detida quando estava foragida – sela definitivamente a nova pax com Bolsonaro domesticado.
Na sexta-feria, a participação de Gilmar Mendes na live do MST (Movimento Sem Terra) deu o tom do novo modelo, ultraliberal, sim, mas sem a selvageria do período anterior. Explica-se da mesma maneira sua aproximação com setores progressistas do meio jurídico (lembra um pouco o pacto dos farrapos com a Coroa, nos dizeres de um de seus líderes: “com o sangue do primeiro paraguaio que invadir o Brasil assinaremos a paz com a Coroa”. O sangue, no caso, será dos deslumbrados da Lava Jato).
Agora, vai-se prosseguir no modelo clássico liberal, de destruir os direitos coletivos da população (que implica em gastos orçamentários ou em fortalecimento de movimentos e associações) e  promover novo pacto em torno dos direitos individuais, investindo contra esbirros autoritários contra pessoas.
É essa a característica da nova pax: doma-se o bolsonarismo, sem desmanchar o pacto ultraliberal que o levou ao poder. Nesse novo desenho, há possibilidade de se votar pela suspeição de Sérgio Moro e reabilitar politicamente Lula, confiando que haja a legitimação democrática que garanta a reeleição de Bolsonaro.
Com Bolsonaro, trata-se de um casamento de conveniência que pode durar apenas o prazo necessário para o Congresso completar seu trabalho de desmonte do Estado; ou ser prorrogado se Bolsonaro conseguir convencer os novos aliados de que perdeu definitivamente as garras.
A conclusão da Polícia Federal sobre a delação de Antonio Palocci completa o quadro. O inquérito concluiu que Palocci incriminou Lula e André Esteves do BTG com base em notícias pesquisadas no Google. A delação foi peça central para a campanha eleitoral de Bolsonaro, quando Moro liberou um trecho para uso político na véspera das eleições.
Pode ser que Lula seja apenas um subproduto de uma operação para garantir a blindagem do BTG Pactual. De qualquer forma, é um tiro a mais na moribunda Lava Jato.,

Peça 3 – o papel das Forças Armadas

Há duas características explícitas na elite das Forças Armadas, formada nos institutos militares: o alinhamento com os Estados Unidos e a visão liberal da economia, com uma completa ignorância sobre projeto de país.
Em relação aos EUA, há uma semelhança e uma diferença das Forças Armadas em relação a Bolsonaro.
A semelhança é a completa submissão aos Estados Unidos. A diferença é a postura: a paixão de Bolsonaro por Trump é quase pornográfica; já a das Forças Armadas pelos Estados Unidos tem o formalismo da institucionalidade.
Desde que o Brasil abriu mão de ter uma indústria militar de defesa autônoma, aumentou essa submissão. A sabedoria secular dos EUA cooptou procuradores conferindo-lhes instrumentos de poder; e militares dando-lhes acesso a treinamento em novas tecnologias.
Para as FFAAs, Bolsonaro no poder é o melhor dos mundos.
De um lado, conseguem regalias para a corporação, como aumento de verbas, blindagem na reforma da Previdência, abertura de cargos no setor civil. Ao não haver identificação formal com Bolsonaro, livram-se da pecha de interferência no poder civil e não se contaminam com as barbaridades terraplanistas do governo.
Os esbirros primário-autoritários de Bolsonaro atrapalharam esse pacto. Enquadrado agora, os generais no poder voltam à sua missão original de conferir um mínimo de racionalidade ao governo.
Mudaram a comunicação, aproximaram-se do Centrão e desenham um plano de salvação, o tal Pró-Brasil, que, no entanto, esbarra na irracionalidade ideológica de Paulo Guedes. Voltam a se apresentar como os garantidores da racionalidade, inclusive perante seus colegas da ativa.

Peça 4 – o papel de Rodrigo Maia

É essa mesma lógica que explica a entrevista de Rodrigo Maia ao Roda Viva, defendendo o mandato de Jair Bolsonaro.
Com a nova linha imprimida ao governo, e aproximação com o Centrão, Maia garante sua reeleição e a manutenção do projeto ultraliberal das reformas, com precarização ainda maiores dos serviços públicos e restrições maiores aos gastos sociais. O sucesso de Maia depende dos abusos de Bolsonaro.
É uma ofensiva com várias frentes. Esta semana, o governador de São Paulo João Dória Jr encaminhou à Assembleia Legislativa o projeto de lei nº 529/2020, pelo qual pretende extinguir, entre outros, o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (IAMSPE), a Fundação para o Remédio Popular “Chopin Tavares de Lima” (FURP); Fundação Oncocentro de São Paulo (FOSP); Instituto Florestal; Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU); Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo S. A. (EMTU/SP); Superintendência de Controle de Endemias (SUCEN); Instituto de Medicina Social e de Criminologia (IMESC); Departamento Aeroviário do Estado de São Paulo (DAESP); Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” (ITESP).
Agora mesmo, fala-se em um projeto de lei, encaminhado por Paulo Guedes, para acabar com a gratuidade da Justiça.

Peça 5 – o papel da mídia

A pesquisa DataFolha, identificando a melhoria na avaliação de Bolsonaro pela população reflete a mudança de tom do governo, a domesticação provisória do Ogro. A enorme divulgação aos resultados, inclusive com cobertura maciça do Jornal Nacional, está longe de demonstrar a isenção do veículo. A intenção óbvia é reforçar uma nova aposta em Bolsonaro domesticado, para não interromper o rush ultraliberal.
Nos últimos dias, comentaristas políticos e econômicos parecem obedecer a uma ordem unida, de criminalizar qualquer gasto público, satanizar o funcionalismo, criar falsas expectativas de um futuro radioso se o Estado for desmontado ou, pelo contrário, prever o fim do mundo se a Lei do Teto for revogada. Tudo preto no branco, em cima de bordões primários, típicos de efeito manada de redes sociais, sem nenhuma nuance.
Não se trata de um surto de bobeira coletiva, mas de uma clara ordem unida.

Peça 6 – o futuro da nova aliança

Cenários são apostas sobre o futuro, encaixando uma quantidade específica de fatos políticos do momento. Mudam os fatos, mudam as correlações de força, há os movimentos imprevisíveis de opinião pública.
Fato: o pacto atual com Bolsonaro domesticado, para uma ofensiva ultraliberal maciça. Conjeturas: os desdobramentos desse pacto e as consequências futuras de um Bolsonaro para a democracia, de um Bolsonaro fortalecido.
Julgar que Bolsonaro pode ser eternamente domesticado é a mesma coisa que dar uma dieta vegetariana para uma hiena, e apostar que nunca mais ela voltará a gostar de carniça.

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